Expurgo escrita por Jean Pereira Lourenço


Capítulo 1
T01E00 - Passeio noturno


Notas iniciais do capítulo

Episódio piloto da série "Expurgo", de Jean Pereira Lourenço. Um garoto incomum reflete sobre os males da humanidade e procura por sinais de que a mesma ainda merece existir.



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“Há alguma razão na existência humana?” pensava ele, observando a cidade. “Qual o sentido de tantos anos de evolução biológica, se o que mais cresceu no ser humano foi sua estupidez?”

Era fim de tarde, o sol já se escondia atrás da infinita massa cinzenta formada por prédios. No céu, rasgado por aviões a todo instante, as estrelas começavam a brilhar e a lua já se mostrava plenamente. O vento acariciava seu rosto, às vezes soprando tão forte que ameaçava derrubá-lo. Os pés estavam a centímetros do limite entre o concreto do terraço e uma queda mortal. Mas ele não se sentia intimidado por isso, tudo que importava era aquela reflexão.

“É vergonhoso que eles tenham proporcionado isso a si próprios. Eles passaram de todos os limites, e agora já não há mais salvação”, refletia, em silêncio.

As mãos estavam nos bolsos sujos e rasgados da bermuda. Ele era a figura típica de um moleque de rua: garoto de cerca de onze anos de idade, pele escura, cabelo Black Power e roupas imundas. Era o reflexo do que a humanidade produzia em maior escala: miséria. E era isso que sua feição representava.

“E o pior de tudo é que, como tudo que fere, como tudo que suja, que arruína, eles deixarão seus rastros fétidos para trás. Deixarão cicatrizes, excrementos, construções, lixo, poluição, e o pior: memórias do caos causado por eles contra eles mesmos. Como se eu fosse obrigado a assistir a tudo isso sem me queixar. Como se eu devesse aceitar sua existência desrespeitosa, desbalanceada e desleal.”

Ele balançava a cabeça, negando, sofrendo internamente com o peso de suas memórias, de ter presenciado tanto em tão pouco tempo. Tanta destruição, tanta humilhação, tanto egocentrismo. Cenas dos conflitos intermináveis na Faixa de Gaza, no norte da África e no leste asiático atormentavam-no. Chegava a inúmeras conclusões a respeito do assunto, a mais importante delas sendo: “O grande problema do ser humano é sua incapacidade de comunicar-se de forma eficaz.”

“É ridículo como eles abdicaram de algo tão importante como a linguagem para transformá-la em apenas mais um recurso de sua busca existencial infinita e insana”, concluía, franzindo a testa, sentindo certa raiva. “A comunicação do ser humano deixou de ser uma transmissão de mensagens, tornando-se um mero véu de palavras, gestos, atitudes, comportamentos… a comunicação tornou-se mais uma vestimenta para eles, e tenho a sensação de que fazem isso com tudo, deslocando atributos importantes de suas funções originais para transformá-los em estética. Tudo se resume a estética, para eles.”

Contraditoriamente ou não, o menino pensava, admirado, em quão mais importante é a estética da natureza. O degradê de alaranjado a azul-escuro fazia-o sentir-se diferente, mas de uma forma positiva. Era algo que mexia com seus sentimentos, que proporcionava aquela sensação tão agradável de conforto, de lar. Seus braços arrepiaram-se.

“Existe algo mais sagrado que nosso lar?” refletiu, emocionando-se. “A resposta está tão evidente para eles… por que, então, não conseguem enxergá-la? Por que tudo tem que ser tão difícil para o ser humano? Tem que haver complicações, tem que surgir intrigas, conflitos; é esse o jogo deles!”

O garoto limpou as lágrimas que se formavam nos olhos com as costas da mão. Sua expressão facial era grave, como a de um menino com desejo de vingança, carregando um enorme ódio no coração. Seus olhos refletiam desprezo, sofrimento, tristeza.

“Sorte a minha eles estarem equivocados quanto a algo: nada, no universo, é parecido com eles”, pensou, assumindo uma postura diferente, com as mãos de volta nos bolsos e um sorriso de canto no rosto. “Nada foi criado em sua imagem, e sua imagem não se baseia em qualquer outra coisa. Eles são apenas uma criação defeituosa, um esbarrão desatento e desastroso. E é chegada a hora da correção.”

A noite expandia-se rapidamente, abrindo espaço para o brilho de mais estrelas solitárias e constelações. A escuridão do céu empurrava o alaranjado para fora do horizonte, pois o tempo do sol já havia passado, e era preciso que ele se fosse para que a lua pudesse aparecer por completo. Estranhamente, mesmo com a diminuição dos raios solares, plantas cresciam ao redor do garoto, deixando fendas, buracos, rachaduras para buscar desesperadamente qualquer mínima iluminação que as pudesse manter vivas. Era extremamente incomum como trepadeiras e musgos desenvolviam-se tão depressa e em perfeita sintonia com o crescente sorriso do garoto, que repelia aquele mal-estar dos pensamentos lamentosos com a imagem de um mundo sem humanos para desgraçá-lo.

“Sabe, eu adoraria proporcionar uma segunda chance a eles”, refletiu. “Odeio quando sou obrigado a agir de forma cruel. Detesto quando me acusam de ser perverso, de não ter coração, sentimentos. Mas é tão contraditório que eles me acusem disso, que aprendi a sequer levar as acusações em consideração.”

Seria estranho se alguém soubesse que aquele garoto processava pensamentos de tamanha complexidade. Não se pode negar que não se trata de um moleque qualquer. Por isso observava a cidade do alto, do terraço escuro e solitário, pois não queria mais qualquer forma de contato com os humanos. Sabia que encontraria algo naquela cidade que o faria desistir da ideia de que já era passada a hora de a humanidade deixar de existir.

“Mas, por que essa cidade? O que pode haver nela de tão diferente do resto do mundo? Eu tenho essa sensação fortíssima de que há provas, aqui, de que o ser humano merece mais uma chance. Eu não suportaria o peso de queimar essas evidências sem antes examiná-las atentamente… infelizmente. Mesmo já tendo percorrido os quatro cantos do mundo procurando por isso, tudo que encontrei foi desgraça. Espero mesmo encontrar algo que valha a pena, dessa vez.”

O garoto, então, virou-se e saiu andando, ainda com as mãos nos bolsos e o olhar alto, sempre observando o ambiente ao redor. A esse ponto, o céu já estava plenamente escuro, e o terraço completamente forrado por plantas. Na principal avenida de vida noturna da cidade, o menino observou diversas manifestações do comportamento social humano e julgou-os todos mentalmente.

“Naquele bar, por exemplo: o rapaz esperou a namorada ir ao banheiro para ir até a mesa de outra moça e pegar seu telefone”, pensava ele, parado na esquina e olhando em direção à casa noturna. “E ele conseguiu: é aí que está minha grande revolta contra o ser humano. ‘Para o triunfo do mal só é preciso que os bons homens não façam nada’, dizia Edmund Burke, mas eles não dão ouvidos uns aos outros. É claro que sempre haverá pessoas com comportamentos repudiáveis, enquanto houver quem aprecie tais atitudes.”

Quando a namorada saiu do banheiro feminino, o rapaz já estava de volta à sua mesa, esperando-a com um colar de ouro que havia comprado para ela. O sorriso de surpresa foi enorme, e ela agradeceu imensamente o melhor namorado do mundo pelo presente. Enquanto o casal abraçava-se, a moça da mesa ao lado suspirava, ansiosa por também poder sentir o abraço dele, um homem tão encantador.

“Minha revolta é baseada no fato incontestável de que essa moça, a outra, encantada como ficou com o flerte fatal, ligará para ele amanhã; ele conseguirá enganar a namorada perfeitamente, ainda que mantendo a relação adúltera; e, acima de tudo, quer queira ou não, sua masculinidade será considerada maior ou mais potente que a dos homens fiéis; ele será o esperto, o hábil, o macho alfa, enquanto seu amigo casado e correto irá sentir-se em desvantagem numérica de relações, diminuído, fraco. Não julgo o adultério por ser algo naturalmente ruim, mas, se assim determina a convenção social que os rege, então deveriam respeitá-la. Porém, desrespeitar as regras é um atributo secretamente, ou não, positivo. E é assim que isso cresce: exponencialmente, como um câncer. O ser humano não enxerga o mal nas atitudes erradas, mas sim em ser pego e ter que pagar por elas.”

Após o longo abraço, o namorado foi ao banheiro e foi a vez dela, a sortuda, de agir secretamente em benefício próprio. Rapidamente leu as mensagens acumuladas de seu mais recente pretendente e respondeu-as com os dedos ágeis, na tela touchscreen do celular de última geração que ganhou do namorado no Natal passado. Talvez ela não tivesse a real intenção de cometer um adultério, mas apenas de manter outros homens interessados em si para elevar sua autoestima. O que é traição, afinal?

“A imagem que é emitida segue seu rumo em zigue-zague, como em um corredor de espelhos tortos, cada vez deformando-se mais, até tudo que é produzido pelo homem, e inclusive ele mesmo, transmitir imagens falsas, transformando-se em ilusões. A burrice deles é que, mesmo reconhecendo serem produtores de imagens falsas, acreditam nas produções alheias. Eles sabem que são mentirosos, não sabem?”

O menino cansou-se de assistir àquilo e seguiu em seu passeio noturno, ainda carregando aquele pequeno vestígio de esperança na humanidade. A cena que acabara de ver reduzia grandemente as chances de que encontraria algo bom, é claro. Porém, passando por um beco escuro atrás de um restaurante, o garoto foi surpreendido por uma cena incomum, fazendo reacender aquela chama de esperança: uma garota adolescente, que estava de passagem, era abordada por dois homens que usavam drogas no local; após alguns segundos de discussão, durante os quais os dois, armados com pedaços de pau, anunciaram um assalto, a jovem tomou o bastão de um dos homens e começou a batê-lo em suas costas várias vezes, até o outro sair correndo.

“Isso… é… pra… aprender…” ela intercalava sua fala com pauladas no corpo do bandido, “seu… filho… da… puta… vai… roubar… a… mãe!”

Então, enquanto o homem agonizava no chão, ela ajeitou seu visual com um espelho de mão e seguiu viagem tranquilamente, mostrando o dedo do meio, de longe, para o comparsa que se escondia atrás de uma caçamba. O menino ficou chocado com o que viu, e desejou intensamente que todo ser humano fosse assim tão corajoso, tão audaz. Seus olhos brilhavam de admiração por aquela garota, que desapareceu após virar a esquina.

Seguindo viagem pela mesma avenida, o garoto deparou-se com um cãozinho que caminhava com dor por conta de carrapichos grudados em suas patinhas, na outra calçada. Antes de atravessar para socorrer o animalzinho, olhou para os lados checando o trânsito, e, ao voltar os olhos para o outro lado da avenida, já havia um jovem pegando o animal no colo e retirando cada um dos carrapichos com a mão, enquanto a mãe, que segurava duas caixas de pizza, insistia que ele o largasse para não pegar uma doença.

“Mais fácil eu pegar uma doença de você, que fica indo nessas boates de terceira idade!” exclamou o rapaz, levando um safanão da mãe em seguida. Mas ele não deixou o cão até checá-lo novamente e certificar-se de que estava bem e livre de carrapichos. “A gente vive no mesmo planeta! O que não faz sentido é que cada ser cuidar só de si mesmo!” argumentou para a mãe, que resmungava sem parar.

O menino ficou atônito com aquela afirmação. Jamais pensaria que um jovem qualquer pudesse compartilhar tal pensamento. “É verdade! Ele tem toda a razão!” pensou o garoto, admirando o rapaz, enquanto este entrava no carro com a mãe e partia. Concluiu que o mundo precisava de mais pessoas bondosas e persistentes como aquele jovem.

Estava sendo impressionantemente produtivo examinar afundo aquela cidade que, por algum motivo, havia chamado a atenção do garoto em sua direção. Ele seguia ainda pela mesma avenida, sequer prestando atenção no comportamento negativo das demais pessoas. Tudo em que conseguia pensar era: “Será que tem mais desses, aqui?” Um enorme sorriso tomava seu rosto, e cada quarteirão percorrido por seus passos era também enfeitado por plantas que cresciam desenfreadamente. Aqueles dois indivíduos eram extremamente raros aos olhos do menino, mas ele precisava de mais provas de que um possível plano B daria certo.

Foi então que, ao virar à direita impulsivamente, o garoto encontrou uma pequena igreja improvisada em meio a dois estabelecimentos noturnos: um restaurante vegetariano de esquina, onde uma dupla sertaneja amadora apresentava-se; e, do outro lado, um estúdio de tatuagem que, à noite, transformava-se em bar de rock. O barulho ali era imenso, o próprio garoto julgou estúpida a ideia teimosa de manter uma igreja ali. No entanto, ao aproximar-se, engoliu seco. Havia um homem de traje social ajoelhado próximo ao altar, rezando em voz alta. Era o único indivíduo no local.

“Senhor, meu Pai, reconheço os erros de meu irmão, mas peço sua divina misericórdia, pois ele é apenas um tolo que ainda está a aprender com seus erros. Eu suplico, Pai, proteja meu irmão enquanto ele paga pelos erros que cometeu”, dizia o homem, fazendo sua voz ecoar pelo estreito ambiente. Podia-se ver lágrimas pingando no chão. “Ele jurou que jamais me olharia novamente, Pai, mas não consigo não amar um irmão… eu não consigo não amar o próximo, Pai. Proteja aqueles que estão ao meu redor.”

O garoto emocionou-se com a cena, admirado por tamanha sinceridade no altruísmo do homem. Uma floricultura do outro lado da rua teria problemas, no dia seguinte, com o crescimento excessivo e inexplicável de suas plantas. “O mundo precisa de tanta fé e compaixão!” exclamou o garoto, mentalmente. Parecia um sonho confuso: três indivíduos tão singulares foram encontrados por ele justo naquela noite. Justo quando sua decisão de dar um basta na raça toda já estava quase tomada por definitivo.

“Mas não sei…” refletiu, de volta à avenida, sentando-se na sarjeta, “dos demais indivíduos ‘especiais’ que já encontrei, nenhum deles provou ser bom o suficiente para o que vem pela frente.”

Passou horas e horas ali, refletindo profundamente sobre a fragilidade dos aspectos positivos no ser humano e calculando os riscos da execução de um plano B. Pensou muito no significado de manter a espécie, dando-se a oportunidade de ser egoísta por um momento e descobrindo que não ganharia absolutamente nada com isso.

De repente, ao olhar para um prédio de mais de dez andares, notou que apenas uma das janelas estava acesa, em um dos andares mais altos. Havia uma figura estranha com metade do corpo inclinado para fora da sacada, fumando um cigarro. Custou até que o garoto conseguisse identificar de que se tratava: era uma mulher vestindo uma fantasia de urso pardo. Após terminar o cigarro, começou a dançar sensualmente onde estava, toda desengonçada, provocando gargalhadas no menino, que assistia àquilo secretamente.

Ela brincou de “Pedra, papel e tesoura” consigo mesma, zombando da mão perdedora; ensaiou uma dança russa desastrosa, e acabou escorregando; discutiu consigo mesma, trocando de lugares para assumir mais de um papel; tudo isso ainda na sacada, vestindo o traje de urso. Sabe-se lá o que a fazia agir daquele modo, mas a mandíbula e a barriga do menino doíam de tanto rir. Apenas uma coisa era certa: ela era feliz, mesmo estando sozinha. E, assim como a fé inabalável do homem que rezava em meio a tanto barulho sem propósitos palpáveis, a janela acesa ilustrava o oásis que aquela mulher estabelecia, por conta própria, com sua felicidade intocada em meio a tanto ódio, tristeza e desesperança.

O menino levantou-se com a cabeça erguida, ainda recuperando o fôlego, e focou o olhar reto em um ponto aleatório. Chegou à conclusão de que, por mais que não valesse a pena, poderia ao menos entreter-se com aquelas pessoas. Jamais pensava sobre isso, mas ele também se sentia solitário, às vezes, e isso poderia tornar-se um problema caso o ser humano fosse extinto de uma só vez.

“Talvez dê certo com esses… vamos ver”, concluiu, com as mãos nos bolsos e um sorriso de canto, enquanto caules cresciam verticalmente ao seu redor. “É uma pena que, sendo seres humanos tão acima da média, provavelmente sejam aqueles que passarão por mais dificuldades. A natureza é, mesmo, muito injusta”, pensou, virando-se de costas. “Que o expurgo comece”, disse, em voz baixa, e duas rosas brotaram instantaneamente dos caules. Em seguida, o garoto desapareceu nas sombras de um beco qualquer.


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Notas finais do capítulo

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