Vermelho-sangue escrita por Ninguém Especial


Capítulo 1
Chapter I


Notas iniciais do capítulo

O primeiro capítulo tem como eu-lírico Samuel Castro. Espero que gostem. Boa leitura :3



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Eu entrei na sala.

A verdade é que eu não fazia ideia do que me esperava atrás daquela grande porta de madeira. Acho que se eu soubesse do que se tratava não teria nem mesmo saído da clínica onde eu agora moro. Teria simulado um surto de pânico e eles teriam me dopado, e eu faria isso quantas vezes fosse preciso só para não ter de tocar nesse assunto novamente. Não tocar em nenhum assunto sobre ela.

A sala não era nada convidativa e me assustava um pouco. Quando dei meu primeiro passo, trêmulo, o homem sentado de costas para a porta em uma grande cadeira de couro se levantou e com um enorme sorriso forçado me cumprimentou. Pediu ao auxiliar que havia me trazido até sua sala que se retirasse, e fez uma pequena pausa, como se ainda estivesse pensando no que dizer.

Ele se levantou.

– Vamos pular as formalidades, afinal você ainda é uma criança, tá legal? Posso te chamar de Sam?

Longa pausa. Eu estava pensando, meio que não pensando.

– Sam. Você pode me chamar de Sam. Mas não sou mais uma criança – respondi com a voz um tanto tremula.

– Olha Sam, muito prazer! – disse rindo - Eu sou o Sr. Armstrong e este sentado na outra mesa é o Sr. Nielman – apontou para o rapaz me encarando, sentado atrás de outra escrivaninha - Mas você pode me chamar de Bob, se quiser.

– Bob. Apelido americano baseado na contração do nome Robert. Seu nome é Robert. Robert Armstrong. E aquele é o Sr. Nielman.

Eu não sei exatamente o porque eu falo assim. Como vi num filme uma vez: ‘a emoção é supervalorizada’. Eu era gago há uns anos atrás, e me tratava com fonoaudiólogos. Eu melhorei, mas depois do acontecido é como se eu tivesse desaprendido a me expressar. As palavras saem, mas não são coesas com a emoção. Além de que quando penso no que acabei de dizer é como se não tivesse sido eu, sabe? É difícil de explicar. É como estar fora de seu corpo enquanto ele toma as decisões por você.

– Isso mesmo. Você é um menino muito inteligente. Mas escute Sam, você sabe por que você está aqui?

Respondi com um longo silêncio, apesar de ter minhas suspeitas.

– Queremos falar com você sobre o que aconteceu com a sua amiga, a Clara. Vocês eram muito próximos, certo?

Uma longa pausa. Eu não queria responder a nada que qualquer um me perguntasse sobre clara, então optei por ficar mexendo em meus próprios dedos, como se fosse algo interessante a se fazer. Pude percebê-lo examinando minhas unhas, como se procurasse algo nelas. Algum detalhe que as diferenciasse. Quebrei o silencio:

– Sim, mas...

– Você se sente confortável em dividir conosco os fatos de que se lembra? – me cortou.

– Sim, mas...

– Tudo bem, vou explicar como funciona. Talvez já tenha visto na televisão ou um filme, quem sabe. Eu vou lhe fazer algumas perguntas e deixar você se explicar e dizer o que tem a dizer. Enquanto isso o Sr. Nielman ali vai escrever tudo o que você disser. Então, mesmo sendo apenas um garoto, preciso que prometa que vai dizer somente a verdade ou estará infringindo a lei. Você me compreende?

Afirmei balançando a cabeça para cima e para baixo.

– Tudo bem então, comecemos. – outra pausa – Sam, você se recorda de onde estava na quarta-feira passada durante a tarde?

– Escola. Era lá aonde eu me encontrava.

– Pode me contar o que aconteceu naquele dia na escola?

– Tá. Meu pai tem uma ONG. Uma ONG para cachorros abandonados. Nós cuidamos deles durante um tempo e depois encontramos um dono para eles, o que não é muito fácil já que os cachorros são vira-latas e as pessoas estão sempre procurando por ‘cachorros de raça’. Isso, cachorros de raça. E naquele dia de manhã alguém abandonou uma cesta de filhotes na porta da ONG. Eu queria dizer que isso não é comum. Isso é comum. Eu não posso dizer.

– Sim, eu compreendo, mas o que precisamos saber é sobre a escola. Sobre a clara, especificamente.

– Eu sei. É que esses cachorros eram de raça. Eram labradores. E quando cheguei à escola e abri minha mochila vi que um pequeno filhote tinha entrado lá dentro. Dentro da mochila. Não sei como ele estava bem, já que eu sempre vou de bicicleta e passo por muitos buracos. E a Clara estava comigo quando eu o descobri. Dentro da mochila. Ela o chamou de ‘bag’, que é bolsa em inglês. Ou mochila. – respiro – Sabe, eu sempre tive uma ligação muito forte com animais. Gosto de animais. Gosto não, amo. Principalmente os cães. E lobos. Me sinto como se fosse um deles, às vezes. Queria ser um deles, às vezes. Eu até estava deixando as unhas crescerem e não fazia a barba. Mas não posso fazer isso na clínica. – suspirei - Se pudesse, eu largaria tudo e iria embora com meu bando. E a Clara viria comigo.

– Então ela gostou do cachorro?

– Sim, ela gostou muito dele. Muito. Não me deixou levá-lo para casa, preferiu mantê-lo escondido na minha mochila.

– E você fez isso?

– Sim.

– Por quê?

– Porque eu gostava muito dela, e não queria que a gente brigasse. Ou vê-la triste. Ela ficava tão bonita sorrindo que era mágico estar com ela. Eu estava sempre com ela. Ela era a minha melhor amiga. Ela era a minha única amiga. Mas agora que não tenho mais ela, eu tenho a Lucy. Acho que usei muito ‘ela’, não é?

– Podemos dizer que sim. – sorriu tentando parecer simpático - Mas quer dizer que você gostava muito dela?

– Eu faria qualquer coisa por ela.

– Até matar?

Eu gelei. Eu sabia o que ele estava tentando dizer com isso. Mas eu acho que ele não devia estar me ouvindo esse tempo todo pra me perguntar isso. Eu a amava. Mais do que uma mera amiga. Eu jamais faria nada contra ela ou alguém que ela gostasse. Nós éramos unha e carne. E de repente tudo acabou.

– Até matar – outro silencio. Sabe, ela era aquele tipo de menina que está sempre feliz. Ela era carismática e simpática. Vermelho. Nossa como ela adorava vermelho. Sempre dizia que o seu presente favorito em toda sua vida foi um casaco vermelho com capuz que eu a dei ano passado. Sempre ia para a escola com ele. Vermelho. E estava sempre sorrindo. Eu amava ver seus olhinhos sorrindo, mesmo que não fossem pra mim.

– Como assim? Ela ‘gostava’ de outro cara?

– Ela estava saindo com o Sr. Hopper.

– Sr. Hopper?

– Sim, o Sr. Hopper. Ele é o psicólogo e orientador vocacional da nossa escola. Ele também dá aulas de inglês avançado para o ensino fundamental. Ele é um cara legal. Sr. Hopper. Mas eu acho errado o que ele fez.

– O que ele fez?

– Ele foi falar com o Sr. Silver sem avisá-la antes. Ele não podia, ela não tinha deixado. Ele não podia sem ela deixar. Não.

– Sr. Silver, o pai da clara?

– Sim. Ela sempre foi uma garota muito feliz, sabe? Feliz. Ela estava sempre sorrindo. Estava sempre feliz. Eu amava isso. Mas ela só estava feliz na escola. Nunca gostou de falar da vida pessoal. Com ninguém. Nem comigo. E há umas semanas atrás ela começou a ficar estranha. Ninguém viu, nem ele. Mas eu vi. E falei para ela ir conversar com ele que podia ajudar. Porque eu fiz isso? – exalto a voz – Porque eu fiz isso?

Quando dou por mim eu estou gritando e chorando ao mesmo tempo. Soluçando. E eu não consigo controlar, é como se tivesse tomado conta do meu corpo. Meus punhos estão cerrados e sobre a mesa, como se tivesse os socado com tanta força que grudaram. Bob não disse uma sequer palavra. Ele esperou eu me acalmar.

– Está tudo bem? – ele me perguntou, estendendo uma caixa com lenços de papel.

– Tá – consegui dizer depois de controlar minha respiração.

– Acho que devemos parar por hoje. Não quero forçar seu limite, isso poderia prejudicar a investigação além de que não lhe faz nenhum bem. E você não pode ficar muito tempo longe da clínica. Mas antes que vá, eu gostaria que você me respondesse duas perguntas. Só essas duas e então você está livre para ir.

– Tudo bem. Tudo bem bob – sequei as lagrimas.

– Ela te falou ou você chegou a saber, de um jeito ou de outro, o por que dela não estar bem?

– Sim – respondi de pé.

O auxiliar, rápido, já estava na sala, com as mãos em meus ombros, olhando para a saída, onde eu assinaria alguns documentos provando que fui eu quem depôs.

– Só mais uma coisa Sam: o que era? O que a entristecia?

– O pai dela batia na mãe dela.

Sorri friamente, agradeci e me retirei, enquanto o Sr. Armstrong voltava sua cadeira de costas para a porta.


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Notas finais do capítulo

E aí, o que estão achando? Comentem, gritem, rabisquem na minha parede: apenas seja sincero, que críticas são sempre bem vindas:)



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