A garota entrou no ônibus. Seus cabelos escuros, curtos e ondulados estavam meio presos, meio soltos. Os olhos, da mesma cor, exibiam um leve brilho em contato com o sol que despontava no horizonte, e entrava perpendicularmente pelas janelas da direita. Algumas manchas roxas estavam nas bolsas abaixo de seus olhos, ainda que quase imperceptíveis em sua pele jambo.

Com a expressão sonolenta e as feições fortes, transitava de um cano a outro, lutando para equilibrar a pilha de livros em seus braços. Um dos fones de ouvido estava pendurado por seu casaco azul petróleo, que contrastava com a calça da escola de um tom de vermelho fosco.

Quando finalmente liberaram um lugar, ela se sentou. De longe, o topo de sua cabeça ainda era visível. Ela virava constantemente o pescoço para sua diagonal esquerda, e mexia num cacho que caia por sua bochecha, como se fosse um hábito nervoso e compulsivo, mais ou menos como roer as unhas.

Havia alguém que a observava todos os dias (pegavam o mesmo ônibus, no mesmo horário). Por mais que a garota fosse completamente normal, algo chamava a atenção. Havia algo intrigante nela, e a observadora era fascinada por esse mistério nas pessoas. E aquela menina, em especial ajudava a vencer o tédio.

Passava o todo o longo tempo de viagem imaginando as outras características prováveis dela. Imaginava a voz (nem muito fina, nem muito grossa, e com uma leve rouquidão), o jeito como sorria, o olhar indecifrável banhado pela luz do sol nascente. Pensava se não tinha nenhum namorado, ou talvez um admirador, que apreciasse sua beleza não da forma como sua observadora anônima, mas sim com outras intenções.

Imaginava também situações cotidianas, ou até mesmo fantásticas, e a encaixava. Até o dar o ponto dela. Um antes, ela apertava o botão laranja, sem se levantar. Pegava seus livros, e punha a mochila do Finn nas costas. Logo depois, levantava-se com cautela, mais uma vez segurando-se firme no cano da “sanfona” do ônibus duplo.

A anônima observava seu rosto, e tentava gravar cada mínimo detalhe, cada linha, cada ponto. Ainda que todo o processo se repetisse no dia seguinte, era como um ritual. Não sabia quando, mas iria desenhá-la. E colocar todos os detalhes observados no papel.

Antes de descer, rolou os olhos por todo o veículo, e pousou-os em sua “admiradora secreta”. Nenhuma das duas nunca diz nada. Apenas se encaram em silêncio. A admiradora se despede com uma olhar incisivo, mas nada inconveniente, e a outra retribui.

Esta nem sequer sabe o nome da garota, mas todas as manhãs, as duas solidificam uma relação de intimidade apenas pelo olhar, e trocam no pensamento palavras que nunca serão ditas.

E agora, sozinha, a observadora anônima volta sua atenção para a janela, e desce dois pontos depois, ansiando pela manhã seguinte, quando as duas desconhecidas se encontrarem novamente.