The 69th: For What I Believe In escrita por Luísa Carvalho


Capítulo 32
Do Leste ao Oeste


Notas iniciais do capítulo

Aviso chatinho: vou precisar postar os capítulos com menos frequência nesse final de ano porque estou sempre viajando de pouquinho... Espero que entendam e que gostem do capítulo (:



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/530909/chapter/32

(POV June)

Quando pequena, antes de ter meus olhos abertos para a verdadeira Capital, eu costumava me perguntar sobre como seria ter uma família, uma vida pronta o bastante para poder sentar-me e pensar “eu consegui”. É claro que, na minha cabeça, eu atingiria isso na Capital, com um marido rico ao meu lado e, quem sabe, em uma casa grande como aquela em que eu morava. E é claro que não consegui nada disso no 6, até porque sou nova demais para ter uma vida arranjada o bastante para ser apreciada de forma passiva. Contudo, chega um momento em que tudo no distrito dá certo a ponto de, pela primeira vez em um bom tempo, as coisas parecerem estar estáveis.

Como costumava ser na Capital, tenho uma rotina: tiro a maioria das manhãs para fazer companhia a Lyandra e ajudá-la com o que posso - depois de deixar os gêmeos na escola, obviamente. Durante as tardes, vou à casa de Constance e, juntas, conseguimos, preparamos e distribuímos levas de comida ao longo de todo o lado Leste. Quanto aos fins de tarde e noites, ambos são sempre tranquilos, tanto quando passo tempo com Burton como quando fico sozinha em casa com os gêmeos. Tudo está dando tão certo que nunca mais tive dúvidas sobre vir ao 6 ser a coisa certa; agora tenho certeza de que não há realidade melhor para mim.

É claro que nem tudo são rosas, porém. Não acertei as coisas com Kryanna e a tensão desconfortável entre nós é tão gritante que até Mathew e Daniel pareceram notá-la. Quanto aos furtos com Constance, houve problemas como vezes em que fomos quase descobertas e um ou outro pequeno interrogatório envolvendo Pacificadores desconfiados. Além disso, parecemos ter uma sombra; viemos nos esforçando para manter a discrição, pois vez ou outra notamos silhuetas curiosas na floresta; felizmente, nada disso durou mais do que uma semana - por sinal, tenho a impressão de que o caminho anda até mais livre agora.

Por fim, eu e Burton tivemos algumas brigas quanto a superproteção. Às vezes sinto falta de confiança dele em mim; e, a essa altura do campeonato, não me resta nada a não ser perder um pouco a paciência. O pior dos casos foi quando estávamos na rua poucos dias depois de nossa entrevista ter ido ao ar. Um pedestre aleatório me parou e disse algo a respeito do jeito “imaturo” de que lido com a morte de Cameron. Antes que eu pudesse me defender, porém, Burton se pôs na frente e quis fazer o mesmo. Apesar do motivo ridículo, admito, acabamos gritando no meio da rua e, quando me dei por mim, o foco da discussão era completamente diferente e remetia a algo bem, bem mais fundo.

– Por que gastou tanto tempo esperando por mim em primeiro lugar, hein? Se quero sempre fazer tudo sozinha, por que achou que compensaria? Eu te deixaria de lado, eu não te valorizaria e blá, blá, blá.

– E você por acaso valoriza, June? Olha o que está dizendo depois de tanto tempo que sacrifiquei por você!

– Se não valeu a pena é só dizer!

E não nos falamos por três dias. Pensei que seria mais tempo, mas eu mesma admiti que sentia sua falta; minha sorte é que era recíproco.

Agora estamos bem, ainda mais porque recebo o apoio e o incentivo de Lyn todas as manhãs.

– Burton? - ela me pergunta sempre que nos sentamos em sua sala, quase como se estivesse seguindo um script ou algo assim.

E, tirando nos três dias de orgulho e em alguns poucos outros, eu sempre respondo:

– Tudo ótimo.

Lyandra é uma mulher de poucas palavras até quando conversa com pessoas em meio às quais se sente confortável. Compartilhamos diálogos sempre curtos e objetivos; nunca falo demais com receio de sobrecarregá-la. Mas há dias em que Lyn está particularmente inspirada, e essas são as manhãs de que eu mais gosto, pois é quando ouço histórias das mais interessantes - e confesso que ajo como uma criança ouvindo sobre a juventude dos avós. Não que a morfinácea seja velha; não, só aparenta ser.

– Minha mãe ensinou a pintar - Lyn me disse um dia, e me interessei no assunto logo de cara porque amo os desenhos espalhados por sua casa. - No meu aniversário, ganhei tinta e pintei flores, muitas flores. Mas depois de um tempo mamãe não gostava mais delas, só disso. - Ela apontou para uma seringa jogada no chão. - Mas eu pintei uma muito grande. Grande mesmo! Aí ela disse que era bonita.

Lyandra sorriu para o nada e então para mim, como se esperasse uma reação minha.

– Que linda história! - exclamei, alegre. - Você pintaria uma flor para mim, Lyn?

Ela não hesitou em aceitar o pedido, e naquele dia saí com um pedaço de papel extremamente colorido sob o braço.

**

Essa noite Burton vem jantar em casa. Saya me ensinou a preparar alguns pratos básicos alguns dias antes, e confesso que ainda sou péssima nessa coisa de cozinha. Porém, Burton, como o bom namorado que é, resolveu correr o risco de intoxicação por mim.

– Se o Burton morrer a gente faz o quê? - Mathew me pergunta enquanto estou colocando o prato de Burton sobre a mesa.

– Além de comemorar? Não sei, talvez venham nos entrevistar. - Então jogo as mãos para o alto e afasto-as como se estivesse apresentando algo importante. - “A morte de Burton Robertsen: entrevista com as testemunhas”.

Burton ri.

– Espero que eu não morra, porque ia ser uma péssima entrevista.

Depois de demasiada cerimônia, Burton finalmente experimenta o prato e diz que, mais do que comestível, é saboroso. Assim, tendo o Selo de Aprovação Robertsen como garantia, nós quatro jantamos juntos. Admito que a comida não está nem um pouco ruim; é um avanço, não?

Depois que coloco os gêmeos na cama, eu e Burton nos deitamos no sofá sem nada muito interessante sobre o que conversar. Isso, porém, só até que eu vislumbre o desenho de Lyandra pendurado na parede da sala e me lembre de que temos, sim, assuntos dos quais tratar.

– Burton - digo, endireitando-me para ficar de frente para ele no sofá -, eu tive uma ideia brilhante esses dias!

– Lá vamos nós… - ele comenta, e dou um tapa ligeiramente forte em seu braço para fazê-lo parar de rir.

– É sério! Já sei como fazer para passarmos pelo muro! - Burton olha na minha direção com os olhos apertados, como se duvidasse de que eu diria a seguir. Mas ele se surpreenderia; andei fazendo minhas pesquisas. - Pensei em usarmos a lógica de Constance: fazer com que os Pacificadores se distraiam por pelo menos alguns segundos, então pulamos o muro. É claro que sei que isso vai precisar ser em uma escala muito maior, então eu peguei o trem e, em vez de passar do Centro, parei na última estação Leste. Fui andando até chegar ao muro a pé e percorri o perímetro na direção da floresta. Acontece que, quanto mais distante do Centro, menos Pacificadores rondam. A gente tem chances, Burton, é só escolher o lugar perfeito!

– June, eu não sei o que pode ser grande o bastante a ponto de distrair aqueles brutamontes.

– Os gêmeos sabem fazer umas bombas caseiras…

– Um estalo inofensivo não vai mexer um dedo dos Pacificadores - Burton me interrompe.

– …Ou nós podemos pôr fogo em uma casa abandonada.

Pela primeira vez, ele me olha como se não houvesse acabado de escutar um absurdo. Então, encara a parede, pensativo.

– Sabe, todas ali perto são de madeira - comento em uma tentativa de direcionar seu raciocínio.

– E com tantos Pacificadores por perto não teria perigo algum, eles apagariam o fogo quase imediatamente.

Burton completando meus argumentos… É nesse momento que fica decidido o que faríamos no dia seguinte.

**

Como nos primeiros dias de aula dos meninos, Burton vai comigo até a escola. Dessa vez, porém, preciso me despedir dos gêmeos de uma forma um pouco mais especial.

– Mathew, Daniel - chamo os dois para perto de mim, abraçando-os -, eu vou precisar fazer umas coisas do outro lado do distrito, mas vou ficar lá até amanhã, no máximo. - Não sei nem se vou conseguir chegar ao outro lado do muro, quem dirá passar a noite lá. Mas decido que é melhor prepará-los para o pior, de um jeito ou de outro. - Tudo bem se ficarem com Saya enquanto isso? Ela vem buscá-los e vai passar a noite com vocês caso preciso.

Saya foi minha opção mais óbvia. Primeiro porque os gêmeos estão mais do que acostumados com ela, já que é sempre minha primeira opção quando passo a tarde fora, ou seja, quase todos os dias. O porquê dessa confiança toda? Nunca duvido que seja boa com crianças; é só olhar para o filho que criou.

Ambos assentem e eu beijo a testa de cada um.

– Amo vocês - digo. Daniel me dá um beijo na bochecha e Mathew diz o mesmo para mim.

Alguns passos em direção à estação de trem, algumas paradas até chegarmos ao Centro. Sozinhos, eu e Burton caminhamos até o ponto do muro onde a vigilância é baixa.

– Tem os fósforos? - pergunto a ele, que tira duas caixas barulhentas de dentro do bolso e entrega-me uma delas. Estamos no meio da floresta e atrás de uma árvore - um esconderijo que Constance me provou ser surpreendentemente eficiente -, relativamente distantes de toda movimentação. Em uma área remota como essa, não é surpresa que as casas estejam caindo aos pedaços, desabitadas há sei lá quantos anos.

Eu e Burton nos dispersamos, cada um indo incendiar uma casa em um ponto diferente para que os Pacificadores se dividam quando forem apagar o fogo. Chego a uma pequena cabana já sem telhado e entro pela porta - ou por onde deveria estar a porta quando a casa ainda era uma casa. Vou em busca de alguma peça solta e velha de madeira; não é como se eu fosse simplesmente jogar um fósforo aceso no chão e esperar que as chamas tomassem o local. Não demoro muito até retirar do próprio chão uma tábua frouxa.

Risco a parte áspera da caixinha com a ponta vermelha do palito, que rapidamente pega fogo. Porém, preciso de três daqueles para conseguir fazer com que a madeira faça o mesmo que os fósforos. Assim que consigo, corro de volta para a árvore próxima ao muro e encontro Burton à minha espera. Sorrimos um para o outro; há uma grande chance daquilo tudo dar certo.

A verdade é que incêndios - ainda que em casas vazias, de madeira e no meio da floresta - podem ser demorados. No nosso caso, não é nem próximo de imediato o momento em que as chamas tornam-se visíveis o bastante para causar movimentação entre os Pacificadores que, em um primeiro momento, começam a falar uns com os outros por rádio - coisa que já estou acostumada a ver. Mas a fumaça é escura e atravessa o céu, e o cheiro de queimado começa a tornar-se mais do que somente perceptível: é impossível de ser ignorado.

E o odor alarmante vem de ambos os lados da floresta. Após mostrarem-se claramente confusos quanto ao lado para que deveriam correr, os Pacificadores finalmente se dividem e, exatamente como eu e Burton esperávamos, deixam parte do muro livre para nós.

– June, vamos! - Burton grita enquanto me puxa pelo braço. Corremos pela floresta como se não houvesse amanhã e conseguimos alcançar a estrutura de pedra antes de qualquer sinal dos guardas.

O muro é alto, mas nem tanto. Burton ajoelha-se no chão e faz uma espécie de escada para que eu o escale; a altura proporcionada por ele é suficiente, então não hesito em pisar nas suas mãos, que me empurram para cima. Não há cerca elétrica no topo, mas sim arame farpado. Porém, eu estive na Arena e minhas botas são grossas; não tenho nada a temer.

Os cortes ardem a princípio e eu me esforço para conter um grito quando o arame enferrujado rasga minhas calças e corta minha pele. Perco um pouco o equilíbrio e é difícil manter-me calma sendo que minhas botas parecem escorregar como se tivessem sido banhadas em óleo. Apesar disso, não caio; atravesso o muro e ainda tenho a sorte de aterrissar em um telhado, tendo estabilidade suficiente para esticar as mãos do outro lado da parede e tentar alcançar Burton para puxá-lo para cima.

Porém, uma gritaria se aproxima, e não é do meu lado do muro. De cima do telhado, enxergo Pacificadores retornando de ambos os lados da floresta, além de outros vindo do resto do muro; provavelmente foram avisados de que houve uma quebra na segurança, que o muro ficou desprotegido. E, ao ver Burton parado em meio a tantos corpos brancos se aproximando, não tenho escolha a não ser gritar:

– Corre, Burton! Por favor, corra!

Ele olha em volta, provavelmente em busca dos Pacificadores. Seu rosto adquire uma expressão desesperada e ele volta a me fitar, mas dessa vez com pesar.

– June, eu…

– Vai! - É só o que consigo berrar, desesperada. Sei que Burton quer me deixar ali tanto quanto quero ficar sozinha.

– Sinto muito! - ele grita de volta, e o vejo correndo para longe dos capacetes brancos com velocidade impressionante.

Mas, enquanto foge dos guardas, ele afasta-se também de mim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Vish.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "The 69th: For What I Believe In" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.