Silent Hill: The Artifact escrita por Walter


Capítulo 25
Um Recado Vindo do Além


Notas iniciais do capítulo

"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música." - Friedrich Nietzsche



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Aproximo-me da mesa um tanto empoeirada. Era uma sala de professor como qualquer outra, tendo algumas estantes com livros, pouco espaçosa, com uma mesa, cadeira, computador e a pilha de livros repousando em cima, como se estivesse apenas me esperando para pegar um deles. O livro que me chama atenção tem o título de “A Ordem” e se parece mais com aqueles uma apostila de universitário. Pego o material encadernado e olho atentamente: não tem editora, ano de edição ou quaisquer das coisas formais que geralmente são obrigatórias nos livros, o que me faz entender que era mais um material confeccionado pelo próprio povo de Silent Hill. A capa mostra uma garota, que me parece muito familiar, mas que pouco consigo me lembrar. Embaixo da foto, está o título do livro.

Abro o livro e chego ao índice. Ele mostra assuntos diversos, mas alguns chamam a minha atenção. Um deles conta a história de Silent Hill, provavelmente o que o Thompson deve ter falado naquela aula, aquela aula onde tudo começou. Continuo olhando para o índice e vejo mais algumas coisas falando sobre a Ordem e outros assuntos, até que um deles parece saltar diante dos meus olhos. Ele remete exatamente ao que ando mais preocupado sobre aquela cidade: Assuntos Inacabados.

Começo a folear freneticamente o livro, na tentativa de chegar a tal capítulo. A poeira do lugar irrita um pouco meu nariz e tenho vontade de espirrar, mas me contenho. Continuo foleando rapidamente o livro, na tentativa de chegar ao determinado ponto o mais rápido possível. Finalmente encontro, e vejo uma espécie de artigo. O título é: Silent Hill e Os Assuntos Inacabados – por Chang. Sinto certo nervosismo ao ver o autor, mas decido começar a ler. Se eu ainda tinha alguma dúvida de que tudo aquilo havia sido um sonho ou real, essa duvida acaba de se dissipar agora. Tento ler lentamente, absorvendo cada palavra:

Silent Hill, uma cidade de muitos mistérios. Como visto nos capítulos anteriores, as coisas que cercam e caracterizam essa cidade reflete todo o seu envolvimento com A Ordem, responsável pela administração de tudo. É compreensível que deus seja o fator responsável, para que haja estabelecimento da verdadeira paz. Com base nisso, a cidade acaba se tornando um lugar onde muitos são purificados dos seus pecados e chegam a um verdadeiro conhecimento da verdade, tendo revelado na sua vida seus piores temores para que os enfrente e possam ser curados de uma vez.

Por sua misericórdia, deus não só pode trazer pessoas à cidade, mas também pode mantê-las até que sejam realmente purificadas. Seja por seus medos, seja por suas descobertas. Cada pessoa tem dentro de si coisas as quais necessitam de purificação, mas aceita-las é uma história bem diferente e complicada. Silent Hill, não exatamente à cidade, pois uma cidade por si só não tem poder algum sobre nada ou ninguém, mas os espíritos e deus por terem compaixão dos seres humanos, proporcionam isso à humanidade de modo que eles possam despertar para a sua natureza podre e sejam purificados.

Claro que, por ter sido tão misturada aos conceitos cristãos, A Ordem ganha muitas vezes uma conotação diferente do que realmente é, sendo muitas vezes comparada a uma espécie de purgatório. Mas é possível enxergar um fenômeno incrível nesse lugar através das observações que eu fiz sobre ele. Muitas pessoas chegam à Silent Hill, muitas vezes cientes do que fizeram ou nem tanto. A cidade (simplifico nesta palavra, mas como visto anteriormente, não a cidade em si) tão saturada de uma energia provida tanto pelos deuses como pelos fatos ocorridos nela, acaba projetando em si coisas que perpassam pelas mentes talvez muito doentes dessas pessoas, que muitas vezes são pouco envolvidas com a história do lugar. Isso ocorre porque elas pouco enxergam em si mesmas seus problemas e delitos, tendo a mente tão enevoada como a própria cidade. Tudo isso não passa de um ciclo, um ciclo constante produzido pelo lugar até que a pessoa consiga enxergar de uma vez por todas quem ela é e consiga (ou não) vencer seus piores medos.

Tudo isso entra em questões psicológicas, muitas vezes explicadas até mesmo pela própria psicanálise. Questões relacionadas entre vida e morte, quem a pessoa é ou era também são refletidas pela própria cidade. Entretanto, os mecanismos que a cidade se molda à mente de cada um não podem ser explicados com tanta clareza. Entretanto, dos casos já observados, a experiência em Silent Hill é única. A cidade em si é única a cada pessoa que entra, a cada passo dado ela se modifica, sendo como uma espécie de labirinto que se remonta e se desfaz constantemente, dificultando ainda mais a saída de dentro dela. Muitas vezes, se assemelhando também como uma mente humana, que se modifica preenchendo lacunas, que se altera a medida que novos desejos e necessidades são propostos. Uma mente confusa e incompreensível, esta é Silent Hill.

Dentre tais acontecimentos, foi possível observar que, ao estarem duas pessoas ao mesmo tempo no mesmo lugar da cidade, elas apresentaram duas percepções distintas do lugar, e até mesmo de um objeto em si ou coisa (monstro, descrito nos capítulos anteriores). Isso se dá porque algumas coisas parecem assumir formas diferentes, dependendo da experiência que a pessoa está passando pela cidade, refletindo assim a sua mente. Também foi percebido ainda que outras pessoas também possam influenciar na percepção da cidade. Pode-se citar o exemplo de Alessa Gillespie, que possuía uma mente tão doentia a ponto de influenciar na arquitetura, coisas e objetos durante anos...”.

Finalmente me lembro da pessoa da foto. Era ela, Alessa. O professor havia mostrado na aula, aquela bendita aula que deu início a tudo.

A cidade desdobra os piores pensamentos das pessoas e os expõem materialmente, de modo que elas não possam fugir de quem são e sejam capazes de compreender porque merecem a morte ou ser purificadas do que fizeram. Isso reflete ao desejo de deus, de purificar a Terra antes de nascer...”.

Fecho o livro. Se Silent Hill realmente possui todo esse poder, então porque que eu consegui sair? Porque que eu estou fora? Se eu tenho uma mente como Chang descreveu, porque não fui punido ou exposto aos meus medos? Mesmo que tenha sido exposto a alguns como manequins, lobos, aquela coisa com a espada... Eu não cheguei a conclusão nenhuma, e meus assuntos inacabados, se é que tenho algum, continuam inacabados. Eu estou livre de tudo isso, livre pra viver minha vida como quiser. Respiro fundo. Assim como das outras vezes, Chang deve estar enganado mais uma vez.

Deixo os livros em cima da mesa e volto para o carro. Nada mais faz sentido pra mim. Sento e pego a mochila, ainda tentando encontrar alguma coisa. Encontro mais alguns papeis: uns falando sobre A Ordem, outros que encontrei na cidade... Aos poucos, vou recobrando a memória de tudo que aconteceu em Silent Hill, desde o momento em que vi o lago Toluca até o momento em que vi aquela coisa no chão: o corpo do deus. Sinto um calafrio na espinha só de lembrar. Mas qual teria sido a ultima coisa que aconteceu? É então que puxo mais um papel de dentro da mochila, um papel que fala sobre um artefato, o Selo de Metatron. Era isso. O Selo de Metatron dá poder ao seu utilizador, isto é, se ele for o protetor sagrado. E eu sou, foi assim que Thompson me chamou, de “O Protetor Sagrado”. O poder de andar entre as realidades da cidade e até mesmo de sair dela. Eu não saí por merecer sair, eu saí porque dei a sorte de ser o protetor sagrado. E se eu sou o protetor, então... Então Anette corre perigo sem mim naquele lugar! Ela ainda vive, mas... Pode morrer a qualquer momento! De alguma forma, eu sei que preciso estar ali, que preciso protegê-la. Respiro fundo. Não quero ter que voltar lá, não quero ter que reencontrar tudo aquilo de novo e ainda mais que... Provavelmente soltei o artefato naquela câmara onde o corpo daquela coisa estava e terei que entrar lá se quiser sair dessa cidade de novo. Minha mente começa a se confundir e não sei mais o que pensar.

Volto para a mochila e remexo mais uma vez tentando encontrar algo. Então tiro a última folha, rabiscada de giz de cera. Era o desenho que Mateus havia feito, prevendo a chegada de Anette, o Selo de Metatron e a coisa com cabeça de Pirâmide. Mas não é mais isso que está desenhado. O que eu vejo são rabiscos de vermelho e preto, como se tentasse relembrar o contexto de Silent Hill quando imergida em trevas. No meio, está em branco uma frase escrita, com uma letra um tanto infantil. Tento ler e finalmente entendo o que está escrito:

Matt, venha me salvar. Estou perdido em Silent Hill!! Socorro!!! – Mateus.”.

Então é isso. Esses são meus assuntos inacabados? Anette e Mateus? Cabe a mim salvá-los, é isso? Não, não é apenas isso. Sei que deve haver algo mais, na verdade, tenho certeza. Mas, não quero. Estou livre, livre... Ou talvez nem tanto. Até quando Mateus iria me perseguir? Até quando suportaria saber que deixei Anette morrer? E Mateus? Porque morreu e ainda estava ali, diante daquele corredor e no meio da pista? Porque tudo isso? Ele não estava morto, eu não o tinha visto morrer? Fecho a porta do carro e ligo a ignição. Começo a dirigir de volta para o dormitório, tentando resolver mentalmente o que fazer se voltar ou se ficar. Se ficar, talvez seja atormentado para sempre. Se voltar, talvez nunca mais veja a luz do sol outra vez. Logo chego ao estacionamento, e ando lentamente em direção ao meu dormitório. De repente, tudo começa a ficar escuro de novo. Meu coração acelera mais uma vez e tento correr até meu dormitório, na tentativa de fugir daquilo tudo. O chão começa a cair e se forma um enorme abismo na minha frente, o qual eu teria caído se não tivesse parado rapidamente. O cheiro de podre invade o lugar, que de repente fica completamente vazio. A névoa toma conta do lugar, sendo evidenciada por um poste que se acende um pouco atrás de mim. Eu me viro e vejo o garoto com o casaco verde, Mateus. Ele olha pra mim como se estivesse chorando. Eu não me contenho e grito.

–MATEEEUUUS!! O QUE QUER DE MIM? ME DEIXE EM PAZ!

–Matt... – ele fala entre lágrimas – eu não posso. Você precisa me salvar! Por favor, volte à Silent Hill...

–NÃO! EU NÃO VOU VOLTAR! ME DEIXE EM PAZ!

–Não... Você prometeu me tirar daqui... – ele continua chorando. O medo começa a tomar conta de mim ao mesmo tempo em que sinto compaixão do garoto, o garoto que é tão parecido comigo... – Não... me deixe, por favor. Eu preciso de você e você precisa de mim. Volte, por favor...

Sinto uma lágrima escorrer pelo meu rosto ao vê-lo chorar diante de mim. Mas porque isso? Aonde acaba a realidade e começa a fantasia? Estou mesmo fantasiando? Então decido o que fazer.

–Mateus... Eu... eu voltarei. Eu cumprirei minha promessa, a você e a Anette. Eu vou voltar a Silent Hill e acabar com tudo isso!

Eu corro até ele, mas quando me aproximo, ele se desfaz como névoa e instantaneamente tudo volta ao normal. Vejo várias pessoas olhando pra mim como se eu fosse louco, como se estivesse falando com o vento. Viro-me em todas as direções, a universidade está completamente normal. Mas quando vou saber se vou ter outro acesso de loucura como esse? Até quando tudo isso vai continuar? Respiro fundo e volto caminhando para o carro devagar, tentando fazer com que as pessoas parem de me olhar como um louco. Entro e viro a chave. Ativo o GPS do celular, que marca 88h e 88min do dia 00 de 00 de 0000. Ligo o rádio que não emite nada mais do que um chiado e som de metal retorcido. Estranhamente, começa a chover fortemente. Ligo também o limpa para-brisa do carro. A voz feminina começa a me direcionar pelo caminho enquanto dirijo o mais rápido que o limite de velocidade me permite.

...

Não sei que horas são, mas chove bastante e está de noite. Paro o carro mais uma vez perto da construção, trancando todas as portas. Vai ser a última vez que vou dormir antes de pegar a pequena trilha e seguir mais uma vez para dentro da cidade. Talvez seja a última vez que vou dormir na minha vida, mas é melhor que ficar tendo acessos de loucura por toda a vida. Reclino a cadeira do carro, fechando os olhos e tentando “apagar”. Então, estranhamente a voz feminina do GPS do celular fala:

–Chegando ao destino final, Silent Hill!


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Notas finais do capítulo

Trecho correspondente à história de Anette

Ele a segura em seus braços. Teria sido difícil, mas tinha dado graças a Deus por Yana ter “facilitado” para ele. Ele sabia que seria procurado, que talvez o achassem e o matassem, levando sua pequenina menina. Mas ele tinha que fazer isso, sim... Pois era como se fosse uma filha para ele, a garotinha de seus sonhos. Depois de ter visto sua esposa morrer naquele terrível ritual, ele simplesmente parou de acreditar nas mentiras da Ordem. Silent Hill era um lugar falido a anos, e não fazia sentido esperar que a cidade voltasse aos seus dias de glória matando pessoas queimadas. Mesmo que ela quisesse passar por tudo aquilo, queimar pessoas para trazer um deus de volta a vida, se é que aquilo era um deus, era uma coisa horrível e sem sentido. O cristianismo sempre falava sobre o amor de Deus, mas para ele, aquele amor que a Ordem acreditava não era amor. Na história do cristianismo, Deus havia oferecido a sua própria vida através de seu filho em benefício da humanidade, mas na Ordem era exatamente o contrário e isso pouco mostrava misericórdia.

Enquanto a segurava nos braços, ele continuava correndo floresta adentro. Linda, ela repousava sobre seus braços enquanto ele corria. Talvez pudesse dar pra ela a vida que um pai poderia dar, e não uma vida regrada que à levaria ao fogo como ocorreu com sua esposa, ou quase esposa. Estava grávida, mas de alguma forma, a criança nasceu prematura depois do ritual e havia sobrevivido estranhamente, mesmo depois de ter a mãe queimada estando ainda no seu ventre. Ela tinha tido sorte, muita sorte. Sorte tão grande que pensaram até que ela seria deus. Mas claro que não, era apenas uma menina, uma menina como qualquer outra, ainda que a Ordem e Carl não vissem isso.

Ele parou embaixo de uma árvore. Talvez fosse possível descansar um pouco. Ao respirar fundo, ele acabou acordando a pequena bebezinha, que ao vê-lo sorriu para ele. Ela nada sabia sobre quem era ou até mesmo as circunstâncias do seu nascimento e tão pouco sobre onde estava ou porque estava sendo levada para longe da cidade natal. Apenas sorria. Seu sorriso mesmo sem dentes foi tão surpreendente para ele que não se conteve e sorriu de volta. Ela nem nome tinha ainda, pois ninguém poderia se apegar a garota que seria a mãe de deus. Ainda sorrindo, ele decidiu fazer o que já deveria ter feito a um ano.

—Anette... Seu nome será Anette a partir de hoje!

A bebezinha sorriu de novo, talvez demonstrando que gostou do nome. Ele a envolveu novamente com o lençol e continuou correndo, ciente de que assim conseguiria escapar da cidade para sempre.