O Leão em Vermelho escrita por Hel Corvisier


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Só leiam e comentem, mores.



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INGLATERRA, 17 DE SETEMBRO DE 1916.

Embora tão longe de casa, pelos rasgos ensanguentados no céu Hans ouvia os gritos estridentes da mãe chamando-o de volta. Do sul vinha sua voz, muito além da estrada, onde surgia tão tímida uma pequena aldeia que talvez nem nome tivesse. Ao norte, por sua vez, um casarão erguia-se moldado a uma aparente nobreza e às pompas de um burguês. A árvore sob a qual sempre repousava floria e secava ali, no meio do caminho, entre a riqueza dos Hinton e a relativa miséria de um povo quase que sem rumo, de certo modo agraciado pela extração de ferro e carvão na cidade mais próxima. Dia após dia, velhos, mulheres e jovens ainda sem idade para combater iam e vinham das minas, rastejando com suas roupas maltrapilhas e semblantes magros, sujos e angustiados. O senhor Miller, por exemplo, tinha suas fundas rugas tão manchadas de carvão que, às vezes, Hans desconfiava que ali cresceria uma jazida própria, muito embora os sorrisos e palavras do velho fossem tão puramente gentis.

— Eu vi você nascer, filho. — contava ele em muitos dos miseráveis jantares que compartilhavam na casa da tia, geralmente ao levar um pedaço de batata à boca torta. — Uma coisinha pequena nos braços da Frieda. Agora está tão grande que nem consigo acreditar.

Desconfortável dentro de sua própria pele, Hans apenas meneava a cabeça e abria um sorriso sem graça. Alto demais para idade, mal podia conviver com seus braços desajeitados, pernas esguias e o estranho modo como sua voz ia do agudo ao grave em um segundo sequer. Na verdade, ele parecia ter entrado naquela fase infame um tanto cedo demais, com apenas doze anos caindo sobre seus ombros que, aliás, eram exageradamente desengonçados enquanto andava. Um dia até achara um pelinho brotando da cara e então um riso dos lábios da mãe, a qual orgulhosamente disse que seu único filho estava se tornando um homem.

Hans não queria ser um homem; ao menos não para ser jogado na guerra e morrer por lá, feito um mosquito inofensivo perante os fuzis. Por enquanto, todavia, apenas orava aos anjos para que seu pai não tivesse tal destino. As cartas ocasionais eram ardentemente esperadas pelo menino, sempre questionando se a demora não significava algo mais grave, mas também convencido de que se esse fosse o caso, outra correspondência haveria de chegar, esta numa caligrafia muito diferente da do jovem sargento Wilhelm Mühlen. Com sorte e graças ao mesmo céu que aparecia em seus desenhos, os papeis vinham sempre marcados por aqueles riscos que Hans aprendera muito bem a reconhecer enquanto lia e relia as cartas escondido da mãe.

A início, sua mãe até permitia que ele se empoleirasse em seus ombros e lesse alguns pedaços das cartas, porém nos últimos tempos ela nem o deixava tocá-las. À noite, depois da franzina Frieda adormecer, é que o garoto descobria os diversos porquês de ocultarem tantas palavras dele. Em longas e inclinadas linhas, seu pai confidenciava as piores cenas da guerra, aquelas que eram ofuscadas, no começo, pelo orgulho de defender e lutar por um poderoso império alemão. O brilho, em uma só noite, se tornou sangue, e Hans agora temia até pelos jovens ingleses que estavam prestes a se alistar, filhos daquela aldeia diminuta que o refugiava apesar de ser uma criança alemã. Conflitos rugiam quiçá até os confins da Escócia, ainda que as ilhas britânicas estivessem, como seu pai mesmo escrevia, notoriamente protegidas pelo mar.

Contudo, seus soldados não estavam, bem como os de qualquer outra nação. O sangue que coloria o crepúsculo de cada dia, afinal, vinha de todos, fossem eles alemães, franceses ou ingleses. Uma metáfora macabra para uma criança de doze anos, sim, ainda mais para uma que costumava gostar tanto do entardecer, mas assim foi como o pai relatou: um francês morre exatamente como um alemão.

Arrastando a noite para o oeste, o sol preparava-se para sumir, findar-se na escuridão enquanto a pouca luz já não permitia que Hans observasse seus próprios riscos. Terminar aquele desenho em particular haveria de ficar para outra hora, quem sabe quando o outono voltasse dali a poucos dias e o rústico de cada árvore e folhagem tornasse a ficar sob o seu olhar e não sujeito às deformações de sua memória. Esboçar sua mãe rodopiando em meio a folhas dançantes era o mais fácil; o que o transtornava mesmo eram as paisagens, talvez pelo primor que o garoto nunca conseguia repetir no papel.

— Paciência, Hans. Isso é questão de experiência. — dizia sua mãe, em qualquer que fosse a situação em que sua ingênua urgência falasse mais alto que o silêncio costumeiro. — Nada vai vir do dia pra noite.

Pois do dia para a noite, quando a guerra nem era assim tão certa, lá estava ele partindo para Londres num navio um tanto duvidoso, mas que levava o nome do Príncipe Albert. Lembrava-se ainda do sorriso já se perdendo numa excruciante saudade, do rosto do pai se tornando um borrão na costa e o horizonte uma imensidão atordoante de azul, ondas e ausências. Deve ter desenhado tudo aquilo milhões de vezes, ou pelo menos o feito em seus delírios enquanto vomitava as tripas para fora ao movimento do mar.

Ao fechar o caderno depois de um último retoque, Hans se levantou, imaginando muito melhor os tabefes que levaria nas orelhas por chegar tão tarde em casa do que os perigos do próximo passo naquele crescente negrume. Os dias tornavam-se mais curtos, afinal, com a chegada do outono, mas na Inglaterra se anoitecia muito cedo; ou talvez nem amanhecesse direito. Na estrada, ao menos, esperava que estivesse, muito embora não se lembrasse de haver lama ali mais cedo e o casebre da velha e surda senhora Lincoln se distanciasse cada vez mais, a piscar na completa escuridão uma pequenina luz. O garoto chegou até a desviar-se um pouco mais, seguir na direção do brilho agora cada vez mais apagado, porém nem mesmo as estrelas eram confiáveis e as silhuetas pareciam todas iguais. Talvez não houvesse feito a maldita curva depois do antigo túmulo, preocupado demais com a ardência que seu rosto tomaria com os tapas da mãe, ou nem mesmo saído da estrada e a aldeia, na verdade, estivesse logo ali, abaixo da pequena col–

Bastou apenas um passo seu em falso e já escorregava ribanceira abaixo. Foram apenas poucos segundos até seu corpo parar de rolar, contorcer-se na queda, mas o pânico permaneceu inquieto no peito. As forças lhe faltavam e Hans mal sabia onde estavam seus dedos, no entanto sentia-os quebrados, fincados dolorosamente na terra úmida mas cheia de pedras. A surpresa pelo tombo gritava, os velozes instantes pelos quais escorregou cravaram-se em ambas as pernas e torceram a dor, principalmente na esquerda que, se não estava enganado, dobrara-se debaixo do peso de seu corpo todo doído, agoniado na imundície.

Rastejando os braços, ainda conseguiu agarrar o caderno contra o tronco e, a despeito do gosto de terra em sua boca, Hans tentou gritar por socorro até sua garganta arranhar e rezou, sim, rezou pelos ouvidos da senhora Lincoln.


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Notas finais do capítulo

REVIEWS, PELO AMOR DE DEUS? ♥
O próximo capítulo pode demorar.



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