O Professor escrita por Maxine Evelin


Capítulo 1
Capítulo Único - O Professor Ikeda




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Ikeda estava sentado em frente à janela, olhando a leva dos últimos estudantes que saiam pelos portões da escola, com uma expressão de tensão em seu rosto. Aquele havia sido um dos piores anos de sua vida. O divórcio do casamento de doze anos com a sua esposa, o agravamento da doença de seu filho e, agora, uma classe de incompetentes e indisciplinados.

Seu tempo como professor de literatura do ensino médio e os dois doutorados em metodologia de ensino, seus prêmios de excelência em docência. Nada daquilo valia a pena agora. Eram apenas pedaços de papel emoldurados na parede de sua sala. Teve um momento em sua vida que o trabalho resumia a sua felicidade, dava seu sangue e era recompensado pelos olhares atentos de seus alunos. Era respeitado pelo seu trabalho e tudo aquilo que lutara era transmitido em sua sala de aula.

Hoje, seus alunos eram retardados que não sabiam pensar fora da caixa, centrados em seus pequenos mundos. Otakus, que passavam grande parte do tempo presos nas lojas em Akihabara e grande capital.

Garotas que preferiam fazer dinheiro vendendo calcinhas usadas no Ebay, ou sonhando para ser uma atriz AV Idol, do que estudar para ser alguém menos inútil. Era uma grande afronta aos alunos estudiosos do tempo em que começou a trabalhar, lecionando nas escolas de menor prestígio.

Fechou os olhos, pensando naqueles alunos de roupas estranhas e cortes mais bizarros ainda, naquelas músicas esganiçadas e nas meninas ganguro, de pele extremamente bronzeada, que exibiam com orgulho a ignorância e suas roupas sensualizadas.

Bateu as mãos nos bolsos, pegando um maço de cigarros quase vazio, puxou um dos filtros que se sobressaiam com os dentes e acendeu o cigarro com um isqueiro barato. Baforejou na janela fechada, vendo a fumaça ofuscar seu próprio reflexo no vidro e ponderou sobre seu futuro naquele lugar. Pensou na própria história econômica do país, que encontrava-se à beira de um colapso. Presos numa bolha econômica que só aumentava, os jovens mantinham um posicionamento diferente dos mais velhos, sentados atrás de uma mesa esperando a oportunidade chegar, enquanto eram massacrados pela mão de obra barata dos chineses e da diligência e competitividade exacerbada dos coreanos.

Ikeda poderia ser um professor de literatura. Saber mais sobre Eiji Yoshikawa, Yasunari Kawabata e Murasaki Shikibu do que o próprio rumo socioeconômico do país, mas seu senso comum gritava que nada ia bem. Um país que, antes, tinha tanto orgulho, agora não mais sabia se ele mesmo retribuía esse orgulho com a mesma vontade. Coçou a cabeça ponderando sobre o próprio futuro quando assustou-se com o barulho de batidas em sua porta.

— Ikeda-san? Já é hora de fecharmos a escola. Você vem? — perguntou a professora Akemi, espreitando por uma fresta como se tivesse vergonha.

Akemi era daquelas pessoas, cuja natureza era meiga até demais. Do tipo que arranca suspiros das alunas mais novas por ser tão kawaii.

— Sim, já estou indo Akemi. Pode me esperar? Te dou uma carona até sua casa, se quiser. — respondeu Ikeda, apagando o cigarro na janela, formando mais uma mancha negra entre diversas no vidro.

Desabotoou o terno e afrouxou a gravata, olhou para a pilha de provas para corrigir e deu de ombros. Mais da metade daquela classe ia repetir em sua aula mesmo. Saiu da sala carregando sua maleta sobre o ombro, como um estudante despojado do kōtōgakkō. Uma sátira do próprio tipo de estudante que abominava.

Não podia negar que sentia atração pela professora que o aguardava no corredor com um enorme sorriso. Imitava os alunos, pois Akemi gostava daquilo. E isso era o bastante.

— Como está seu filho? — Akemi perguntou inocente, enquanto os dois caminhavam lado a lado pelo corredor da escola. — Você me disse que ele estava mal semana passada. — Akemi fez um gesto com seus beiços de magoada.

— Shinji está com meningite, está sob cuidados de minha esp…— ficou um momento sem falar, depois de tanto tempo uma separação não era fácil. — Da Risa. Ela está cuidando dele em casa, enquanto os papéis não saem.

— Entendo. — Akemi olhou para o além das janelas do corredor do 3º andar, para o pátio verde e vivo da grama aparada. — E você como está? — Perguntou, encostando em Ikeda, um leve aroma de rosas vinha de seu cabelo loiro e liso.

— Estou bem — Ikeda virou a cabeça para olhar o decote da professora. Como sua estatura era baixinha, Ikeda geralmente se notava observando sua silhueta por cima. Não obstante dos seios grandes de Akemi. —É meio complicado falar de mim. A verdade é que estou realmente desgostoso com o décimo ano. Bando de macacos retardados.

— Não diga isso Sensei! — A professora olhou para cima, encarando Ikeda nos olhos. E enfiou o dedo indicador na bochecha do homem. — São seus alunos, por mais… Uhm… Difíceis que forem.

— Difícil é soltar um tolete quando constipado. Aquilo é insanidade. — Ikeda fez uma careta com um bico enfezado. A professora parou, olhando para o homem caminhando a sua frente e começou a rir. — O que?

— Seu nojento! — E os dois riram feito dois adolescentes.

Desceram a escadaria e caminharam juntos até o Mazda de Ikeda. O professor olhou para Akemi e, com um sorriso, perguntou se ela iria querer uma carona até sua casa como sempre.

— Claro Sensei, mas antes, poderíamos fumar um cigarro juntos? — Perguntou Akemi para Ikeda.

— Você fuma? Desde quando Akemi-chan? — Retrucou Ikeda, esticando um maço de Marlboro para a professora que, com destreza, já acendia-o com um Zippo antigo que retirava do bolso.

— Fumava bastante na época da faculdade, antes de ter meus dois abortos. — Ikeda ficou calado sentado no capô de seu carro, observando a pequena mulher a seu lado. Naquele momento podia ver a fraqueza que havia por trás da máscara de alegria constante de Akemi. Sempre temos cicatrizes que tentamos esconder, mas uma hora elas aparecem quando estamos mais vulneráveis. Sempre. — Fui no ginecologista esses dias, sabe como é, rotina. Não posso ter filhos Ikeda. Meu útero está danificado, não foi por causa do cigarro. Mas, bem, agora não tenho porque não fumar. — a voz de Akemi saia um sussurro quase inaudível. — Não sei porquê estou te contando isso. Você já tem seus problemas, sua esposa e filho.

— Não. Não tem problema Akemi-chan! Há coisas que é melhor botar pra fora do que deixar consumir por dentro. Entende? — Ikeda, tentava se explicar, fazendo gestos e coçando o cocuruto no processo. Era um completo inútil tentando ser uma pessoa compreensível.

A professora riu, jogando a bituca longe com um peteleco, contrariando as regras japonesas de não jogar lixo no chão. Levantou seu corpo, com um impulso nas nádegas. Girou o corpo, segurando a pasta e livros contra os seios fartos, falou:

— Muito obrigado pela companhia Ikeda-san. E pelo cigarro também. Hoje terei que dispensar sua carona. Vou passar no centro para fazer algumas compras, mas agradeço muito a carona oferecida.

— Ah. Tudo bem. — O homem analisou a situação e ponderou sobre a necessidade de se esconder novamente atrás da máscara falsa de professora Kawaii. — Quando você precisar, bem, é só pedir! — Deu um sorriso igualmente falso e um tanto sincero.

Continuou fumando sentado no capô de seu carro, vendo a figura de Akemi desaparecendo após virar a direita no portão principal. Jogou a bituca ainda acesa no Jardim e logo saiu atrás dela com seu Mazda. Deu a volta no quarteirão, pegando um caminho diferente de sua rotina e não demorou muito para encontrar a professora na companhia de um homem mais novo.

E aquilo foi o suficiente para transformar toda aquela atração que ele sentia por ela em repulsa. Todos nós somos manipuladores. Todos nós mentimos para moldar a verdade que nós percebemos. Passou a viagem de volta para sua casa, pensando em qual momento Akemi estava sendo sincera com ele.

Passou pelo centro de Tóquio devagar, aproveitando o trânsito sempre carregado para deixar a mente divagar livre por entre os outdoors digitais e placas de neon que subiam até o céu. Propagandas típicas japonesas que muitas das vezes não eram compreendidas pelos ocidentais. Muitas vezes, nem por eles mesmos. Uma coisa complicada, cultural de ser livres em expressão, além de costumes que por vias são tabus.

Enquanto aguardava o farol abrir, ouvia a música do Torianse abafada pelo murmúrio das pessoas atravessando a avenida. Uma garoa começara a cair e algumas pessoas visando proteger os cabelos, já brandiam os guardas-chuva abertos sobre suas cabeças.

Ikeda ponderava sempre nestes momentos sobre o destino de cada uma dessas pessoas. O que fariam, quase sempre pensamentos negativistas passavam pela cabeça, e ele as afastava com um chacoalhão. Assim que o farol abriu, ele acelerou e somente pensou em sua casa, precisava mais que nunca descansar a mente.

***

Abriu a porta de seu apartamento com uma certa dificuldade, havia muito lixo espalhado no chão e pedaços de jornal antigo enganchavam no batente da porta. Ikeda deu uma ombrada, empurrando a porta o suficiente para passar, entrou em sua casa.

Havia muita sujeira acumulada naquele corredor. Revistas AV rasgadas, folhas de jornal amassadas, garrafas PET de refrigerante, embalagens de salgadinhos, lamens instantâneos e roupas sujas. O homem tirou seus sapatos e colocou-os na prateleira a esquerda, junto com seu guarda-chuva. Tinha começado a chover muito antes de chegar em casa e agora Ikeda sentia aquela vontade de tomar um banho quente.

Bateu o dedo no interruptor ao lado da porta e viu que as lâmpadas não ligavam. Estaria ele atrasado com as contas novamente? Olhou para a bagunça que ficava pior a cada dia e deu de ombros.

— Mais tarde eu procuro a carta de cobrança, estou com muita fome. — Disse Ikeda para si mesmo em um sussurro. O homem as vezes gostava de narrar suas ideias para ouvir sua própria voz.

Caminhou devagar, empurrando com a canela grande parte da imundice que se acumulava no corredor. Sorriu ao chegar na cozinha e ver sua mulher, ou melhor, ex-mulher e seu filho, sentados à mesa. Ambos feitos de papel-machê e uma foto grande impressa colada na cabeça redonda sem face.

— Tudo bem com vocês? Como foi o dia? — Perguntou Ikeda, bagunçando a peruca da cabeça do filho e dando um beijo no rosto da ex-mulher.

— Foi bom. Assisti Doraemon e eu brinquei de massinha de modelar a tarde toda. — Ikeda fazia a voz do filho com uma certa inocência em sua voz.

— Ah! Mas você disse pro seu pai a sua nota na prova de matemática?

— Uhm? Ele foi mal? Shinji! O que papai falou? Tinha que estudar, coisa feia, vá para seu quarto, está de castigo!

— Mas pai?! — Começou o menino.

Mas nada! Você vai para seu quarto e só vai sair depois de tirar notas boas. — Disse Ikeda dando um soco na mesa e apontando para o quarto.

Ikeda levantou-se e pegou o boneco com cuidado, foi andando batendo os pés no chão até o quarto de seu filho e abriu a porta simulando uma criança com raiva. Não se importou com o cheiro forte de decomposição que vinha do quarto escuro e voltou para a cozinha, sentando na cadeira, ele olhou para Risa e disse indignado:

— Essas crianças, tão rebeldes, só estarem melhor de quando estavam enfermos, que já mudam de personalidade.

— Shinji está passando por uma fase difícil, ele não quer entender que estamos nos separando…— A voz de Risa era uma voz tímida, sua versão de mulher submissa.

Nem eupensou Ikeda.

— Uhum. Imagino.

— Você só imagina Ikeda. Nunca faz nada, fica aí só ponderando sobre o que fazer, o que fazer, vocêé o cara mais fracassado que já me relacionei! O que adianta ter cérebro se não tem bolas?

— Cale a boca! — Ikeda bateu a mão na mesa, derrubando embalagens de comida e bentôs vazias no chão. — Cale sua boca agora.

— Ou o quê?! Vai fazer o que me por de castigo também?

Pode ter certeza. Pode ter certeza que sim. Pensou o homem com seus olhos cheios de fúria, um castigo em que jamais irá sair.

Alguém naquela casa teria que ser responsável, alguém naquela sala teria que ser inteligente, tirar notas boas. Ser um completo orgulho. Nem que fosse ele mesmo.

— Vou corrigir minhas provas, não me encha o saco.

Levantou e enquanto caminhava entre a sujeira e o cheiro de mofo e decomposição que vinham do quarto de seu filho, foi até a sala de estudos, seu santuário, sua maravilha.

Passou a chave três vezes e tirou o cadeado do ferrolho que prendia a porta. Abriu a porta devagar e bateu nos interruptores na parede. Uma luz fria acendeu e iluminou o pequeno quarto. E lembrou que havia desligado a chave de força de grande parte da casa, para evitar chamar atenção demais.

Parte de sua máscara era de um professor que, após a separação de sua esposa, passava quase todo o dia fora de casa. Exceto por seu santuário. No fundo do quarto estava uma menina, acorrentada a parede tanto pelos calcanhares quanto pela coleira de aço no pescoço.

— Olá Nana, como está? Estudou bastante hoje? — Perguntou Ikeda com um sorriso enorme no rosto.

Apoiou a mão na parede com isolamento acústico feitos com caixa de ovo e olhou para o balde cheio de excrementos avermelhados no outro lado da parede, ao se aproximar a estudante encolheu-se contra a parede igual um animalzinho indefeso.

Ikeda não pode parar de sorrir, pegou o balde, olhando para seu conteúdo, fez uma cara de dor e levantou para ir jogar os restos no banheiro.

— Desculpe por machucar você internamente dessa forma — começou Ikeda, falando alto do banheiro — Juro que não foi por maldade. Bem, juro que não foi por querer na verdade.

Riu. E sua risada parecia um eterno tormento para Nana que levava as mãos aos ouvidos.

— Olha, vamos ver como você vai na prova de hoje. — Ikeda puxou a única cadeira da sala para mais perto e pegou um pequeno quadro-negro encostado na parede, jogou-o contra a menina, pegando um punhado de giz de seu bolso, tacou como uma chuva em cima da cabeça da estudante.

Havia pego Nana após fingir que estava levando a kogal para sua casa, ela poderia passar em sua matéria. Era tão fácil, essas meninas estúpidas adoravam se fazer de objetos, de ir atrás das outras. E agora, pagava por faltar as suas aulas, cochichar com as meninas do fundão.

Simplesmente pagava por não ser a estudante que Ikeda queria que ela fosse.

— Sabe quem perguntou por você? — Nana olhou para o professor, as mãos trêmulas e fracas pegando a pequena lousa — Ninguém. — Ikeda deu uma gargalhada — Brincadeira, algumas pessoas de sua sala, creio que nem seus pais lembram de você. Ah é! Sua mãe e pai são bêbados escrotos, né?

Ikeda tacou mais alguns pedaços de giz na face da menina, e logo começou a fazer perguntas sobre literatura. A menina tirava o cabelo loiro falso do rosto torturado e cheio de manchas na pele bronzeada artificialmente. A cada pergunta, em meio a choros e gritos respostas eram escritas na lousa.

A cada resposta certa, mais Ikeda tinha orgulho de seu método de ensino, mais ele se orgulhava de seu método nada ortodoxo e mais ele se enfurecia de seus prêmios que nada adiantavam. Até que Nana cometeu um deslize e errou um nome de uma obra de Shakespeare. Eram tantos autores japoneses, que ela mal lembrava quem era o cara.

Nana começou a chorar, quando a régua de madeira bateu em seu rosto e berrava quando o professor prendia cabos elétricos nos dedos de seus pés. Os cadeados brilhavam dourados esperando somente a descarga elétrica para ficarem mais vividos e fazerem estalidos que Ikeda achava tão gostoso de se ouvir.

— Olha, vai ser só um choquinho. Você nem vai sentir. — Disse o professor, prendendo um cabo na língua da menina após ter prendido suas mãos com uma fita silvertape.

***

O cheiro de torrada estava forte.

Ikeda assistia ao jornal da NHK, enquanto o ventilador tentava afastar o cheiro de carne queimada que vinha do corredor. Ele havia exagerado um pouco na dose, mas era coisa do ofício. Amanhã ia passar em Seven-Eleven e compraria um desodorante de pinho.

Sentiu o celular vibrar ao lado da coxa e olhou no visor, a conversa que estava tendo com uma das alunas do último ano.

Bunnychan76: Entao sensei... Como fica aquilo que conversamos

Senseisama: Sim. Creio que posso fazer. Por você sim.

Bunnychan76: É? Quando?

Senseisama: Podemos passar em casa para ver isso, o que acha?

Depois de um tempo a resposta chegava e Ikeda não conseguia tirar o sorriso do rosto.

Bunnychan76: mas é claro sensei!

Senseisama: Ótimo. Amanhã nos vemos então.

Ikeda desligou a tela do celular e sorriu, tinha que limpar a casa e cuidar do fedor que se espalhava. O fedor estava cada vez mais forte. Já, já poderiam desconfiar e lá iria por àgua a baixo sua mentira de estar com uma família destroçada.

Mas estava disposto a fazer isto só mais tarde. Mais tarde. Agora tinha que pensar um pouco em como seria a aula de amanhã e talvez, pensar em como trazer Akemi para casa e dar uma lição de moral nela.

Amanhã veremos

Arth 07/14


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Notas finais do capítulo

Espero que vocês gostem do conto. Dei uma boa pesquisada no dia a dia japonês para poder escrever este conto. :)Muito obrigado por chegar até aqui. :D