Sinfonia do Vazio escrita por ornitorrinca


Capítulo 1
Oneshot


Notas iniciais do capítulo

Como os personagens de "Fim", esses aqui também fazem parte de um projeto maior que pretendo postar em breve.



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– ‘Tá esperando o que, branquelo? – a voz rascante do homem penetrou os ouvidos do garoto. – Não tenho o dia todo.
Embora duvidasse seriamente que a agenda do homem ao seu lado estivesse tão cheia quanto este clamava, o garoto resolveu não retrucar. Sabia o que aconteceria se o fizesse.
O braço pendia ao lado do corpo, a mão apertada contra a pistola gélida. Ele respirou fundo, estendeu a arma e atirou.
Um patinho. Dois, três, quatro, cinco patinhos... Ah, essa foi quase. Isso! Seis patinhos. Já havia ultrapassado a marca anterior, pelo menos.
– 60 pontos – resmungou o homem mais velho, alinhando os óculos redondos no nariz adunco e encarando os patinhos de madeira baleados que jaziam do outro lado da cerca de tiro ao alvo. – Nada mau, mas ainda não é o suficiente.
Espero que seja o suficiente pra eu ganhar sobremesa no jantar, pensou o garoto. Não proferiu seu desejo em voz alta, pois sabia que, se o fizesse, seu tutor faria questão de contrariá-lo.
O mais velho tomou a pistola das mãos do garoto e rapidamente abateu os patinhos restantes.
– Chega de treinos. – sentenciou ele, finalmente encarando o mais novo, o rosto inexpressivo do aprendiz refletido nos olhos vampirescos do tutor – Hora de pôr os conhecimentos em prática.
Naquela tarde, realizaram o primeiro de muitos saques.

– Sabe, garoto – o homem comentou em meio a uma garfada do jantar e outra. - Quando eu conheci você, achava que esse seu laconismo se devesse à incapacidade de juntar duas palavras. Mas acabei percebendo que você não é tão estúpido quanto eu pensava.
O rapaz ergueu uma sobrancelha, abismado. Era o primeiro elogio (um elogio relutante, mas ainda um elogio) que recebia daquele homem carrancudo e cheio de si. Limpou os óculos quadrados que o tutor havia comprado para ele a fim de corrigir sua miopia e olhou desconfortável para o lucro da semana no canto da saleta imunda (também conhecido como o quartel general) onde se encontravam. Haviam coletado uma quantidade razoável de jóias com as abordagens diretas. Os assaltos às casas tinham lhes rendido até um vaso genérico da dinastia Ming; o garoto se lembrava de ter lido algo sobre, antes de tudo aquilo começar, antes do homem carrancudo o resgatar, ou o condenar.
– Termina esse prato logo. – resmungou o homem. - E nem vem me dizer que a lagosta não tá bem cozida. Eu sou mestre nesse negócio.
– E se... – o garoto murmurou, hesitante. – E se formos pegos?
O homem se levantou bruscamente e espalmou as mãos na mesa. Fitou a mesa de jantar e depois o rapaz, e seu olhar ardia em chamas. Subitamente, colocou as mãos nos ombros ossudos do rapaz.
– Nós nunca vamos ser pegos – sussurrou ele, firme. – Se um dia essa possibilidade vir à tona, é preferível que estejamos mortos. Mortos. Entendeu?

As lembranças dispersavam-se com a mesma facilidade com que surgiam. Borradas e embaralhadas, bombardeando sua mente aturdida, aturdida e retalhada por anos e anos de atos amorais. Anos de patinhos de madeira abatidos se esvaindo juntamente com seus sentidos. Os dedos perdiam a sensibilidade ao redor da arma que tantas vezes segurara, no começo com nervosismo, depois com a naturalidade de quem passa a manteiga no pão do café da manhã. Reuniu as últimas forças que lhe restavam e virou a cabeça para o lado. O homem carrancudo ali jazia, a torrente vermelha se estendendo atrás de si, de costas para o rapaz. Ou melhor, garoto, que era como ele se sentia naquele momento, experimentando o velho sentimento de insegurança e incerteza que o acompanhara durante tanto tempo. Porque ele sabia. Sabia que, no fim, era só um garoto perdido, marchando em direção ao vazio.


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