Valores Invertidos escrita por GabiLavigne


Capítulo 1
Capítulo 1 - Sentir


Notas iniciais do capítulo

Aqui está a minha primeira One-shot. Ou seja só tem um capítulo. Espero que gostem :)Boa Leitura.



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Essa é a parte onde uma tragédia acontece. Algo que comova, que magoe, que deixe a marca de um trauma na pessoa. Um passado doloroso que é impossível deixar para trás ou uma perseguição incánsavel atrás de algo que possa cobrir as suas atitudes estúpidas do passado. Mas no meu caso não ocorreu tragédia alguma. No meu caso, eu só parei de sentir.

Perguntas como "Como você está se sentindo?" já não fazem sentido algum para mim. Eu não sinto nada. Ninguém sabe o porquê. A decepção que eu devo ter sentido em algum momento da minha vida de antes deve ter me levado a isso. O mundo em que habitamos está diferente. Não existem mais coisas como "Amor Verdadeiro". Sorrisos entre pessoas são coisas raras. A Amizade se encontra quase extinta e a Confiança não existe mais.

Agora oque importa é dinheiro, futebol e riqueza. Pessoas que não possuem nada considerado de valor pela sociedade, ou que não são jogadores de futebol, não têm mais espaço nesse mundo. A Fome e a Mizéria já dominaram quase todo o mundo. A situação ficou muito pior e irreversível. Onde vivo atualmente não há mais animais. As chuvas são raras. As pessoas foram esquecidas pelos poucos pertences. E agora estou prestes a ir para um lugar não muito diferente.

Ás vezes parece dificíl não poder sentir. Eu realmente queria experimentar a sensação. Queria conseguir rir ou chorar. Outras vezes acho que é melhor viver sem sentimentos. Viver sem sentimentos é viver sem dor. Por outro lado também é viver sem vida. Mas não me importo. Nem se eu quisesse, não conseguiria me importar.

– Atenção passageiros do vôo A-14, o avião está pronto para o embarque pelo portão B. - Uma voz feminina entoa pelo lugar onde diversas pessoas esperam, inclusive eu e a minha família.

As pessoas começam a formar uma fila em frente ao portão B. Meus pais se levantam e Luca começa a me puxar pela minha manga.

– Vamos Lisa! Vamos! - Ele parece sorridente, não entendo o porquê - Vamos para o avião agora!

Sem qualquer reação facial ergo-me do meu assento desconfortável e com passos curtos aproximo-me dos meus pais, enquanto Luca corre até eles. Assim que minha mãe me vê ela me puxa para perto.

– Lisa - começa ela e percebo que água desce pelos seus olhos - Assim que chegarmos em Frankfurt prometo que te levarei á alguém que te faça voltar a ser como antes.

– E se talvez eu não quiser voltar a ser como antes? - indago inexpressiva.

Ela comprime os lábios e volta a se concentrar na aeromoça que começa a falar com o meu pai. Meu pai acena com a cabeça e nos dá um sinal para prosseguirmos.

Do lado de fora percebo que minha mãe coloca os braços em volta de seu corpo. Ela está tremendo. Oque deve estar sentindo dessa vez? Luca sobe as escadas que levam á entrada do avião, correndo. Meus pais o seguem preocupados e eu subo normalmente atrás.

– Bem-vindo á bordo - O piloto está falando pessoalmente com seus passageiros.

Pego um pequeno papel que havia enfiado em meu bolso e o encaro sobre a palma da minha mão. A8. É o número do meu assento. Caminho até ele e sento-me ao lado de Luca que já está olhando pela janela. Meus pais conversam nos assentos atrás da gente e eu apenas encaro a parte de trás do assento á minha frente.

As pessoas começam a agir de maneira diferente e quando olho pela janela vejo o porquê. O avião decolará a qualquer momento. Luca, meu irmãozinho, arregala os olhos enquanto continua encarando a vista. Algumas pessoas ao meu redor ficam nervosas e assustadas enquanto o avião sobe. Depois de estarmos há uma certa distância do chão a viagem se inicia e Luca não tira os olhos da janela, encarando as nuvens que passam do lado de fora, como se estivesse enfeitiçado por elas.

Adormeço. Não consigo ter sonhos. Depois de um tempo abro os olhos e estico-me na cadeira. Luca adormeceu. Pela janela vejo que estamos voando sobre o mar. Parece uma massa azul interminável. Ainda temos algumas horas de vôo pela frente.

Mais tarde uma aeromoça se aproxima perguntando se queremos jantar. Aceno com a cabeça, apesar de não sentir vontade de comer, nem de qualquer outra coisa. Ela trás uma espécie de pasta verde, com pão ao lado. Pego a colherzinha que está ao lado e enfio-a na pasta cremosa. Enfio a pasta na boca. O sabor não me importa de qualquer maneira.

Fico comendo ali, até terminar tudo. Devolvo o lixo á aeromoça e ela acena com um sorriso. Será que sorrir não cansa? Parece que tudo é motivo para rir. Tento dormir novamente. Dessa vez acordo apenas no dia seguinte. Assim que vejo Luca encarando a janela parecendo ansioso, vejo onde estamos. Estamos sobrevoando a Alemanha. Chegamos.

– Já estamos quase chegando ao nosso destino, agradecemos por voar com a nossa Companhia de Vôo. - diz alguma voz dos autofalantes.

As pessoas começam a se assustar novamente. E percebo que o avião está começando a descer. Chegamos. Realmente chegamos.

Pessoas com todo o tipo de reações desembarcam do avião. Algumas com a cara pálida, outras com crianças de olhos vermelhos e inchados e muitos apressados. Luca corre pelos corredores do aeroporto irradiando algum sentimentos desprezado pela sociedade. Minha mãe agora treme para valer e a respiração que deixa a boca do meu pai saí num tom branco.

Depois de pegar todas as bagagens e fazer tudo aquilo que pessoas apressadas e sem dormir direito a aproximadamente 10 horas, fazem. Finalmente deixamos o aeroporto lotado de gente e somos recepcionados pelo ambiente ao nosso redor. O ambiente de Frankfurt.

– Vamos pegar um táxi – sugere o meu pai com um copo de café entre os dedos trêmulos – Gehard vive em Aachen.

Gehard. Um homem alto, ágil, de olhos claros e pele pálida – meu primo. Também um famoso jogador de futebol, pelo que ouço falar. Iremos ficar com ele. De acordo com a minha mãe tudo não passa de uma viagem de volta ás raízes. Porém a verdade é que ela se agarrou á esperança de que aqui eu tenha mais chances de recuperar meus sentimentos. Posso ter nascido por aqui, mas não acredito que este lugar possa me ajudar. Na minha opinião tudo que ela quer é me enfiar em mais uma dúzia de médicos só para ouvir todos dizerem o mesmo: “Lamentamos, mas não há nada que possamos fazer.”

Na opinião deles algo deve ter acontecido com o meu sistema nervoso central. Algum vírus ou uma substância reduziu o efeito dos meus nervos. Na verdade creio que eles se referem á algum defeito que especialmente eu tenho. Mas quem sabe esse defeito na verdade não pode ser considerado beneficío?

Pela janela vejo prédios. Grandes e luxuosos. Pequenos e simples. Apesar da velocidade do carro consigo reconhecer a palavra de uma placa pendurada na entrada de uma construção simples cheia de vendedores. “Markt”.

Uma Feira.

O resto da paisagem da enorme cidade de Aachen passa como um borrão e volto para os meus pensamentos. Pensamentos cinzentos e sem graça, assim como eu.

– Lisa – minha mãe me chama e quando meu olhar paira sobre o seu rosto reconheço uma expressão de alguém que já me chamou diversas vezes – Chegamos.

Um suspiro trêmulo escapa de meus lábios e ergo-me para sair do carro. O vento bate contra o meu rosto levando alguns fios do meu cabelo com ele. Fecho os olhos e tento sentir algo. O frio ardente ou a brisa de calor. Um resquício de sentimentos. Não sinto nada. Balanço a cabeça. Foi muito inútil tentar sentir quando todas as esperanças de que isso acontecesse deixaram o meu interior, se é que um dia estiveram ali.

Encaro a grande estrutura feita das coisas mais luxuosas que ainda conseguem existir. Lembra do que eu disse sobre a importância no mundo atual? Gehard é um jogador de futebol. Ele é considerado importante.

Antes de tentar abrir a porta minha mãe bate educadamente na porta. Meu pai reprova sua atitude e aperta a campainha que soa da maneira mais refinada possível. Não entendo o porquê da mudança de atitude dos meus pais. Não me tornarei mais educada diante do meu primo. Quem é ele? Apenas um cara que corre atrás de bolas. E que faz isso muito bem.

Assim que a porta se abre um rosto inexpressivo de uma camareira surge. Ela nos examina dos pés á cabeça e finalmente acena. Meu pai entra sorrindo e lhe estende á mão em forma de comprimento. Minha mãe arrasta as poucas bagagens para dentro e Luca a segue, com um sorriso que devia ser contagiante se não fosse pelo fato de que não consigo expressar tal feição.

Adentro o corredor longo. O piso de mármore maciço demonstra um forte contraste quando atravesso ele com meus sapatos simples. A cada passo ouço um estalo. Como seria a sensação de incômodo?

Mas talvez essa viagem seja uma boa para o meu alemão enferrugado que balbuciei durante todo o percurso e contato com outras pessoas que não sejam parte da minha família. “Wohnzimmer”. Esta palavra intitula uma das grandes e monstruosas portas que provávelmente sejam a única coisa que nos separa do meu querido e famoso primo.

Minha mãe não contendo algum outro sentimento bobo gira a maçaneta e empurra a porta. Atrás dela vejo uma “Fernsehn”. A Televisão do mesmo tamanho de uma tela de cinema e que cobre uma boa parte da parede. Também há um sofá enorme e peludo, parado lá esperando para ser ocupado. Mas todos os outros detalhes foram ofuscados por uma figura loira com um sorriso doentio estampado no rosto. Gehard.

Minha mãe corre até ele e o abraça de maneira firme, meu pai prefere dar um aperto de mão. Luca agarra com toda a sua força as pernas de Gehard, enquanto ri de maneira perturbadora. Porém eu fico apenas parada, torcendo para que sejamos dispensados e guiados até o quarto em que ficaremos, espero que não por muito tempo.

O sorriso de Gehard desaparece e seus passos pesados se encaminham em minha direção. Ele para a alguns centímetros de mim e me encara nos olhos.

Acho que ele se esqueceu que não sei sentir, mas que ainda consigo piscar.

Ele respira fundo e ergue uma mão acima da cabeça de maneira infantil.

– Olá soldado! – berra ele num tom de voz grosso, na tentativa de soar sério.

Há algum sentimento que eu deveria expressar agora? O vazio em meu interior clama por algo que possa prêenche-lo. Mas digo apenas uma coisa.

– Idiota. – uma gargalhada sobe pela sua garganta e ele toca o meu ombro.

– Vejo que você continua... – ele recebe um olhar de advertência da minha mãe – ...desse jeito.

Aceno com a cabeça e agarro a alça da mala que carrego.

– Onde fica o nosso luxuoso alojamento, “Herr”? – Senhor. Acabei de chama-lo de senhor.

Ele se vira para a empregada com cara sem graça que nos acompanhou até a sala.

– Kannst du ihr bitte helfen das zimmer zu finden? – murmura ele calmamente – Pode ajudá-la a encontrar o quarto?

A moça acena com a cabeça e sem me encarar atravessa a porta. Começo a segui-la e quando olho para trás vejo meu pai repreender Luca, que usa o sofá como pula-pula. Mais uma vez o vazio refletido em mim tenta me corroer. Porém nem isso eu sinto. Apenas imagino como seria sentir a decepção de não conseguir sentir.

Sem mais nada a pensar atravesso a porta e deixo as risadas e palavras sussurradas atrás de mim.

O Quarto é um cômodo enorme com uma cama de casal. Infelizmente não posso descrever como é se deitar numa cama que deve ter custado 25 mil euros já que esse sentimento, igualmente aos outros é inexistente. A camareira deixa o quarto e fecha a porta. Deixo o meu olhar vagar e parar em uma janela. Corro até ela. Quero me vislumbrar com a vista. Quero me entusiasmar . Quero sentir a saudade do meu país natal me deixando, mesmo que eu não a tenha sentido. Quero fantasiar que todas essas possibilidades possam ser reais.

Quero me tornar algo real. Algo vivo.

Fico parada por alguns minutos olhando para a vista, até que pingos se arremessam contra a janela e o impacto causa mais respingos ainda. Está chuvendo. Há quanto tempo não vejo chuva. A água se choca contra a janela e desliza de maneira cautelosa pela janela, acumulando-se nas beiradas.

Toco a superficíe do vidro com a palma da mão.

Abro a janela e estendo a minha mão para fora, deixando a água invadi-lá. Vejo a chuva escorrer pela minha mão como se fossem lágrimas. É estranho ver como a gota desce pela minha mão deixando apenas um rastro de água para trás. E mesmo assim não sei qual a sensação disso. Apesar de ver e de poder descrever, não consigo sentir. Não sinto a água deslizando sobre a minha pele. Não sinto a brisa do vento que ergue meus cabelos. Não sinto o bater do meu coração, mas sei que ele bate. Deve bater. Precisa bater.

Fecho a janela e caminho vagamente até a cama enorme que me encara. Desabo sobre ela e cravo os dedos em seu tecido. Por quê o mundo precisava ser assim? Talvez se não existisse tanta dor, tanto sofrimento, talvez meus sentimentos não teriam me abandonado. Meus sentimentos são covardes. Foi só o mundo se tornar um completo caos que eles me deixaram.

Fecho os olhos. Não sinto o peso do sono, não sinto o cansaço despencar sobre mim, porém mesmo assim decido tentar. Sempre tentarei, não importa o quanto eu negue a existência da possibilidade disso acontecer. Muitas vezes tento imaginar como era quando eu sentia. Parece que toda vez que tento alcançar essas memórias, bato de frente contra uma parede de vidro. Não há nada.

Porém, talvez por destino, ou ironia, lembro da última coisa que senti. Mesmo que esta lembrança esteja desaparecendo aos poucos, sempre tentei me agarrar a ela. Saborea-la. Uma queimação profunda no lugar em que meu coração costumava ficar. Como se ele fosse arrancado do meu peito, porém sem dor. É dificil explicar, é dificíl decidir se foi realmente assim ou o bloqueio de sentimentos já alterou o acontecido. Só sei que agarrei o meu peito e tudo havia sumido. Ficou apenas um vazio. Este logo se foi também.

Alguém bate na porta luxuosa me arracando das minhas lamentações inúteis.

– Lisa – murmurou minha mãe e adentrou maravilhada o cômodo – Está na hora de um exame. Depois veremos o seu primo em ação – ela me presenteou com um sorriso, eu devolveria, se tivesse um – Fique tranquila. Nunca perca a esperança.

De modo inexpressivo encaro-a.

– Esperança? – balbucio esta palavra como se a jogasse no chão e ela se arrastasse para longe de mim – Acho que eu a perdi faz tempo.

Minha mãe solta um suspiro pesado e se aproxima. Apesar de haver algo á mais em seus olhos ela coloca as mãos minhas bochechas.

– Vai ficar tudo bem – sussurra ela e uma gota cai de seu olho esquerdo – Eu prometo.

Aceno com a cabeça. Quem sou eu para discordar? Quem sou eu para fazer qualquer coisa?

Ela deixa o quarto apressada e eu continuo, ali, deitada numa cama exageradamente luxuosa, rodeada pelas mais belas coisas que o dinheiro pode comprar, porém sem poder sentir algo sobre isso.

Minutos depois eu estou caminhando ao lado da minha mãe, pelas ruas desajeitadas e lotadas de Aachen. As pessoas, com a cara igual á minha, desperdiçando a capacidade que perdi, passam ao nosso lado como se eu não existisse. E será que existo? Será que continuo sendo vista normalmente, se perdi a única coisa que me tornava humana?

– An was denkst du? – minha mãe lança-me um olhar indescrítivel – No que você está pensando?

Apenas balanço a cabeça e continuo caminhando. De cabeça baixa e as mãos escondidas nos bolsos. Minha mãe está usando um casaco bem grosso. Deve estar fazendo frio.

Uma mulher vem ao meu encontro e o impacto é tão forte que sou arremessada contra o chão. Ainda bem que não sinto dor. Está aí um lado bom, eu acho.

A mulher no entanto ergue a cabeça com um olhar venenoso irradiando algo nada bom de sua face contorcida. Peço desculpas.

– Pass auf du Idiot! – grita ela antes de retomar sua rota – Cuidado, sua Idiota!

Minha mãe lhe devolve um olhar frio e me ajuda a levantar. Ela não se dá o trabalho de perguntar se estou bem.

Dr. Fritz – o médico da vez. Um cara baixo, com uns 25, loiro e com olhos cinzentos me examina através de monitores velhos em sua sala. Estou sentada em uma das cadeiras, com as mãos unidas no colo. Minha mãe parece se sentir de alguma forma desconfortável. Ela deve estar com medo. Medo de que eu fique assim para sempre.

– Ja, ja – murmura o rapaz que agora me lança um olhar diferente. Não parece incomodado – Sim, sim. Veremos se posso fazer algo para tranquilizar...

– Lembrando que eu não posso sentir se estou tranquila ou não. – assim que estas palavras deixam meus lábios minha mãe me lança um olhar de reprovação.

Ele sorri e inclina a cabeça devagar.

– Eu estava falando da sua mãe – responde ele – Mas se tudo correr como o esperado, você será capaz de se sentir assim. Será capaz de sentir tudo novamente.

Ele leva meu braço até o centro da mesa, pega uma injeção com um líquido verde e pressiona-o para dentro das minhas veias. Depois tira um pouco do meu sangue. Ele se levanta pensativo e agarra uma caixa preta com o nome “Lisa Forder” em cima. Quando a abre, retira um vasilhame do meu sangue antigo e compara com o novo.

– Você parece estar progredindo – uma chama de esperança se acende nos olhos da minha mãe porém apesar de parecer que estou com uma anestesia pelo corpo inteiro, sei que ele está mentindo – Vamos realizar só um pequeno teste.

Ele pega uma pequena agulha e a enfia em meu antebraço. Nada. Ele me encara e examino a expressão da minha mãe.

Ela está recheada de expectativa.

– E então? – indaga o médico – Sentiu?

Vejo os olhos cansados da minha mãe e decido ocultar a verdade.

– Sim. – tento soar convincente porém seu rosto contorcido revela que ele sabe que menti.

– Por favor... sag die wahrheit. – ele me encara – Diga a verdade.

– Não – confesso. Eu queria dizer “Sinto muito” para a minha mãe que agora parece ter encolhido na cadeira, porém isso seria apenas outra mentira.

Minha mãe segura a cachoeira que luta para descer pelos olhos e se retira da sala branca e empoeirada.

– Es tut mir leid – diz o médico, segurando minha mão – Sinto muito.

– Eu não. – e apesar de não parecer certo dizer isso, é a mais pura verdade.

Ele me encara pela última vez e sorri. Um sorriso fraco.

– Eu tinha certeza que funcionaria dessa vez – ele parece murmurar para si mesmo – Tentarei semana que vem.

Aceno com a cabeça e levanto do meu assento, abro a porta, e encaro uma última vez aqueles olhos prateados.

– Qual seu nome? – pergunto.

– Johann Fritz – e o sorriso potente dele retorna.

Tento fazer minhas bochechas se moverem, tento sorrir, inútilmente. Por fim desisto e fecho a porta.

Depois de andar de volta até a casa de Gehard, num caminho encharcado de silêncio, sento em uma cadeira e observo, sonhadora a janela enorme do quarto.

As pessoas caminham numa total bagunça. Nunca saberei como é se sentir amada. Deito na cama e fecho os olhos.

Escuto a voz alegre de Luca atravessar a porta.

– O jogo do primo Gehard vai passar na Fernsehen! – grita ele e some novamente.

Sorrio de leve e então vejo como algo branco e pequeno flutua pelo ar. Cerro os olhos. É um floco de neve. Desloco-me do quarto e caminho pelos corredores vazios e extensos enquanto ouço gritos de “Gol” da grande sala de estar. Corro até a porta, com a respiração ofegante e então noto que durante as horas que permaneci trancada no quarto, a neve já havia se espalhado pelas ruas, enfeitava casas, cobria a cidade como um manto.

Agarro um guarda-chuva que se localiza, esquecido em um canto e o abro. Caminho pela neve. Sei que não é necessário de guarda-chuva na neve porém quero me surpreender. Quem sabe, assim que eu afastar o guarda-chuva da minha cabeça, e deixar os flocos se chocarem contra a minha pele, eu sinta novamente? Os passos pesados e brancos ficam para trás, aremesso o guarda-chuva na neve e ajoelho-me abrindo os braços.

Um fio de dor, como se algo se quebrasse em meu peito, surge, devorando-me de dentro para fora. O gosto amargo da decepção. O gosto amargo de não...

Arregalo os olhos e enfio de maneira bruta as mãos na neve. Ergo-as, esmagando neve entre os dedos, sentindo um leve formigamento nas palmas da minha mão. Aperto-mais e um frio penetrante, como se uma agulha perfurasse minha mão, se espalha. Minha mão fica vermelha, fico arrepiada e uma diversidade de sentimentos começa a se manifestar.

Começo a rir, um sorriso, uma risada, uma satisfação incendeia o meu peito. Felicidade. Alegria. Tudo que eu deveria ter sentido há muito tempo. Depois as lágrimas caem de maneira incontrolável, e escorrem pelas minhs bochechas. Sinto o rastro de água sobre minha face. Choro e dou risada. Levanto e começo a saltitar.

Eu consigo sentir! Eu consigo sentir! Toco o meu peito e finalmente sinto o meu coração batendo. Sinto a mim mesma. Sinto o amor me preencher.

E mesmo que só durasse por um instante. Ali, coberta por neve. Sinto o sangue correndo pelas minhas veias.

Sinto a vida.


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Notas finais do capítulo

Aqui finalizo esta fic. Se quiserem deixem reviews. Obrigada por lerem.



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