Diário de uma Judia escrita por Contadora de Histórias


Capítulo 11
Capítulo 9 – 1 + 1 = 3 (Parte 2)


Notas iniciais do capítulo

Olá, demorei, estava sem inspiração para terminar o capítulo, mas consegui conclui-lo e espero que gostem do resultado.
Nesse capítulo um acontecimento muda novamente a relação entre os personagens da história.
Feliz 2021!



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1940

20, Febuar

Eu tinha muitas questões. Mas fui largada sozinha novamente na minha prisão de gelo no meio do nada. Fiquei magoada porque não sabia se Aaron realmente iria voltar. De fato, ele não voltou naquele dia. Na verdade, passaram-se três dias e ele não havia voltado. E eu também não sai mais da cabana para ir até a cidade, já que estava muito frio e eu não conseguia me mover. A comida estava acabando, a água também e tinha que arrumar forças pra levantar e ir até a cidade.  

Teve um momento que senti tanto frio que achei que pudesse congelar na cama. Então foi aí que resolvi de fato ir até a cidade tentar descobrir com aquela nazista onde o amigo dela estava. Eu me preocupava com o fato de ele não ter mais aparecido, havia algo muito estranho no que aquele Holandês falou. Tinha algo que Aaron precisava me contar, mas o que seria? Poderia ser sobre meus pais. Mas eu nunca saberia se não fosse atrás de informações.

Foi então que coloquei o casaco mais grosso que tinha das poucas roupas que me restaram, enchi minha garrafa com a escassa água que sobrara, coloquei a faca na cintura e fui até a cidade. Já era o final do dia e eu sabia que já seria noite quando eu chegasse naquele hospital para tentar encontra-la.

Andei pela floresta completamente maltratada pelo gelo intenso que não parava de cair do céu, tudo era branco demais, sem vida, pálido, o frio era impecável na sua branda tarefa de congelar lentamente cada centímetro de vida por aqui. Eu caminhava trôpega sentindo o medo dela me entregar aumentar, era completamente inseguro. Mas penso que se ela sabe onde estou, Aaron não está mais comigo e mesmo assim não me entregou, então, ela não tem pretensão de fazê-lo.

Enquanto caminhava pensei de relance no fato de ter beijado Aaron e de como isso era completamente inadequado e fora de contexto. Não entendo direito o que um beijo pode significar para além de intensa confusão.

Que decisão mais estúpida. Foi tão estranho e desconfortável, eu odiava pensar que deixei minha guarda baixar desse jeito. Eu mal o conhecia. Me deixei levar pela falsa segurança dele ter prometido que iria estar comigo, cuidando de mim. Era para sermos amigos e ainda estávamos construindo essa confiança e o beijo cria caminhos diferentes para as relações. Tento a todo custo afastar estes pensamentos, pois minha única preocupação é se ele estiver mentindo para mim sobre meus pais, eu o busco em qualquer lugar do planeta terra para fazê-lo me pagar caro por toda a expectativa que me fez criar.

Afinal, eu não tenho mais droga nenhuma além da promessa ridícula de que ele me falaria onde minha família está.

Limpo as lágrimas teimosas que insistem em cair no meu rosto.

— É capaz dessas lagrimas congelarem antes de cair no chão... – pensei alto e sorri pra mim mesma.

Quando cheguei a cidade, já estava bastante escuro e a iluminação era quase inexistente. Escorreguei pelos becos, cantos e vielas mais improváveis tentando acessar o hospital. Não havia nenhuma alma viva pelas ruas. Elas eram vazias. Devia estar pelo menos cinco grau abaixo de zero e eu mal conseguia sentir meu corpo direito, sentia meu corpo congelar enquanto o nervosismo só aumentava junto com o frio.

Quando cheguei ao hospital, percebi o quanto a sua estrutura era desgastada, com uma tinta cinzenta, era pequeno demais para ser considerado um hospital e tinha muito gelo cobrindo o espaço. Vi que havia certa iluminação por dentro e me concentrei para passar pela grade baixa na lateral do lugar sem chamar atenção. Tentei enxergar algo pelas minúsculas janelas e pelas maiores também, mas era impossível, pois estava tudo fechado.

Fiquei em um canto abaixo de um opulente pinheiro esperando e torcendo para que ela saísse de lá a qualquer momento e ela saiu. Com uma roupa toda branca e grossa, um gorro bem encaixado na cabeça, toda protegida do frio. Quase não a reconheci, se não fosse pela voz empolgada conversando com uma moça que também parecia outra enfermeira.

Elas se direcionaram rapidamente para fora do hospital e foram andando juntas pela rua enquanto conversavam sobre algum assunto aleatório que não me interessava. Eu só esperava que se despedissem para que eu pudesse enquadrar aquela nazista. Tive que segui-las por um caminho maior do que eu pensei, elas acabaram andando juntas até chegarem em uma esquina no centro da cidade.

E eu só me perguntava como elas conseguiam ser tão lentas, estava estupidamente frio e elas ficavam dialogando como se fosse absolutamente comum conversar no meio da noite mais fria do ano. Me aproximei o máximo que eu pude das duas, fiquei encostada em um muro de uma das casas, respirando o mais baixo que conseguia, porque eu estava tão perto que poderia ouvi-las.

— Enfim... – começou a outra mulher – obrigada por ter vindo me deixar em casa.

Revirei os olhos enquanto ouvia aquele papo entediante.

E então a mulher desconhecida se virou para continuar caminhando sem a loira. No entanto, surpreendentemente a loira a segurou pelo braço e nesse instante eu vi a cena mais improvável que achei que fosse ver – Só preciso de um segundo – disse a loira. E aproximou a outra mulher com uma rapidez e delicadeza impressionante para beijá-la.

Eu fiquei pasma, minha boca foi abrindo em formato de “o” automaticamente enquanto apreciava o que ocorria.

Ela a beijou...

E a outra retribuiu.

Foi muito intenso, eu podia sentir a tensão no ar delas duas durante o tempo que elas se beijavam, o corpo delas tinha uma urgência para aquilo. Eu senti meu corpo aquecer com aquela cena que achei completamente inadequada. A delicadeza do beijo demonstrava que elas não simplesmente se conheciam, mas sim compartilhavam sentimentos. Quis sentir nojo, mas não consegui, na verdade eu tinha impressão que para além de um beijo, aquela era uma declaração de amor.

A Elza não é uma nazista genuína. – sorri com a constatação. Minha expressão suavizou na medida em que eu imaginei o fato de que se os nazistas descobrissem o que essas duas estavam fazendo, elas estavam completamente perdidas. Eu tinha algo para me defender dela. Quando menos esperei, as duas já haviam se separado.

— Você é maluca, Elza. – a mulher desconhecida afirmou sorrindo enquanto se afastava e ia em direção ao que parecia ser sua casa.

Limpei a garganta e senti meu corpo respirar novamente, eu passei os segundos da cena sem respirar e nem percebi. Não conseguia ver a expressão de Elsa, mas percebi seu corpo inquieto enquanto a outra mulher se afastava e entrava em uma das casas do outro lado da rua. Eu estava prestes a me aproximar dela quando ouço um carro vindo na direção contrária a Elsa, de faróis desligados e acelerando cada vez mais. Ele foi tão rápido que ela não teve reação a não ser virar para ele.

O que eu não sabia, era que no ápice do meu reflexo, eu daria os dois passos que faltavam até alcançar o braço dela e puxar com força até mim. Senti seu corpo pesado cair em cima de mim e ouvi o carro passar com muita velocidade pela rua logo a frente da gente.

Percebi o olhar assustado dela em mim e as respirações batendo uma na face da outra enquanto eu me desvencilhava para levantar e dizer – vem comigo! – e corri pelas casas puxando-a sorrateiramente pelos becos das ruas.

Eu não sei porque, mas eu a levei para o armazém abandonado onde fui encontra-la da outra vez. Aparentemente aquele era o lugar mais seguro, vazio e escondido que tinha mais perto de local onde estávamos. Ela se jogou de joelhos no chão muito ofegante e cansada e eu levantava os braços buscando por ar. Acho que a última vez que corri tão rápido foi quando o senhor Klaus me viu roubando seu rádio.

Apontei para o chão e pedi quase sem conseguir respirar – abre e vamos conversar!

Ela me olhou desconfiada, afastou o gelo que tinha por cima da porta de madeira no chão e descemos pela escada até o subterrâneo. Estava tudo escuro, mas ela tateou por uma mesinha um fósforo e acendeu uma vela que já havia sido usada em outra ocasião. Quando o ambiente iluminou percebi que era uma espécie quarto, muito pequeno, com as paredes que o sustentavam de madeira e tinha cama, lençol, livros, jogados, um boneco que parecia um soldado. Peguei o boneco com a mão para ver melhor... – que lugar mais estranho. – Pensei em voz alta.

E ela continuou séria com o olhar me observando. As suas bochechas estavam vermelhas assim como seus lábios e sua respiração demorando para normalizar. Ela não parecia nem um pouco bem.

Eu a olhei com um sorriso debochado de canto e falei – Estou esperando.

Senti ela cerrando os dentes e sua expressão ficar mais séria ainda.

Eu continuei sorrindo – Estou esperando uma grande demonstração de gratidão por ter salvo sua vida.

Ela só se aproximou e me empurrou fazendo eu cair na cama, e continuei sorrindo mais ainda.

— Idiota! – gritou pra mim – o que você estava fazendo?! Me seguindo?! – vociferou.

Parecia que ia avançar em mim, mas encostou a cabeça na parede e de olhos fechados tentando se conter. – Eu devia ter entregado você quando tive oportunidade! – socou a parede.

Quanto drama, pensei.

Parei de sorrir e disse séria – Você realmente se acha tão superior a ponto de não reconhecer o que aconteceu lá fora?

Ela me olhou furiosa e dessa vez parecia que ela ia me atacar então tentei inutilmente me afastar no momento em que coloquei a mão na cintura onde estava a faca. Por outro lado, ela se aproximou e falou entredentes me segurando pelos ombros – obrigada! – e me empurrou de novo.

Eu sorri, porque no tom que foi dito parecia mais um insulto. Nazistas são tão idiotas.

Ficamos um longo período em silêncio, percebi que ela alternava o olhar entre mim e a vela, como se não soubesse exatamente o que fazer. Eu, por outro lado, tinha bastante claro na minha mente o que iria acontecer. Na minha cabeça havia um plano, com fórmula simples e equação bem elaborada – A gente aprende na escola algumas operações bem simples – comecei falando e seu olhar de dúvida me encarou – Eu sou muito fã de matemática e as fórmulas que trazem segurança e exatidão para as respostas.

— Onde você quer chegar? – me interrompeu.            

Suspirei, ignorando a pergunta e prosseguindo com meu raciocínio – Um mais um costuma ser dois, é uma operação simples, Elza. É como você e o Aaron na tão importante amizade que vocês têm. Só que agora as coisas mudaram, eu salvei a vida dele, agora salvei a sua. Sei o segredo dele, – me aproximei dela – sei o seu segredo.

— Você não sabe de nada sobre mim! – retrucou.

— Eu sei o suficiente! – afirmei com um tom ácido – Você que não sabe nada sobre mim e desde o primeiro dia me odiou porque o patético Fuhrer convenceu os brancos de que são superiores. E agora eu estou sem minha família por conta de pessoas como você!

Ela riu incrédula – Você não sabe de nada, Rachel – foi a primeira vez que a ouvi pronunciar meu nome – não é sobre o que você é. É sobre o que sua família fez! O quanto o seu povo prejudicou famílias como as nossas.

— Falou a pessoa que tem um emprego – cheguei mais perto para ser mais incisiva – tem uma casa, tem comida todos os dias e tem o privilégio de não ser perseguida por toda a Alemanha.

Ela engoliu em seco sem saber o que responder. – Elza, não me importo com você ou com o que você faz. – afirmei, olhando nos olhos dela – Eu só quero encontrar meus pais. E você vai me levar até o Aaron, porque ele vai me dizer onde eles estão.

Acho que foi o momento que falei mais sério em toda a minha vida. Ela ficou bastante desconfortável e se desvencilhou da proximidade indo para o outro extremo do cômodo. – Não vai rolar. – disse de costas para mim.

Respirei fundo tentando me acalmar – Eu sei que você sabe onde ele tá, você vai me levar até ele.

— Sem chances – continuou irredutível.

— Você sabe que... Aquele carro que tentou te atropelar, vai continuar tentando, não sabe? Você pode até querer ser, mas não é tão “superior” quanto eles. Pessoas como você também são presas, somem, o governo tem que manter sua “higiene social”. Sabe como é... Regras do jogo.

Ela se voltou para mim com preocupação. Me olhava sem dizer nada. Então, decidi mais uma vez quebrar o silêncio.

— Talvez ele não esteja mais nem vivo, né? Alguém pode ter prendido ele ou o ferimento dele pode ter piorado. Você mesma disse que ele iria morrer...

— Chega! – gritou. Balançou a cabeça em negação.

— Podemos ir amanhã, você só precisa me levar até ele... Mas também se a gente não for, não tem problema, posso continuar te seguindo todos os dias. – desdenhei – minha agenda está bem livre este mês.

Arfou em sinal de estresse e impaciência.

Não demorou muito mais tempo para eu convencê-la a me levar até ele. Teve que aceitar a minha equação, também estava preocupada com o Aaron e com a pessoa que a queria morta. Iria ser bom ficar uns dias fora da cidade. Embora estivesse bufando com a situação, ela sabia que não tinha alternativa.

— Nós vamos ficar aqui essa noite, - comecei – amanhã você arruma algum meio de transporte para gente ir.

— Isso não é tão simples. Se formos pegas...

— Você tá ferrada?

Ela levantou a sobrancelha com um sorriso de canto. – Você vai presa. Eu me safo tranquilamente.

Soltei outro riso em resposta – Faz alguns meses que eu estou presa. Isso não me causa medo.

Ficamos mais uns segundos em silêncio nos entreolhando.

— Que fique bem claro: não confio em você, não gosto de você e não me importo com você.

Meu sorriso ficou maior – que bom que o nosso amor é mútuo – estendi minha mão para selar nosso acordo – trégua?

Ela suspirou e apertou minha mão – trégua.


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Notas finais do capítulo

Nossa! Por essa a Rachel não esperava. Pra onde será que elas vão? E se forem pegas? Será que essa trégua dura? Cadê o Aaron? Saberemos em breve.



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