Escarlate escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 2
Água e Sangue




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 Os primeiros raios de sol atingiam os olhos de Luna, que se mantinha sentada no peitoral do "ponto de observação". Não conseguira dormir, em parte pela falta de confiança nos recém conhecidos e em parte pelos seus pensamentos que fervilhavam desde a noite anterior. Não importa aonde fosse, a guerra estaria lá, qual era o objetivo em continuar fugindo então?

Ela olhou para suas mãos, que já haviam sido manchadas com sangue inocente inúmeras vezes nos últimos dois anos… As palavras de seu antigo superior ecoaram em sua mente, todas as ordens que ela obedecera cegamente e a levaram onde estava agora…

Enquanto divagava em seu remorso, Luna não percebeu que Fataliz acordara e saíra de sua tenda. Ele espreguiçou-se, respirando fundo o ar frio do fim da madrugada, logo se deu conta da garota de cabelos brancos sentada no ponto mais alto do acampamento. Antes que a ideia de comprimentá-la com um amigável “bom dia” pudesse se completar em sua mente, algo que ouvira há muitos anos se apressou e invadiu seus pensamentos: “pessoas como você têm a alma marcada a ferro pelo próprio diabo, o inferno sempre os acompanhará…”.

É, aquele homem tinha razão. E somente um monstro egoísta arrastaria ainda mais pessoas para um destino assim.

Com tais pensamentos dominando sua mente, Fataliz voltou sua atenção aos jarros de água vazios próximos à fogueira, pegando três deles e descendo o monte em direção ao riacho.

Luna suspirou, finalmente notara a forma forte do moreno descendo pelo caminho de terra. Os ombros largos dele projetavam uma sombra forte e larga, como a de um monstro majestoso antes de atacar. E o seu cabelo relativamente longo roçava neles por conta da brisa suave da manhã, um movimento mais pesado do que deveria ser por conta dos cuidados que lhe eram aplicados, ou a falta deles no caso.

Ele era mesmo um homem que incitava a curiosidade da garota, belo por fora e feio por dentro, mas por quê? Sua curiosidade raramente a levava a bons lugares, era melhor apenas ficar atenta a alguma atividade suspeita da parte dele, mas não se aprofundar muito...

Saltou de onde estava e começou a pegar o que restara do jantar, logo atirando os restos de carne para o meio das árvores, onde não duraram cinco segundos antes de serem pegos por linces selvagens. Em seguida bateu as mãos para limpá-las e olhou em volta para finalmente analisar seu novo lar mais detalhadamente.

O acampamento ficava em um pequeno monte nas costas da cadeia de montanhas rochosas, que comandavam os ventos nas vilas próximas. Era uma área de terra batida e cercada pela vegetação corajosa o suficiente para crescer naquele terreno. As tendas dos dois homens ficavam nas extremidades laterais do local, sendo o centro ocupado por uma construção mais velha que certamente já estava ali quando eles chegaram. Lá era onde ficava a sala que Luna julgou ser uma espécie de “matadouro”/cozinha e, no topo da construção, havia um pequeno mirante cercado, que devia ser usado para avistar inimigos que cruzassem o território dos donos originais do local...

Voltou o olhar para a esquerda e notou que Nabucodo a encarava de pé na frente da tenda onde dormira.

— Vejo que alguém caiu da cama… — Ele sorriu para ela, mal notando que o sorriso que recebera em resposta tinha sido forçado. — Sabe, o convite de passar a noite na minha tenda ainda está de pé, é muito mais confortável que o deque de madeira onde dormiu.

— Obrigada, senhor. Mas estou bem assim, não se preocupe… —  Foi até onde Fataliz estava preparando o jantar na noite anterior, segurando a ânsia de vomitar que o cheiro fúnebre dali lhe causou logo de cara.

— Mas então, seria muito incômodo eu pedir para me dizer mais sobre você? — Nabucodo a seguira, encarando-a atentamente. — Sabe como é, é bom saber com quem se está trabalhando…

Luna parou por um segundo, sua mente buscando rapidamente por respostas que não envolvessem a verdade, que certamente só a levaria a ter a cabeça cortada ali mesmo. Ela fingiu estar procurando algo enquanto pigarreava, vamos Luna, pense…

— Eu cresci numa vila pequena próxima à Cidade das Feras… Infelizmente perdi minha casa e minha família logo quando esta guerra começou. Tenho me virado desde então… — É isso? Isso é o melhor que consegue inventar?!, perguntou a si mesma

Nabucodo ficou em silêncio por um instante, a resposta dela não parecia muito plausível. Ainda mais levando em conta sua armadura que, apesar de não ser das melhores, não estava ao alcance de uma simples orfã. Mesmo que fosse uma orfã feiticeira.

Ele decidiu ignorar aquele fato e manter os olhos abertos, era melhor tê-la por perto do que simplesmente expulsá-la dali para uma morte certa. Ela era linda, dominava magia, era linda, seria uma força a mais para sobreviverem… E, bem, era linda, poderia ser uma distração para a guerra também. Era só ele achar o jogo certo de palavras.

Aproximando-se dela, ele pegou uma de suas mãos, analisando-a como um ferreiro analisa uma arma recém forjada.

Luna fitou-o surpresa, não esperava que ele fizesse qualquer contato com ela… Bem, esperava que seu pescoço tivesse contato com a espada dele, mas isso não é a mesma coisa.

— ...Senhor?

— Sabe, o que mais odeio nesta guerra não é o que ela está fazendo com as pessoas nem com Pan Gu em si… — Ele acariciava os dedos dela entre os dele. —  É o fato de ela obrigar criaturas tão delicadas e belas a se sujarem com sangue e ódio.

Lançou-lhe um sorriso antes de sair, deixando uma Luna confusa e irritada para trás. Ele a tinha chamado de delicada?! Isso era o mesmo que duvidar de sua capacidade de lutar e sobreviver por tanto tempo neste mundo caótico…

Luna saiu enfezada e deu de cara com um Fataliz encharcado segurando as três jarras, agora já cheias. Ela estava curiosa sobre ele, mas o olhar frio que recebera foi facilmente interpretado como desdém e, como já estava irritada com o comentário “inocente” do outro, fechou a cara e passou a mão nas três jarras restantes, descendo com passos firmes pelo caminho.

— Mas o que foi que deu nela? — Fataliz a encarava, rindo em seguida. — Aquele babaca deve ter feito algo…

Ele colocou as jarras no lugar e foi para a entrada do acampamento, observando a garota até que ela sumisse de vista. Sentiu um pouco de pena dela; se não bastasse ter de sobreviver numa guerra como aquela, assim que encontra um lugar para descansar tem que aturar o mau humor dele e um velho que só sabe pensar com a cabeça de baixo…

— Soldado! — Como um demônio que sempre aparece quando invocado, mesmo em pensamento, Nabucodo surgiu de trás de Fataliz

— Sim, senhor? — Fataliz virou-se para o mais velho, encarando-o impaciente.

— Sua memória é melhor do que a minha… Lembra-se de uma vila próxima à nossa cidade?

— Uma vila? — O moreno ergueu uma das sobrancelhas, curioso com o motivo da pergunta repentina.

— Sim, foi uma das primeiras vítimas da guerra…

— Tinha uma casa por ali, não uma vila. Mas se não me engano era desabitada… — Fataliz passou a mão pelos cabelos, lembrando-se com exatidão do local e se tinha algo mais por ali. — Só isso.

— Entendo… — Nabucodo coçou o queixo, Luna teria se enganado ao dizer que morava numa “vila”? Talvez tanta guerra tenha mexido com a cabeça dela… — Apronte meu cavalo, vou até a cidade ver se nossas armas foram reparadas.

— Sim, senhor.

Fataliz foi até os fundos do acampamento, onde ficava um grande cavalo negro de olhos âmbar. Era bom mesmo o outro finalmente agir como um líder útil, pra variar, e ir logo buscar as armas e armaduras que tinham sido mandadas para um ferreiro no que parecia ser um século atrás. Ele já estava ficando com saudade do seu machado; malditos minotauros, ousaram destruir uma arma tão útil… Ele tinha aquele machado há tantos anos… Lembra-se de que a primeira vez que encarou a morte já o empunhava, embora não soubesse sequer segurá-lo direito.

— Vamos lá, Agro, colabora… — suspirou impaciente com o cavalo que não ficava parado tempo o suficiente para que pudesse colocar as rédeas.

O sol já estava alto quando Luna conseguiu encher os três jarros sem que fossem derrubados por animais. Ela suspirou, colocando os cabelos molhados para trás da orelha, e colocou as mãos nos quadris enquanto pensava em como voltar ao acampamento.

Agora os jarros pesavam o triplo cada um. Ela era forte, mas, depois de tentar e derrubar os jarros duas vezes, admitiu que nem tanto. Olhou pro próprio corpo, as roupas pesadas por conta da água e a armadura começando a incomodar. Embaixo daquilo tudo e do muro de falsa força que tinha construído sobre si mesma, de fato tinha uma garota delicada…

— Merda! — ela chutou uma pedra próxima, assustando alguns animais que tiveram a infelicidade de ficar no caminho.

— Ei, se fosse para demorar tanto não precisava se meter no meu trabalho. — Fataliz bufou. Preocupou-se pela demora e aqui estava ela: ensopada e com certeza não voltaria tão cedo para o acampamento. — Anda, deixa eu te ajudar...

— Não me lembro de ter pedido ajuda, Fataliz... — Ela se colocou na frente dos jarros, pronunciando o nome dele como se fosse de um animal desinteressante.

— Oh, é mesmo? — Ele riu da cara dela, o que só a enraiveceu mais. — Então ande logo, precisamos dessa água lá em cima.

Ele encostou-se numa árvore, cruzando os braços na frente do corpo e encarando-a bem fundo nos olhos — aquele azul era quase tão cegante quanto o azul do lago refletido pelo sol forte.

Aparentemente a escolha de uma área na subida de um morro próximo ao lago para a criação do acampamento não foi favorável a ela. Mas se fossem começar a fazer vontades de cada mocinha que cruzava seus caminhos iam acabar como meros capachos mortos.

Mesmo assim, ela não podia ser considerada uma “mocinha”, certo? Como a garota amigável que o tinha procurado na noite anterior tinha se tornado essa garota irritada e mal educada? Talvez ela sempre tenha sido assim…

Sorte a dele não ter aprofundado os laços quando teve chance.

Luna o fuzilou com o olhar, apenas cortando o contato visual quando ouviu um urro vindo detrás das árvores à sua esquerda. Ela colocou a mão sobre a espada, preparada para atacar o que quer que fosse, mas surpreendeu-se quando Fataliz tomou sua frente, fazendo sinal para que ela se mantivesse afastada.

Como que correspondendo às expectativas, um grupo de minotauros surgiu de repente. Eles eram quase duas vezes o tamanho de Fataliz — que já era um guerreiro bem grande — e pareciam com raiva.

— Vocês de novo… — o moreno rosnou para o minotauro que os encarava.

Ao primeiro movimento dos inimigos, Fataliz avançou. Ele estava em desvantagem, sem armas e com sua armadura danificada pelos últimos combates... Mas tinha duas vidas a proteger, seu velho instinto de equipe falou mais alto.

Ele agarrou os chifres de um dos minotauros e, por tê-lo pego "desprevenido", o derrubou. Virou-se para Luna e puxou sua espada da bainha em sua cintura, usando-a para atacar o resto do grupo. Não tinha o mínimo costume com espadas, ainda mais com uma daquelas: arqueada e com o cabo curto.

Mesmo assim, ele conseguiu improvisar alguns golpes, acertando o braço do inimigo e decepando-o com um único golpe. O sangue jorrou nele e no minotauro próximo, que urrou e se jogou contra Fataliz, acertando seu braço com um dos chifres.

— Argh! Maldito! — Com um movimento rápido, o guerreiro colocou a espada à frente do corpo, fazendo com que entrasse fundo no peito do minotauro que caía sobre ele.

Luna murmurou algo e logo os dois minotauros, que iam aproveitar o fato de Fataliz estar caído e preso por um de seus companheiros, foram atingidos por uma bola de fogo azulada, que logo se espalhou pelo corpo deles e os fez correr para longe enquanto urravam de dor.

Ela olhou para o lado, Fataliz finalmente conseguira tirar o corpo do minotauro de cima de si e rasgava seu peito com a espada, fazendo com que mais sangue jorrasse e ele parasse de respirar de uma vez. O guerreiro olhou em volta, linces começavam a se aproximar, atraídos pelo cheiro de sangue e com os olhos fixos no braço decepado e carnudo.

— Você está bem? — Luna olhou para o buraco que estava no braço do moreno, sem se aproximar mais do que alguns passos

— Vamos voltar logo, os outros dois podem voltar. — Ele se virou, pegando dois jarros com uma das mãos e rosnando um pouco quando tentou pegar o terceiro com a outra mão.

— Eu levo. — Luna arrancou o terceiro jarro da mão dele, pegando sua espada que ele deixara presa ao peito do minotauro e ainda tinha sangue escorrendo por toda a lâmina.

— Desculpe por isso. — Ele indicou a espada com a cabeça, lembrando-se de como a pegara.

— Estamos vivos, não? — ela bufou, tomando a frente e caminhando pelo caminho de volta ao acampamento.

Em toda a sua vida, tinha visto poucas pessoas serem tomadas pela vontade de matar em uma luta. A forma como Fataliz arrancara aquele braço sem dó, ainda estava lhe causando alguns arrepios... Talvez ele fosse ainda mais interessante do que parecia, um dos tais guerreiros sanguinários enviados pelo próprio diabo dos quais tanto ouvira falar.

Um pouco atrás dela, Fataliz rosnava com a dor em seu braço, que só aumentava conforme a adrenalina ia passando. A forma casual com que Luna agira após o ataque o intrigara. De onde ela seria? Nenhuma garota ficaria tranquila num ambiente assim...

Será que se ele não tivesse descido ela teria conseguido se livrar de um grupo tão forte de minotauros? Talvez ele estivesse recolhendo jarros de sangue e não de água nesse momento... Sacudiu a cabeça, espantando um pensamento tão cruel como esse.




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