Escarlate escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 12
Caçada




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Luna olhou para o céu como se uma rota do caminho a seguir estivesse ali, no fim só acabara andando em círculos sem chegar a uma decisão sobre para onde ir. Era como estar cercada e, a cada passo rumo ao desconhecido, estar mais próxima de uma ameaça diferente.

Caminhava devagar, as pernas longe de estarem recuperadas protestavam mais e mais a cada passo, usando a dor para se fazerem ouvir. Ela tocou uma das ataduras expostas pela calça, ainda estava bem firme e seca, sinal de que o sangramento permanecia estancado e ela não tinha que se preocupar com aquilo por enquanto. Foi quando um som atraiu sua atenção, cortando violentamente o ar sobre sua cabeça, não precisou olhar para saber do que se tratava: asas. Asas de alados.

A injeção de adrenalina que recebeu quando o medo gélido desceu por sua espinha lhe deu força para correr até uma árvore próxima, projetando-se até seus galhos mais altos e camuflando-se entre as folhas. Não demorou para dois alados passarem bem ao seu lado, os olhos atentos no chão enquanto as mãos empunhavam seus arcos firmemente. Eles procuravam algo e ela apostaria sua espada, se ainda a tivesse, na hipótese de que caçavam mercenários desavisados. Um ataque como o que tinham sofrido não ficaria impune e com certeza ela estava na lista de procurados deles, não iriam esquecer um rosto envolvido, fosse ele qual fosse.

Eles deram algumas voltas pelas proximidades, mas sumiram tão rápido quanto tinham aparecido. Algo mais atraiu a atenção dela, algumas luzes solitárias maculavam a escuridão apenas alguns metros à frente... Ela instintivamente olhou pra baixo, amaldiçoando a si mesma por ter subido tão alto enquanto pensava em como ia descer. Não conseguiria saltar com as pernas naquele estado... O jeito foi descer, galho a galho, como uma criança que escalava uma árvore pela primeira vez, o orgulho mais baixo que o chão.

— Vergonhoso demais até pra mim... — Ela suspirou quando finalmente alcançou o chão, batendo as mãos na calça para limpá-las dos resíduos da casca da árvore.

Pegou o sobretudo que abandonara quando foi se esconder e usou-o para cobrir seu corpo, em parte para não ser reconhecida caso houvessem mais alados pelo caminho e em parte pela falsa proteção que o tecido lhe transmitia. Sentimental demais, alertou a si mesma enquanto caminhava em direção às luzes. Será que Fataliz já a estava caçando por aí? Claro, ele não tinha motivos como os outros mas... tudo nele era imprevisível, ela não se surpreenderia caso ele aparecesse e colocasse uma espada em seu pescoço...

Tocou novamente a atadura exposta e suspirou, lembrando-se do toque firme e quente do moreno que as fez. Por que tantos pensamentos sobre ele? Por que seus pensamentos táticos e instintos a abandonaram e a deixaram sozinha com lembranças triviais?

Bufou aliviada quando viu uma casa surgir à sua frente, totalmente apagada em comparação às que estavam mais distantes. O lugar mais adiante parecia uma vila, ou o que tinha sobrado dela, e era estranhamente vazio e acolhedor, ao contrário da casa que se mantinha rígida e fria bem ali. Olhou pela janela, apertando os olhos para conseguir ver algo através da espessa camada de poeira, aparentemente não tinha ninguém. Suas mãos começaram a ficar dormentes, só então se deu conta do quão frio estava e agradeceu a si mesma por ter pego o sobretudo de Fataliz que protegia, com êxito, grande parte do seu corpo.

Verificou se o braço estava devidamente coberto com uma grossa camada de tecido e, sem pensar muito, deu uma cotovelada na janela, o barulho como uma explosão cortando a noite enquanto os estilhaços tilintavam do lado de dentro da casa, provocando um eco suave. Mais uma vez olhou para dentro do local, ao ver que aparentemente não tinha ninguém de fato, projetou seu corpo pela entrada que acabara de criar num único impulso, quase que imediatamente sentindo um doloroso choque percorrer seu corpo. A barra do sobretudo agarrara num pedaço de vidro que se recusara a cair, o que fez com que a feiticeira caísse de peito no piso empoeirado, o queixo quicando violentamente contra o chão.

Teria sido uma entrada perfeita... um ponto para a

gravidade.

Levantou-se, o maxilar dormente contribuindo para sua falta de coordenação enquanto caminhava tateando na escuridão, não sabia como tinha conseguido enxergar algo pela janela minutos antes... Um cheiro pútrido invadiu suas narinas, conseguia ser ainda pior que o da sala de Fataliz, e Luna precisou de alguns segundos para se habituar e conseguir controlar a náusea antes de dar mais algum passo. O lugar era cheio de móveis, o que dificultava sua movimentação, mas foi quando bateu a perna machucada na quina de uma mesa que perdeu a paciência.

— Aero lumnis! — Ela estalou os dedos e uma pequena esfera de energia surgiu ao seu lado, era pequena e sua luz iluminava menos de um metro à frente, mas mesmo assim ela sorriu satisfeita, ainda sabia fazer truques de criança...

Agora conseguia ver onde estava, parecia uma cozinha ou uma espécie de sala de jantar e tinham alguns restos de animais espalhados, o que explicava o mau cheiro forte... Comparada a ela, a sala do acampamento era uma linda e florida capelinha. Apertou o tecido pesado contra o corpo quando mais uma lembrança invadiu sua mente, tinha que se manter focada em seu objetivo. Em sua sobrevivência. Assentiu consigo mesma, focando sua atenção numa pilha de ossos bem à sua frente, embora não rápido o bastante para que conseguisse evitar um chute descuidado, misturados aos ossos dos animais, ela conseguia enxergar alguns maiores... Muito maiores. Mas seria paranoia demais supôr que eram de humanos e não de um minotauro ou de um urso, seria forçar demais a cota de bizarrice que uma pessoa pode presenciar na vida.

Desviou de mais alguns detritos duvidosos e seguiu em frente, não acharia nada de útil naquele cômodo. Entrou num pequeno hall, consideravelmente menos empoeirado e mal cheiroso, e olhou em volta: o cômodo era completamente vazio. Suspirou um pouco desapontada, não tinha suprimentos muito menos segurança ali, tinha sido uma parada em vão...

Recostou-se na parede mais afastada da cozinha que encontrou, não sabia se era o cheiro forte ou o excesso de adrenalina que sofrera num único dia, mas sua cabeça começava a girar mais e mais a cada segundo, ao menos ali o cheiro já não era tão forte...

Fechou um pouco os olhos, tentando mentalizar o próximo passo a ser dado, não conseguiria se manter ali, mas também não tinha para onde ir, ao menos tinha um teto sobre sua cabeça ali ao invés de estar lá fora brincando de gato e rato com os alados...

Sentiu a temperatura caindo, grau após grau, até que seus lábios começaram a bater um no outro forçando-a a encolher-se no chão sob a grossa manta que já quase fazia parte de seu corpo de tão forte que a apertava contra si. Mesmo com as grossas paredes a separando do mundo lá fora, ainda conseguia ouvir as asas cortando o ar gélido vez ou outra, e tremia quando o som era próximo demais.

Algo estalou em sua mente, algo no qual não tinha tirado um segundo sequer para pensar até então. Por que estava lutando tanto? Passaria o resto da vida fugindo das mãos de um inimigo para as de outro até que eles finalmente acabassem com tal ciclo de perseguição por si mesmos? Ela não tinha um lado nessa guerra, sequer tinha um objetivo para a própria vida!

Riu, debochando de sua própria fraqueza, enquanto algo queimava seus olhos. Chorar só servia para marcar a ferro em sua pele o quão fraca era... Fungou, estalando os dedos e fazendo a sala mergulhar na escuridão total novamente.

 

***

Ela abriu os olhos, uma claridade não identificada os atingia em cheio. Piscou algumas vezes antes de finalmente se levantar e ver, pelo buraco que abrira na cozinha, que já tinha amanhecido fazia um bom tempo.

Espreguiçou-se e respirou fundo, o cheiro já não a incomodava tanto, dirigindo-se até a cozinha para sair dali da mesma forma que tinha entrado. Já tinha passado metade do corpo pelo buraco quando se lembrou do sobretudo, a tinha esquecido quando se levantou.

— Merda... — bufou, começando a voltar, mas parando ao ouvir um grito. Imediatamente olhou para frente, uma garota estava parada a alguns metros da casa e apontava para ela enquanto gritava palavras histéricas demais para qualquer um entender.

Antes que Luna pudesse pensar em como deveria reagir àquilo, ela viu o par de asas nas costas da garota, um par de asas que se camuflara muito bem contra a luz do sol. Arregalou os olhos, sentindo seus músculos enrijecerem e sua respiração falhar por um segundo, mas logo impulsionou seu corpo para trás, jogando-se no chão da cozinha novamente.

Ela olhou em volta, arrastando-se até um atiçador de lareira que estava cravado num daqueles restos repugnantes, tão logo o puxou o cheiro pútrido voltou a atingir suas narinas, mas não tinha tempo pra isso. Correu até a sala onde estava antes, lembrava-se da casa ser grande, logo, tinha que ter alguma escada por ali para se alcançar o segundo andar. Escondida entre uma parede e outra, ela a encontrou, a espessa camada de poeira que cobria uniformemente os degraus fez com que ela diminuísse o ritmo e usasse sua cabeça mais estrategicamente e... bem, menos impulsivamente.

Subiu degrau por degrau, atenta a qualquer barulho que indicasse que poderia deixar de ser cuidadosa e partir para um ataque direto, apenas se isso fosse necessário para salvar sua pele, claro. Estava no quinto degrau quando ouviu uma explosão de vidro, em ambos os andares. Olhou em volta, segurando o atiçador em posição de ataque, não era uma espada ,mas certamente podia causar algum estrago se atingisse o local certo.

Apressou-se escada acima, certamente seria um lugar mais fechado que o andar de baixo e isso dificultaria bastante o uso das asas deles...

Não pôde formular um plano completo antes de ser arremessada contra uma parede por uma asa forte o bastante para prendê-la se quisesse, um alado a esperava no alto da escada e não perdeu tempo em atingir o alvo.

— Não é tão forte sozinha, não é? — Ele chutou o atiçador de lareira pra longe, debochando enquanto observava Luna tossir do outro lado do corredor.

Ela levantou o olhar para ele, o torso nu revelava uma musculatura forte e incomum para alados, talvez eles, assim como os mercenários, fossem dividos em tropas de acordo com seu tipo físico, deixando os guerreiros mais fortes para missões como essa. Ela seguiu uma cicatriz que ia de seu pescoço até o meio de seu peito, levantando-se aos poucos enquanto arfava, ele acompanhou seu olhar e sua expressão se transformou por completo quando identificou o foco da atenção de Luna. Seus lábios se contorceram e seus olhos fuzilaram os dela pouco antes da primeira investida, onde ele avançou com tudo contra ela, fazendo-a se chocar contra a parede com seu ombro.

Luna  rosnou, engasgando com o próprio ar, caçou alguma parte do corpo dele com as mãos, alcançando sua asa direita e apertando-a com força enquanto murmurava algo, logo uma chama azul começou a fluir de sua mão e se espalhar pelas penas impecavelmente brancas. O alado urrou, voando para o outro lado da sala por instinto enquanto apertava as penas chamuscadas com uma das mãos, desviando sua atenção de Luna por alguns segundos, o suficiente para ela cambalear apressada até o atiçador e agarrá-lo com firmeza, investindo contra o peito do alado. Mas ele foi ainda mais rápido e ergueu suas asas, agitando-as intensamente e empurrando-a para longe com uma rajada de vento repentina.

Ambos estavam frente a frente, um de cada lado da sala, ofegantes. A fúria no olhar dele era quase palpável, ele se mantinha agachado e ela conseguia ver perfeitamente a área que atingira em sua asa, estava levemente enegrecida e, se o que aprendeu sobre alados estivesse correto, estava queimando tanto quanto ter a pele perfurada por um ferro em brasa.

— Por que não vem até aqui e acabamos logo com isso? — ela provocou, mirando o ponto em sua asa onde cravaria o atiçador que segurava.

— Heh, acha mesmo que tem alguma chance? — Ele sorriu, todos os músculos de seu corpo preparados para aproveitar qualquer brecha que ela abrisse.

Passos apressados cortaram a tensão, fazendo com que ambos olhassem para a escada enquanto um grupo de alados subia apressado. Luna aproveitou a chance e mergulhou entre eles, camuflando-se entre os inúmeros pares de asas até estar perto o bastante do alado que enfrentava, cravando, enfim, o atiçador no meio de sua asa com toda a força que conseguiu reunir. O urro dele explodiu no ouvido de todos no andar, era doloroso e enfurecido, e logo foi acompanhado por mais gritos, dessa vez dos outros alados que gritavam uns com os outros para pegarem a responsável por aquilo. Heh, como se Luna fosse ficar para a festa...

Ela correu em direção à janela, o vidro havia sido quebrado e com certeza tinha sido por ali que o alado entrara. Lançou-se sem pensar nas consequências, na melhor das hipóteses morreria antes que os alados conseguissem tocar nela. Sentiu o ar quente varrer para trás os cabelos que chicoteavam seu rosto, sentiu a liberdade da queda e resistiu à tentação de fechar os olhos quando notou um galho próximo o bastante para que suas mãos alcançassem.

Os deuses não estavam dispostos à libertá-la ainda.

Ela agarrou o galho com força, diminuindo sua velocidade, mas não conseguiu se segurar e usou os pés para impulsionar seu corpo para trás, desviando das raízes expostas da árvore pouco antes de cair. Rolou pela grama e olhou para cima bem a tempo de ver o grupo de alados mergulhando em sua direção, o alado ferido a encarava friamente da janela, provavelmente ferido demais para voar, e ela agradeceu aos deuses por mais esse golpe de sorte. Mas não tinha tempo para agradecer, as asas deles eram muito mais rápidas que suas pernas, sua única chance era levá-los a um lugar onde não pudessem voar. Aí sim teria vantagem.

Correu entre as árvores, os músculos queimando tanto quanto sua garganta, que parecia estar em chamas a cada vez que um pouco de ar passava para seus pulmões. Ela conseguia sentir a brisa mortal emanando das asas deles, a garota de antes estava bem colada em seu calcanhar e não se afastava nem mesmo quando ela ziguezagueava entre as árvores aleatoriamente. Luna observou-a ganhar velocidade o bastante para se manter voando ao seu lado, mas percebeu que as pontas de suas asas já começavam a se chocar contra uma ou outra árvore, desestabilizando seu vôo. Sorriu sadicamente, erguendo uma das sobrancelhas e convidando a alada a segui-la, tinham sobrado poucos alados ainda no ar e ela estava decidida a não permitir que a garota fosse uma delas.

Sentiu seu corpo se aquecer, os pés rápidos e ágeis se moviam automaticamente por entre as raízes e as pedras no caminho, os olhos enxergavam cada forma até seus detalhes mais íntimos... Como os animais, tinha um modo de sobrevivência, onde suas ações eram intensificadas e potencializadas. Era uma das poucas “bençãos” que sua maldição lhe trazia, ter sentidos e instintos tão aguçados e precisos quando sua vida estava em risco. Ela sorriu satisfeita quando viu a alada começar a perder velocidade, atrapalhando-se quando tinha de contrair e expandir as longas asas para evitar um encontrão doloroso contra os grossos troncos da árvore.

A alada subiu como um raio em direção ao céu, desaparecendo tão logo passou pelas copas excessivamente folheadas das árvores, Luna derrapou, parando e olhando em volta enquanto tentava prever o próximo movimento de sua oponente. Todos os outros alados tinham ficado para trás, por quê aquela garota estava sendo tão insistente?! Rosnou, decidida a finalizar o "pega-pega" sem fim de ambas, no mesmo segundo sentiu algo zunir a milímetros de sua orelha esquerda. Uma flecha, era só o que faltava...

Ela retomou a corrida, conseguia ouvir o barulho de uma queda d'água próxima dali, se não a despitara correndo, recorreria à espuma e às rochas de uma queda d'água para camuflá-la. O caminho foi ainda mais aleatório e tortuoso, pelo visto sua oponente tinha descoberto seu plano e usava suas flechas para tentar desviá-la, mas Luna mantinha-se focada no som da água, ignorando todo o resto. Já conseguia sentir o ar úmido refrescando seu rosto...

— Vem me pegar sua passarinha inútil... — ela rosnou, impulsionando-se para o alto de uma pedra e, dali, impulsionando-se ainda mais à frente, mergulhando em uma queda livre e permitindo que o abismo aquático a engolisse como um monstro faminto.

Fechou os olhos e esvaziou a mente, bloqueando o grito furioso da alada que tentou, em vão, atingi-la com mais uma flecha.


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