Premonição Chronicles escrita por PW, VinnieCamargo, MV, SamHBS, Felipe Chemim


Capítulo 22
Capítulo 21: Arraste-me Para o Inferno


Notas iniciais do capítulo

Escrito por PW e 483ViniKaulitz

Links para as músicas introduzidas no capítulo:

The Broken Ones - Dia Frampton
https://www.youtube.com/watch?v=Zz04teo1j9k

Dead & Gone - T.I. feat Justin Timberlake
https://www.youtube.com/watch?v=6mEx9FtuN0k

Carousel - Melanie Martinez
https://www.youtube.com/watch?v=e7sEvJN6kPY



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O garoto piscou duas vezes, com a visão ainda turva, consequência do alucinógeno que ousara usar. Depois do atentado contra Alisson e da ocorrência com Marina naquele mesmo dia, pela manhã, suas estruturas estavam abaladas no último grau, e ele não pode resistir à LSD. Seu corpo precisava repousar e foi nessa droga, na qual ele nunca utilizou, que encontrou a paz.

Percebeu que estava caído no chão, recostado ao muro de uma pequena usina desativada, enquanto as pesadas gotas da chuva torrencial caíam e se amontoavam sobre ele, se acumulando em sua jaqueta. Havia um depósito de lixo bem próximo a ele, o que dificultava ainda mais sua percepção. Segurou no muro ao lado e olhou para o duplex muito bem conservado a sua frente. A visão embaçada e distorcida retardava a análise do lugar, mas ele conseguia distinguir o que esperava encontrar: o apartamento de Kethellen. E por pouco não esquecera que ele tinha um alvo com ela, o pequeno Kevin.

Felipe não soube deduzir por quanto tempo ficou apagado naquele chão imundo e infestado de insetos, mas tinha certeza de que não havia sido muito, visto que uma das luzes do duplex, a do quarto da garota, continuava ligada, do mesmo jeito que ele encontrou quando chegou. Ele observou o grande saco preto em suas mãos, concluindo que os inúmeros palhaços de todos os tipos de tamanhos, formas e cores, ainda estavam ali.

Seu propósito era justamente levar a vida da criança, já fazia bastante tempo que Felipe estava fora de si, e aquilo seria mais uma seqüela de seu transtorno obsessivo adquirido a partir da maldição da lista da morte. O que estava planejando era ser um serviçal da morte, já que não conseguiria detê-la... Juntar-se-ia a ela, sem hesitar.

Então, agarrou o saco com força e o colocou nas costas, caminhando em passos pausados na direção do duplex. A vertigem causada pelo alucinógeno só aumentou a cada passada e ele não conseguiu prosseguir, caiu de bruços na calçada e o saco caiu ao lado, deixando que dois dos palhaços, os menores, rolassem para a rua e caíssem em uma boca-de-lobo. Ele esticou o braço, ainda estirado no chão, na tentativa frustrante de alcançar os brinquedinhos, mas seu braço foi adormecendo e logo ele enfraqueceu. Sim, os efeitos do alucinógeno não eram só prazerosos.

Em meio aos pensamentos confusos, a lembrança da alucinação que tivera lhe chamou atenção novamente, ele não sabia distinguir se aquilo tinha sido real ou não, nem sequer lembrava-se dela por completa, mas ainda sentia o gosto de sangue na boca. Parecia ter sido real, seu corpo se esvaindo e...

Como flashes, cenas aleatórias iam aparecendo e desaparecendo de sua mente e ele caiu em si, caiu em um completo rebuliço interno. Seu estômago embrulhou e ele resistiu, foi erguendo-se da calçada aos poucos, desta vez segurando na borda da caçamba de lixo. Olhou para o saco preto e para os palhaços, continuava a ver tudo embaçado.

Socou a cabeça diversas vezes, antes de voltar a caminhar vertiginosamente através da escuridão daquela noite. Era visível que o garoto estava perturbado, e sua situação tendia a piorar. E pioraria até ele não agüentar mais e desistir. Era isso que a morte faria, e mesmo Felipe se aliando a ela, teria uma facada cravada nas costas, seria covardemente apunhalado pela ceifadora. Ela não tinha piedade, muito menos aliados, o que ela quer é levar as almas, não importa se ela seja a de um infortuno auxiliar. A sanidade se foi, o que restava era entregar-se à loucura.

Chemim encontrou uma mureta feita de madeira, logo na lateral da casa, ela era coberta por vinhas e algumas heras. Flores não eram ausentes, mas permaneciam em minoria. Essas flores não eram coloridas, a cor era uniforme para toda a mureta. Foi ai que o jovem se atreveu a subir, e mesmo cambaleante procurou obter sucesso no silêncio. Qualquer pisada mal-dada, e Keth teria um motivo a mais para chamar a polícia. Com dificuldade, pôs o saco preto na boca e escalou cautelosamente a mureta repleta de plantas.

A sua visão continuava lhe pregando peças e seus olhos já não focavam em uma única coisa. Ele via as plantas se aproximarem e envolverem-no, elas revestiam seus braços e pernas, passando para a cintura e assim, cobrindo-o por completo. Chemim tentou pedir ajuda, mas uma das vinhas enroscou em seu pescoço e o apertou bruscamente, sufocando o garoto. Ele não tinha mais voz, a vinha fechou sua traquéia e a esmagou com brutalidade, quebrando seu pescoço de imediato. Ele mesmo pode ouvir o estalo, e então comprimiu os olhos.

Quando os abriu, olhou para os braços e pernas, não havia mais vinhas ou heras, nem o pólen das flores. Nunca existiu, era mais uma pegadinha neurológica. Realmente ele não deveria ter utilizado os alucinógenos, agora ele mal conseguia saber o que era real ou não. Suas mãos ficaram trêmulas e escorregadias. Felipe não pode se segurar mais e caiu dentro de uma das caçambas de lixo. No impacto, sua prótese bateu na borda da caçamba e isso rendeu um palavrão terrível proferido ao invés do grito de dor. O grito seria o bastante pra que a possível vítima dele triunfasse. E ele agradeceu sua retração de impulso por não tê-lo feito seguir para o fundo do poço, ele não teria como dar explicações ou ser cínico o bastante para a moradora do duplex.

Mas sim, ele tinha cinismo o suficiente para ter sangue frio na hora de matar o pequeno Kevin, mas ele não conseguia arrecadar forças. Não no estado que estava. Não com todos os alucinógenos e conseguintemente, todas aquelas alucinações. A cabeça de Chemim estava prestes a explodir e ele não queria que seus pensamentos escapassem de sua cabeça. Não ali, não naquele instante. Muito provavelmente ele teria êxito em entrar despercebido na casa, porém, era pouco provável a sua louvável vitória sobre Kethellen. Apesar de grávida, tinha mais experiência, claramente mais preparada. Ela não deixaria que ele tirasse a vida de seu filho.

A mãe arruma bravura e resistência baseadas no risco que seu filho está correndo. E naquele caso, Keth lutaria até o fim.

A cabeça de Felipe começou a latejar fortemente e ele massageou as têmporas, saindo da caçamba com cuidado para não machucar novamente sua prótese. Mais uma pancada como aquela e ele daria adeus ao único apoio à nova deficiência. Já estava fora do recipiente sujo, quando olhou para a janela que mostrava o quarto, com a luz acesa e viu o vulto da garota na janela. Ele pegou o saco repleto de palhaços de brinquedo e respirou fundo. Sua cabeça não dava trégua, doía desgraçadamente.

Acabara por desistir de invadir o apartamento. Se ele exterminaria qualquer vida que existisse dentro de Keth, que não fosse durante o efeito da LSD. Então tentou refazer o mesmo trajeto que fizera até a residência, cambaleando, sendo banhado pela tempestade.

Na janela do apartamento, Kethellen surgiu, acariciando a barriga. Kevin parecia agitado, não parava de chutar. Acalme-se querido, ficará tudo bem. Você vai ficar são e salvo...

XXX

Depois de passar na casa de Pedro e deixar uma pequena lembrança, e antes de chegar até o hospital onde Marina permanecia internada, Felipe fez questão de uma visita rápida a Vinicius, que ainda reagindo a poucos estímulos, já apresentava um quadro melhor comparado ao que mostrava, quando adentrou no leito.

O jovem deformado conseguiu com facilidade a façanha de se passar por um primo interiorano de Vini, o que apressou a sua entrada no quarto onde o outro rapaz jazia acamado e ligado a alguns aparelhos. Encarou-se por breves segundos seu reflexo no vidro do quarto. Estava inteiramente distorcido e uma mancha negra dificultava a visão de seu tronco para cima, como se estivesse sendo apagado aos pouco. De certo modo, todos seriam apagados daquele mundo, todos seriam desconectados.

O purgatório nunca esteve mais próximo.

– Sinto muito por não ter sido o causador dos disparos... Realmente seria um prazer. – Murmurou, enquanto observava o rapaz deitado e com os olhos bem fechados.

Chegou mais perto da cama e acariciou o lençol, seguindo com a mão até um travesseiro reserva. O objeto estava pousado sobre a poltrona de um acompanhante inexistente. Pois Kethellen estava muito ocupada cuidando de seu filho, Pedro não poderia acompanhá-lo e Alisson também continuava internada, depois de ser atropelada naquele mesmo dia. E João? Estava quase realizando a passagem astral, se é que ela existia.

Chemim teve vontade de sufocar Vini com aquele travesseiro, até os aparelhos não o ajudarem mais na respiração e ele se fosse de uma vez por todas para onde quer que estivesse destinado a ir. Mas teve outra ideia. Seguiu vagarosamente até os aparelhos, todos conectados por vários fios às diversas entradas e dispositivos. Não fora difícil de identificar o que ligava os demais, o que fornecia entrada aos outros.

A mão deslizou sobre o maior fio, deveras o principal, e ele puxou-o.

O aparelho indicou que a respiração de Vinicius naquele mesmo instante era exatamente nula. Chemim sorriu e comemorou internamente. Saiu do quarto de forma rápida, aliviado por ter cumprido mais uma tarefa de sua mais nova “blacklist”. Ela não é a única que pode criar uma lista, eu também posso. Eu posso tudo! Alisson, João, Pedro, Vinicius... Tudo que eu queria, eram forças suficientes para acabar com aquela sobrevivente vagabunda e sua cria inútil!

Deixou a porta do quarto, entreaberta, para que pudesse ser fácil alguém que passasse por ali, testemunhar o falecimento do rapaz, outrora em coma.

– Quer um show? Terá seu show, querida. – Bradou pelo corredor, enquanto a luz acima dele piscava incansavelmente. – Sente-se, fume seu cigarro, pegue sua bebida e acompanhe o espetáculo! Aplausos apenas para meu final triunfante, por favor.

Parou antes de chegar à escadaria no fim do corredor. Uma tontura instantânea quase o fez tropeçar e rolar degraus abaixo, sua vista escureceu e um buraco surgiu bem na sua frente. Somente outra ilusão causada pelos resquícios do alucinógeno. Maldita hora em que usei aquela porra. Sua salvação foi ter se segurado no último segundo no corrimão, agradecendo por não ter que usar outro suporte de metal.

Enquanto isso, dentro do quarto, um vento frio percorreu o cômodo, balançou as cortinas verdes e folheou algumas revistas. A mesma brisa pareceu lamber o rosto e os cabelos de Vini. O lençol também chacoalhou. De repente, a aparelhagem voltou a ligar.

A respiração dele retornou. Os bips indicavam que não era a sua vez de ir. Vinicius estava a salvo por enquanto. E tinha sorte da morte estar sendo tolerante com ele.

XXX

Alisson estava assistindo tevê no quarto do hospital quando ouviu um estrondo e tudo que estava ligado à energia ao redor, desligou ao mesmo tempo. Olhou para os lados e verificou se os outros dois enfermos que também dividiam o cômodo com ela estavam bem. Levantou-se da cama, com os braços e as coxas doloridas, e os pés descalços tocando o chão gélido. Esticou o braço e segurou um aparato de ferro que servia para colocar as bolsas de soro ou sangue.

Sentindo-se segura para prosseguir, Alisson caminhou lentamente até o outro lado do cômodo e se aproximou da cama de um homem saindo da casa dos trinta anos. As enfermeiras o chamavam de Chan, por ele ser bastante parecido com Jackie Chan. O homem oriental estava em recuperação de um acidente de trabalho, onde foi atingido no ombro por uma pistola de pregos, durante o expediente em uma loja de construções. Era um homem introvertido e carrancudo, vivia resmungando das dores e xingando a sua acompanhante na língua japonesa. Isso foi o que Alisson deduziu, depois de duas visitas de quem parecia ser sua esposa.

Chan já estava sentado na cama, apoiando as costas em dois travesseiros grandes. Ele olhou para Alisson e acenou com a cabeça, confirmando que estava bem. Logo depois, ela seguiu para o leito ao lado, os dois leitos eram divididos por uma cortina grande o bastante para promover privacidade.

Ela levou um susto quando não viu a adolescente que ficava naquela cama. Mesmo escuro, era possível enxergar a cama vazia e desarrumada.

– Onde será que ela foi? – Disparou, pondo a mão na cintura.

– Ela quem? – Chan indagou.

– Violeta, a garota que fica aqui na cama ao lado.

De súbito, a adolescente apareceu atrás de Alisson e arrancou um gritinho dela, que se virou, dizendo:

– Nossa, que bom que você ainda ta aqui. É perigoso demais sair por ai com esse blackout.

– Relaxa. Meus pontos de safena não me deixarão ir muito longe daqui. No máximo até o fim do corredor, depois disso... Vem a dor infernal. – O tom de voz dela não poderia ser mais resignado.

Violeta tinha seus dezesseis anos, era alva e repleta de sardas pelo rosto. Ruiva, com cachos naturais e corpo esguio; vestia outro tipo de pijama de hospital, diferente de Alisson, e cantava muito durante o dia. Isso irritava Chan, mas Violeta não ligava para o que o oriental falava.

– Bom... O que vamos fazer? Não quero ficar com tédio no meio dessa escuridão. – A ruivinha comentou.

– É simples, garota. Volta pra cama e espera a energia voltar. – O homem retrucou.

– Não vou agüentar esperar. – Violeta arfou, cruzando os braços.

– Tudo que podemos fazer é aguardar a chegada de algum funcionário. – Alisson respondeu por fim.

De novo outro estrondo sacudiu o andar. As duas garotas se apoiaram na primeira coisa que viram e começaram a ficar assustadas. Um quadro se desprendeu da parede e caiu.

– Que merda está havendo aqui? – Alisson disparou.

– Um terremoto no Brasil? Deve ta de brincadeira. O país não tem estruturas pra receber um evento dessas proporções.

– Não é hora para brincadeiras, Violeta. Isso é sério, está acontecendo alguma coisa nesse lugar! – Alisson foi caminhando de maneira pausada até a porta do quarto e olhou para o saguão. Não havia ninguém e a escuridão predominava. Droga, droga... Tem alguma coisa errada aqui.

Outro barulho e outro tremor. Desta vez mais leve. Alisson olhou para dentro do quarto novamente e Violeta já estava voltando para sua cama, onde deveria ficar até tudo se acalmar. Chan continuava calado e imóvel.

De repente ouviram-se gritos vindos do saguão. Um médico e duas enfermeiras apareceram correndo e uma delas viu a jovem parada na porta, preocupada. Os outros dois funcionários seguiram no corredor e ela entrou, apaziguando-os:

– Fiquem calmos, houve um problema dois andares acima, inclusive nos geradores, mas a orientação até o momento é que fiquem em seus leitos aguardando mais informações. Todas as medidas cabíveis já estão sendo tomadas para melhorar a situação. – A voz dela saiu embargada.

– Por que não desembucha de uma vez o que realmente está acontecendo? Omitir um estado de alerta para os pacientes é a última coisa que devem fazer. – Chan se pronunciou.

– Só precisamos que fiquem calmos e permaneçam aqui.

Alisson assentiu. Violeta fez o mesmo e Chan resmungou.

Depois de a enfermeira seguir pelo corredor, outras duas pessoas, que não estavam trajando uniformes da unidade de saúde, apareceram correndo desesperadas. Uma delas gritava:

– Eu vi! Aposto que foi o guindaste, temos que sair daqui, ele fará um estrago feio!

E continuaram correndo, ignorando Alisson parada na porta.

Um raio atrás dela cortou o céu, iluminando o quarto por inteiro. Violeta encolheu o corpo no canto da cama, com cuidado para não danificar os pontos de safena. Chan não teve oportunidade de fazer o mesmo, então apenas fechou os olhos e imaginou que estivesse em um lugar melhor. Alisson imaginou que os dois ficariam bem, já que não sairiam do quarto por hipótese alguma, e a enfermeira prometeu voltar. Respirou fundo e saiu do quarto, seguindo próxima da parede, cautelosamente. Antes de ir, voltou e fechou a porta. Se ela não descobrisse o que havia acontecido, não teriam respostas tão cedo.

O saguão não era nada convidativo na situação que se encontrava. O cheiro de hospital entrou na via nasal da jovem e fez seu estômago embrulhar. Nunca iria se acostumar com o aroma. A escuridão tomava conta do corredor extenso e um elevador era a saída. Da janela era possível ver as luzes da cidade lá embaixo. Apenas o hospital havia sido atingido com o blackout, e os geradores deveriam fazer com que a energia voltasse o mais rápido possível, já que os pacientes necessitavam dela.

Foi só ter aquele rápido pensamento, que a luz acima de si acendeu. As três lâmpadas mais próximas ligaram e ela respirou aliviada. Violeta e Chan já poderiam ficar mais sossegados, sabendo que não passariam o resto da noite no escuro.

Alisson correu até o elevador. A adrenalina era tão grande que não sentia mais a dor nos braços e coxas. Apertou o botão para subir e esperou que a caixa de aço viesse. Assim que as portas se abriram várias pessoas saíram de lá. Uma delas empurrou-a e ela por pouco não batera contra uma samambaia no canto da parede. Entrou no elevador sem dar a mínima e apertou o botão que dava para o oitavo andar. Era de fato arriscado, mas não perderia a chance de saber o que causava todo aquele alvoroço dentro da unidade hospitalar.

As portas abriram e revelaram para a garota um ambiente devastado. No chão, a rachadura se estendia dali até onde ela não conseguiu mais enxergar, e os raios da tempestade clareavam de maneira assustadora o lugar. Um enorme buraco na parede, que ia do chão ao teto, deixava a chuva molhar tudo, enquanto o som de ferros retorcidos ecoava. A ponta de um guindaste prendia a parte inferior do buraco e duas silhuetas se mexiam de frente à fenda.

Alisson saiu do elevador e deu alguns passos na direção das silhuetas. Aquelas pessoas precisavam de ajuda e não havia mais ninguém ali além dela para tirá-los de lá.

– Venham por aqui! – Ela gritou, mas um raio impediu que a escutassem.

Num piscar de olhos uma bola de fogo surgiu da abertura e as silhuetas desapareceram por questão de segundos. Alisson protegeu o rosto do brilho incandescente e caiu sentada. Quando olhou para frente, viu vários objetos sendo lançados contra as duas pessoas. Entre eles, uma pá atingindo o mais magro na perna, arrancando uma parte dela. Oh, meu Deus! Tapou a boca, sem ter ação alguma.

Em seguida, um vergalhão o atravessou com brutalidade e Alisson se viu em choque.

No momento em que ouviu a rachadura aumentar, a garota se ergueu do chão e recuou de volta ao elevador. Olhou por cima dos ombros e viu o guindaste despencar, levando boa parte do piso consigo. Uma das pessoas deslizou para a borda do andar e ela gritou instintivamente. As rachaduras abriram outra fenda no chão e foi a deixa para Alisson sair dali. Voltou ao elevador, e quando as portas se abriram ela tremeu. Antes de fecharem, viu o chão desabar, levando consigo as duas vítimas.

Poucas horas depois, Alisson foi transferida. E em seu novo leito, recebeu a visita de Pedro.

XXX

Cinco dias depois.

Pedro ouvia música, enquanto esperava o médico trazer-lhe notícias boas. A primeira que recebera foi a de que Alisson já havia recebido alta. Ela lhe ligara no mesmo dia e os dois conversaram um pouco, e ele contou tudo o que tinha acontecido. Ela também não poupou esforços e explicar-lhe o que tinha passado no hospital. E prometera-lhe uma visita.

Já tinha completado quase uma semana desde que Pedro não enxergava nada. Aquele caleidoscópio anônimo lhe trouxera a pior desgraça em sua vida, mais até do que a lista da morte, pois seu medo estava de volta à tona. Ele estava cego, e não havia esperanças, a menos que o médico lhe desse uma notícia boa. O presente tinha um admirador aparentemente desconhecido, mas o universitário tinha certeza de que havia um dedo de Felipe naquela história, e naquele instante ele desejou tudo de ruim ao inimigo, inclusive sua morte.

A sensação era de pura aflição. Pedro estava de olhos abertos, mas para ele, a escuridão seria eterna se algo não fosse feito para reverter o quadro clínico que tanto lhe apavorou. A música ainda tocava em seu fone:

I know they've hurt you bad,
Why hide, the scars you have,
Baby let me straighten out your broken bones,
All you faults to me make you more beautiful.

I can't help it,
I love the broken ones,
The ones who need the most patching up,
The ones who never been loved,
Never been loved, never been loved enough.

Maybe I see a part of me in them,
The missing piece always trying to fit in,
The shattered heart, hungry for a home,
No your not alone, I love the broken ones.

I Love the broken ones. Eu amo os quebrados. E Pedro estava quebrado. Arriscou um sorriso, o mais bobo que dera durante o que passou. A letra da música parecia ter sido escrita para aquele trecho da história deles. Foi parecido com o sorriso que deu depois de tocar os lábios de Alisson. Tinha sido um ato errado, por mais que a garota não tivesse hesitado ou resistido, ela estava um tanto traumatizada e sua memória oscilava como nunca. Se algo rolasse entre os dois, precisava ser algo são, algo de coração. Pedro detestava coisas momentâneas, daria tempo ao tempo para que tudo se estabilizasse e resolveria de uma vez por todas seu futuro. Com Alisson ou sem Alisson. Mas que ele adorava a companhia dela, isso nem ele mesmo negaria.

O médico entrou, rompendo seus pensamentos. A porta bateu e Pedro retirou os fones com cuidado. Sua audição havia ficado mais sensível durante aqueles dias.

– Por favor, doutor, me dê uma boa notícia. Chega de desgraças!

– Fique tranqüilo, Pedro. É uma boa notícia sim. Na verdade, uma ótima notícia.

– Estou preparado.

– Começo dizendo que você teve muita sorte desse acidente não ter tirado completamente sua visão. Ainda está em fase inicial, por isso você não consegue enxergar nada, mas depois da bateria de exames, pude concluir e asseguro a você que ainda conseguirá enxergar parcialmente as coisas, no mínimo vultos.

– Não sabe como fico mais aliviado depois disso, doutor... Mas essa não é a boa notícia, é?

– Não, tem mais de onde veio essa. Conseguimos uma cirurgia especial para você em algumas horas. Será realizado um procedimento que chamamos de “rejuvenescimento ocular”. Células-Tronco em fase de testes serão as responsáveis por lhe devolver sessenta por cento de toda sua visão.

– Sério mesmo, doutor? Vou ter minha visão de volta?

– Opa, respire um pouco, rapaz. Torno a repetir que terá apenas sessenta por cento de sua visão total, mas passará a usar lentes de contato também com Células-Tronco que darão uma melhor qualidade e estabilidade no seu novo modo de enxergar.

– Muito obrigado! Muito obrigado mesmo!

Foi o basta para deixá-lo mais feliz até o dia da realização da cirurgia, que traria a sua tão desejada visão novamente. Ter um pedaço dela já era o suficiente. O seu maior medo era não poder mais enxergar os rostos das pessoas que tanto amava, tinha medo de não acompanhá-las envelhecendo junto dele, ou nunca poder encarar seu reflexo no espelho e reclamar de seu físico. Tinha medo de não ter contato com as belezas do mundo. Ser cego era como ter asas, mas não conseguir voar.

XXX

Alisson acordou quebrada.

De fato, aquilo estava acontecendo muito nos últimos dias.

Estava longe do hospital, longe do tumulto, longe da morte, hospedada na casa de tios que ela sequer lembrava o nome na noite anterior. Sugestões perfeitas de vinganças em Chemim e sua cachorrinha - Alisson havia aprendido muitos truques na Penitenciária de Stonybrook alguns anos mais cedo – lâmpadas recheadas de vinganças que paralelamente acendiam e apagavam em sua mente.

Aquilo era inútil, claro. Ambos estavam mortos agora - para o bem da população.

Dois dias antes, Alisson tinha recebido alta. Os médicos tinham ficado absolutamente perplexos com a recuperação da garota tatuada que sorria – mas cujo tal sorriso desaparecia em pedacinhos a medida que as respectivas lembranças caíam em seus devidos lugares.

Agora Alisson se lembrava de tudo.

Pedro. O garoto estava se recuperando de sua cegueira parcial, graças ao tal do Chemim, pseudo-psicopata que adorava fazer o mundo girar ao redor do nariz dele.

Finalmente, haviam feito uma cirurgia complexa pra caramba nos olhos dele. Alisson esperava que o garoto já estivesse bem o suficiente naquele instante.

A luz do sol filtrou através da cortina de lacinhos – ela estava no quarto que outrora pertencia à prima (que ela nunca havia conhecido), havia mudado de estado pra fazer faculdade.

Era um quarto agradável, cheiroso e fofo. Alisson evitou comparar o ambiente (relativamente novo para sua mente recém-acordada)– que seja – com uma cela de prisão. Alisson tinha adquirido aquele horrível hábito no instante em que havia deixado o Stonybrook. Pisar num lugar novo. Relembrar. Comparar. É, qualquer lugar era melhor que aquela merda.

Alisson havia deixado a prisão, voltou para o Brasil, se viu enrolada em mais merda. Psicopatas e ceifadores. Vítimas inocentes e fatalidades. No sonho da noite anterior, ela encenava um adeus para a terrinha tupiniquim, direto da janelinha do avião para se encontrar amarrada no assento – mais uma vez com o uniforme laranja da prisão. Ela percebeu que tudo aquilo estava mexendo com a mente dela, pois justamente não considerou tal visão como um pesadelo.

Espreguiçou-se, as rosas no braço esticando e dobrando – os pelinhos loiros com a luz natural do sol. Uma cicatriz ali que ela sequer conhecia. “She will rise above” de Daughter do Pearl Jam – intacta. Aquilo tinha que significar algo, certo?

Alisson sentia-se violada. Arrependida. Não entendia o motivo de ter feito coisas muito além de estúpidas nos últimos dias, era quase como se uma pessoa totalmente diferente estivesse escrevendo suas linhas – e pior, escrevendo errado.

Agora ela se sentia viva novamente. Sua essência estava de volta. O golpe de Felipe havia ajudado. Ela estava no controle.

Rising above.

O celular na mesa tocou. Alisson esticou o braço e olhou na tela.

“KETH”.

XXX

Alisson desceu do carro, rapidamente encontrando o prédio de Keth. O sol da manhã já havia sido substituído por um vento sombrio. Ela já ouvia as ambulâncias chegando, mas aquilo não era o suficiente para fazê-la esperar.

Keth estava entrando em trabalho de parto e acabou caindo em seu apartamento. Keth estava nervosa demais para conseguir revelar sua localização para a emergência. Sem Vini e com Pedro não atendendo ligações, Keth estava tão sozinha.

Keth havia ligado para Alisson.

Alisson já estava correndo pelas escadas.

Se Alisson precisava agir – era ali e agora.

XXX

Caída no chão do banheiro, Keth lamentava.

Ninguém era capaz de saber o que ela tinha passado nos últimos meses.

Keth chorava, tentava se levantar, escorregava no shampoo escorrido pelo chão. Não conseguia se arrastar pois não aguentava com o próprio peso. Aquilo era simplesmente horrível.

“Uma menina me ensinou

Quase tudo que eu sei

Era quase escravidão

Mas ela me tratava como um rei.”

Keth não tinha ideia de porque havia ligado o rádio tão alto. Mas aquela música estava tocando naquele momento, e ela não poderia ignorar a sensação de que era mais um presságio horrível e de puta mal gosto da menina Morte.

Era a mesma música que estava tocando na primeira vez que ela quase morreu.

Então veio o som – Keth se assustou – olhou para a porta.

Alisson a encarava. Chocada.

Keth já tinha visto aquele olhar de medo uma vez. Era no rosto de Vini.

–--

Uma mão. Agarrada em seu pulso. Keth piscou. Tatuagens... Vini?

– Vai ficar tudo bem, - a garota comentou. Um sorriso nervoso.

E Keth sentiu uma tontura, mas percebeu que era pois estava sendo erguida na maca.

Ela estava salva. Se tudo desse certo, ela e Kevin estariam salvos.

Keth não teve certeza, mas achou que estava sorrindo – devido ao sorriso na cara dos paramédicos. E o sorriso de alívio na cara da tal Alisson.

“Ela também estava perdida,

E por isso se agarrava a mim também,

E eu me agarrava a ela,

Pois não tinha mais ninguém.”

Olhando para o teto, flutuando na maca, meio grogue com um anestésico dado pelos paramédicos – Alisson havia perguntando se grávidas poderiam tomar aquilo, - Keth se viu deixando seu apartamento mais uma vez.

“E eu dizia ainda é cedo, cedo, cedo, cedo, cedo...”

XXX

Alisson estava na sala de espera da maternidade, os braços amarrados ao redor do próprio corpo devido ao ar-condicionado. Havia vindo com a ambulância. Ela odiava hospitais. Pedro, ainda em recuperação da cirurgia, parecia uma múmia com metade do rosto enfaixado. Por ora coçando as gazes. Ele estava bem, mas ainda não enxergava porra nenhuma.

Pareciam horas desde que haviam levado Keth para a sala de partos. Mas faziam apenas minutos.

E ela se sentia errada. Se acontecesse alguma coisa com Keth ou o bebê, poderia ser culpa dela.

Merda, por que ela tinha empurrado a garota da escada?

Aquele pensamento nunca sairia de sua mente. Aquela ideia estúpida iria confrontá-la pelo resto de sua vida.

– Vai dar certo – Pedro disse e voltou a coçar o rosto. Ele estava falando para uma parede. Acreditava que Alisson estava ali. As pessoas desconhecidas espalhadas pela sala pareceram desconfortáveis com a situação, mas Alisson riu e se aproximou.

– Mas você é pior que criança – Alisson o repreendeu com um tapinha na mão. Pedro recuou, subitamente assustado com o toque do lado oposto – ele não podia vê-la.

Alisson corou. Assustando o rapaz.

– Desculpa.

Pedro finalmente riu.

E ela riu também. Tapou os próprios olhos e suspirou.

Olhando para o rosto de garoto, Alisson teve um flashback esquisito em que dava um beijo em Pedro. E lembrou-se, foi quando teve uns parafusos retirados de seu cérebro algumas semanas antes.

Preferiu não tocar naquele assunto.

– O que você acha sobre aquela mensagem do João? – Pedro perguntou.

Ele se referia à ligação esquisita em que João um tanto quanto animado dizia que tinha encontrado uma nova teoria.

– Ninguém consegue contato com ele. Não tem como concluir nada se o moleque desapareceu da face da terra.

Pedro gesticulou com a cabeça, Alisson percebeu que aquele teria sido um olhar muito sério do garoto – se pelo menos ele estivesse enxergando. Alisson sabia o que aquilo significava. Talvez João estivesse morto.

Se estivesse, Alisson sentiria muito. Dentre todas as pessoas que ela havia conhecido nos últimos dias, João era um de seus favoritos. Não por ser inteligente, muito menos por ser corajoso o suficiente para lutar de frente com a morte. E sim, pois lidava com aquilo tudo ainda com elegância. Sem se entregar.

E talvez, pois sua maneira de viver, e entender as coisas e se relacionar com as pessoas, a lembrava de alguém de seu passado.

– Alisson?

Uma enfermeira parecia procurar quem fosse Alisson.

Alisson adiantou-se:

– O que houve? Ela está bem?

Houve um único momento de pesar nos olhos daquela enfermeira e o coração de Alisson quase caiu.

– Ela está bem.

Alisson sorriu. Viva!

– Mas o bebê... eu sinto muito...

A enfermeira a encarou por alguns segundos antes de dizer alguma coisa sobre sentir muito e voltar para seu trabalho.

Alisson ficou ali, sem reação. Sentindo tudo cair em seu lugar novamente. Sentiu as próprias narinas tremendo, um sinal; um truque corporal genético – ela iria cair em prantos.

Ela olhou de volta para Pedro, que agora parecia saber exatamente onde ela estava.

Ele balançou a cabeça. Estendeu os braços para Alisson.

Alisson sentou-se ao lado do amigo e o abraçou. Então chorou. Chorou muito.

Chorou tudo o que não pode chorar nos últimos dias.

XXX

Já passava das cinco da tarde. Alisson estava quebrada e faminta. Pedro parecia sentir exatamente o mesmo.

Ambos haviam passado as últimas horas em silêncio. Incertos do que poderiam fazer em relação a tudo que havia acontecido. Keth tinha perdido o bebê.

A culpa remoía Alisson.

– A paciente pode receber vocês agora. – Uma enfermeira chamou da recepção. – Mas ela está muito debilitada.

Alisson assentiu. Ela grudou no braço de Pedro e ambos seguiram rumo ao corredor. Gelado.

A garota sentia seu coração batendo com força. A pulsação estava a mil. Incerta do que dizer para Keth. Sinto muito por ter contribuído com a morte de seu filho? Aquilo nunca iria colar.

O coração gritando, Pedro tropeçando – Alisson empurrou a porta do quarto.

E Keth dormia.

Alisson sentiu-se aliviada. E um pouco receosa, pois não receberia a bomba de acusações de Keth, que ela estava pronta para receber um segundo mais cedo.

– Ela está dormindo? – Pedro murmurou.

– Aham.

Ambos andaram em silêncio em direção a cama de Keth. A mulher dormia de lado. Parecia ter apanhado demais para uma só pessoa. Branca como o gelo.

Alisson sentiu um aperto no coração.

Alisson não sentia simpatia muito menos empatia por Keth. A namorada de Vini permanecera com uma interrogação constante nos pensamentos de Alisson desde o momento que retornara dos mortos dizendo que havia colocado outro cadáver em seu lugar. Nada daquela história fazia sentido. Se bem que nada daquele incidente todo do Blue River Adventure Park faria sentido na história da humanidade algum dia.

Mas aquilo tudo em relação à Keth, jamais justificaria o fato de Alisson ter empurrando-a da escada.

Por um instante, Alisson sentiu vontade de ferir a si mesma.

Onde estão as flechas quando eu mais preciso?

Alisson finalmente viu os olhos de Keth presos nos dela.

– Sai daqui. – A voz de Keth era um sussurro. Mas estava num tom muito mais frio do que Alisson esperaria.

– Keth eu...

– SAI DAQUI!

Keth sentou-se na cama. A força estava de volta. Alisson recuou – um pouco chocada.

– SAI DO MEU QUARTO SUA PIRANHA! VOCÊ MATOU MEU FILHO!

Alisson não sabia o que dizer.

– Keth, calma – Pedro começou.

– Você também! – Keth gritou. – SÓ ACONTECE PORCARIA QUANDO VOCÊ TÁ POR PERTO! SAI!

Alisson ficou ali, incerta, mais uma vez. Ela sabia que era culpa dela. Chorando de novo.

– EU SINTO MUITO!

Keth arrancou o abajur do criado mudo ao lado da cama e arremessou em Alisson. O objeto rachou na testa da garota, que recuou, ainda mais, e ainda, sabendo, que nem todos os objetos do mundo rachando em sua testa, tirariam a culpa de seus pensamentos.

– Vamos sair daqui – Pedro disse, agarrando o braço dela dessa vez. – Não vai adiantar.

Alisson virou-se para Pedro. Keth já tentava alcançar um copo de água para arremessar nos dois.

Alisson nunca a culparia.

Ambos saíram em direção a porta.

– ASSASSINOS! VOCÊS DOIS!

Já estavam a meio metro do lado de fora – mas ainda ouviam Keth choramingando.

– Vocês... Mataram meu filho... Meu bebê... Meu bebê... – o copo explodiu na parede do corredor atrás de ambos.

Alisson suspirou. Sem saber o que fazer. Pela milésima vez.

Decidiu apenas continuar andando. Desceram alguns andares. Pedro agarrado em seu braço. Ambos sem dizer nada.

Ela nunca iria esquecer o que Keth havia dito, aquilo era fato. Alisson era responsável. Alisson havia matado uma criança.

– Olha, - Pedro puxou assunto. – A culpa não é só sua. Tudo influenciou para que isso acontecesse. Pode até ser que ---

– Mas é esse pedacinho que me pertence que acaba comigo. E todo o resto. Ninguém merece perder o próprio filho...

– Eu sei disso e...

– Eaê Reapers -- aquela mesma voz: o sotaque puxado, o timbre pesado e eternamente embriagado pela própria essência da personalidade. – Me atualizem.

Alisson virou-se. Pedro também. Dentro de um dos quatros, Vini estava encarando. E acordado.

– Você acordou? – Alisson entrou saltitante no quarto. – Quando?

– Aparentemente hoje de tarde. - Ele estava com a mesma expressão de descaso que sempre tinha tido. Parecia ter envelhecido cinco anos em alguns meses. A barba gigante. Ela queria abraça-lo.

Com horror, ela notou que a única coisa que parecia se mexer em Vini, eram as expressões faciais.

– Alisson, você pode vir me buscar?

Pedro ainda estava do lado de fora do quarto.

Alisson sorriu repentinamente – aquele tipo de sorriso que se cobre os dentes mesmo sem ser necessário. E foi buscar Pedro.

– Qual foi a do tapa-olho? – Vini perguntou, casualmente apontando para as fachas ao redor de Pedro.

– O Felipe pirou. Queria matar todo mundo.

Vini pareceu chocado. Alisson suspirou. Ela notou que havia sangue em torno dos lábios dele.

– É tanta coisa. O que aconteceu na tua boca? Tá sangrando?

Ele suspirou.

– É tanta coisa. Cê tá bonita Alisson. Mas olha, - ele começou, ela jurou que poderia vê-lo coçando a barba - me diz uma coisa, é impressão minha ou eu vi a Keth naquele carro aquele dia?

– Sim. Você viu. Ela não morreu naquele acidente. E tá viva até hoje.

Os olhos de Vini brilharam por um segundo.

– E ONDE CARALHOS ELA ESTAVA?

– Não sabemos muito bem. – Pedro começou. - Você sabia que a Keth estava...

– Estava preocupada. – Alisson interrompeu Pedro. Ela achou que seria melhor poupar Vini daquela conversa ainda mais complicada. Pelo menos naquele instante.

– Mas então, cadê ela? – Alisson notou que Vini lançava olhares consecutivos para a porta.

– Ela... Ela veio aqui cedinho. Foi descansar.

Ele franziu o cenho. Pareceu ficar olhando pro teto por um bom tempo, até que Alisson começou a se sentir desconfortável.

Ela encarou os braços dele – agora inertes. Magros e quase sem cor. As tatuagens agora pareciam rabiscos em uma folha de papel amassada.

– E o João? – Vini voltou. - E o Sam? E pera? Que que aconteceu?

– João não sei. Sam morreu. Se o João estiver morto, restou só nós três.

– Como assim não sabe? Ou tá morto ou num tá.

– Ele não atende ligações. – Pedro disse. - Não consigo entrar em contato com a família.

– Putz.

E voltou o silêncio perturbador.

Alisson acomodou Pedro numa poltrona e sentou-se na poltrona ao lado de Vini. Ele teve que se esforçar para continuar olhando pra ela.

– Mesmo se não morrermos, descobri uma coisa.

– O quê?

– Não dá pra ganhar da morte.

– Oi? Vocês três ainda estão vivos...

– Eu tô tetraplégico. O Pedro tá aparentemente cego. De que adianta ganhar?

– Minha visão vai voltar – Pedro casualmente completa. – E caralho Vini, eu iria preferir viver, mesmo cego.

– Não é a mesma coisa.

– Claro que não é ---

– Galera, - Vini disse calmo. – Preciso de um favorzão.

– Que foi? – Alisson parecia disposta.

– Então. Deu merda no meu pulmão. Deu merda em tudo né, como vocês podem ver, mas aconteceu alguma coisa e eu não vou poder respirar sem a ajuda de aparelhos.

– Vini, olha –

– E... eu só preciso que um de vocês desligue a máquina de oxigênio. Eu não sirvo mais pra isso. Eu não dou conta.

O queixo de Alisson caiu.

– Como? – Pedro levantou da poltrona. – Você tá brincando né? E aqueles seus discursos motivacionais?

– Eu costumava fazer de tudo naquela época, quando podia me mover. Eu tinha esperanças. Na verdade tudo tava dando certo na minha vida novamente até alguém resolver me trazer de volta pra essa crônica da morte e me paralisar.

– Você não pode fazer isso... – Alisson disse, ainda afogada no choque.

Alisson não conseguia acreditar no rumo que as coisas estavam tomando aquele dia.

– Eu sei que não posso. Pois meu braço não se mexe e eu não alcanço o nivelador da máquina. Vocês alcançam. Por favor.

– Não vamos fazer isso, - Pedro diz. – Não acredito que você tá pedindo isso...

Vini vira os olhos. Ele está calmo.

– Pedro, não tem mais nada pra mim aqui. Vocês são as únicas pessoas que sabem o que nós passamos. A minha história preferida se voltou contra mim, e meu caro, se algo que você passou a vida conhecendo dá as costas pra você, então é hora de partir pra outra. Eu tô fora.

Pedro ficou em silêncio.

– Eu não vou fazer isso, - Alisson disse. – Eu nunca faria isso.

– Porque não é você que está aqui, no meu lugar, Ally.

Alisson recuou. Um pouco desconfortável com a maneira que Vini estava tratando aquilo tudo. O apelido...

– Vini, quando eu fui presa, eu também pensei nisso, eu –

– Eu estou realmente feliz que você não se matou naquela prisão, Alisson. Sério. Do fundo do coração. Mas eu já me decidi. Não quero passar a vida olhando pro teto. Não nasci pra isso. E eu sei que a Keth jamais faria isso por mim. Ela não faria isso. Um de vocês faria.

– Por que você acha que eu faria isso? – Alisson perguntou, as lágrimas caindo. – Por que eu?

– Porque você conhece todos os Vinicius que já existiram. – Ele continuou. - O de 8 anos, o de 15, e agora o de 21. E você sabe que nenhum deles gosta de jaulas... Droga, como eu queria poder gesticular...

Alisson fecha os olhos. Ela sente as lágrimas descendo pelas maçãs do rosto e desabando. Uma delas toca o braço de Vini. Ele não percebe.

E aquilo dói pra ela.

Vini começa a tossir repentinamente. Tossidos fortes e roucos. E ele subitamente luta para respirar – o nariz sugando com força, a boca aberta em guerra contra os próprios pulmões. Cuspindo mais sangue.

Ela recua.

– Enfermeira! Um médico!

Ela corre até a porta e grita pelo corredor. Pedro levanta-se da poltrona, tentando ser útil.

– Vini... Vini?

– Eu tô bem – ele tosse novamente. – Foi só uma crise. Agora a enfermeira vem e vai chutar vocês daqui. Desçam o nivelador. Por favor.

Alisson encara aquilo.

– Eu não posso fazer isso...

– Por favor!

– Já passou o horário das visitas, - uma enfermeira surgiu na porta do quarto.

– Ele tá tendo uma crise! – Alisson disse secando as lágrimas.

A enfermeira adiantou-se próxima a Vini. – Acabou o horário de visitas, - ela repetiu. – Saiam, por favor.

– Por favor! Não esqueça! – Vini continuou. A voz mais embargada que o normal, agora ele chorava também. – Lembra de que você vivia me dizendo que me devia uma por algo que nunca me contou? Então Alisson! Por favor! Por favor.

E Alisson já estava do lado de fora com Pedro. Ao deixar o quarto, Alisson saiu correndo pelo corredor, voltando a chorar.

XXX

Pedro ficou plantando na porta do quarto enquanto ouvia os passos apressados de Alisson se distanciando dele pelo longo corredor. Suspirou. Sozinho.

– Deixa que eu te ajudo, - a enfermeira surgiu de repente e puxou-o pelo braço. Ela começou a guiá-lo pelo corredor. – Tua companheira te abandonou?

Pedro estava atordoado com as emoções daquele dia. Aquilo era demais para qualquer um.

Começava a anoitecer. Pedro já ouvia os insetos zunindo nas árvores ao redor do hospital.

– Onde é que você precisa ir, rapaz?

Para onde a morte não vá, Pedro pensou. Para onde a morte não vá.

XXX

Alisson passou alguns minutos vagando pelo hospital. Por ora passando por corredores lotados, por ora encarando o silêncio em corredores gelados. Confrontada com as dezenas de improbabilidades e oportunidades esquisitas acontecidas naquele dia, Alisson resolveu voltar para a casa dos tios. Ela estava faminta e precisava descansar. Ela precisava tirar aquilo tudo da mente.

XXX

As luzes da cidade passavam em borrões. Alisson parecia já ter vivido aquele filme estúpido.

Ela esfrega os olhos e tateia até encontrar um pendrive no porta-luvas do carro. Conecta o dispositivo no aparelho de som e espera.

Oh hey, I've been travelin' on this road too long

Just tryin' to find my way back home

But the old me's dead and gone

Dead and gone

And oh hey, I've been travelin' on this road too long

Just tryin' to find my way back home

But the old me's dead and gone

Dead and Gone. Justin e T. I.

Alisson não esperava exatamente aquela música. Mas ela ouviu cada segundo, inutilmente relacionando as letras com as últimas semanas da sua vida. As letras do rap em si não fazia muito sentido, pelo menos se você evitasse pensar nas metáforas dos niggas sendo as vítimas, mas Alisson continuou ouvindo.

Deixando-se levar.

Uma buzina foi pressionada e Alisson pulou no assento. Desviou o carro de um caminhão de bebidas no último segundo. Olhou na lateral do veículo e leu “Beba com responsabilidade!”. O motorista colocava uma latinha na boca.

Alisson respirou fundo.

XXX

Alisson observou o relógio no pulso. 3 horas da manhã.

Ela esgueirou-se contra as paredes dos fundos do hospital.

Ela não conseguia dormir. Ela queria voltar lá dentro.

Queria pensar. Queria entender Vini.

Mas visitas não eram permitidas naquele horário.

Então Alisson estava invadindo. Tecnicamente ela não estava invadindo. Ela só tinha um palpite muito forte que a porta dos fundos estava aberta.

E estava certa. Ela rasgou o estacionamento e tomou as escadas. Em um fôlego só se viu na porta do quarto de Vini.

Ela abriu.

Vini aparentava estar dormindo. Alisson se aproximou, incerta do que dizer ou fazer. Ela deveria acordá-lo?

Ela sentou-se na poltrona do lado.

– Por que não me contou que Keth estava grávida? – Vini perguntou. Seco. Sem emoção.

Os pelos do braço de Alisson se ergueram.

– Como você...?

– A enfermeira. Gente boa ela. Meio durona, mas tudo bem.

Alisson suspirou.

– Você já tem muita coisa pra se preocupar.

– Em qual cama vou passar o resto da vida? Sim, tenho sim. Você devia ter me contado.

– Eu sinto muito. Por tudo.

– Por um instante, eu tive um filho. E eu só sei agora que ele está morto. Se algum dia alguém reerguer o Rest In Pieces, espero que seja o Rafael ou o Willian, quero que você escreva um post dizendo o quanto a morte é destruidora.

Alisson apenas ouviu.

Vini começou a chorar baixinho.

– É uma merda. Você não tem ideia.

Alisson fechou os olhos.

– E então, quando você vai fazer? – ele perguntou subitamente.

– Fazer o quê?

– O que eu te pedi, - ele respondeu calmamente. – Você vem aqui de madrugada, ué.

Alisson observou. Ela não tinha decidido colaborar com o suicídio do amigo. De fato, após pensar em tanta coisa, ela não sabia o que estava fazendo naquele quarto e naquele instante.

– Você não veio só para me ver deitado.

– E se tiver sido isso?

– Então eu aparentemente devo estar mais gato do que eu acreditava.

Ela riu.

– Alisson. Por favor. – Ele voltou a chorar. – Faça por mim.

Ela fechou os olhos. O pensamento destruindo seu interior. Suas células. Seu coração.

– Eu não consigo fazer isso.

– Claro que você consegue. Você é ninja. Você sabe como fazer as coisas funcionar. E lembra do tal favor que você me deve? Acredito que não existam outras maneiras de retribuir tal favor. Mesmo não tendo ideia do que você está falando.

Alisson engoliu em seco.

– Você é um herói.

– Oi? Hm, eu salvei um fulano aqui e meu braço ficou fodido. Salvei outro ali e meus braços, minhas pernas e provavelmente tudo embaixo do meu pescoço está fodido. De que adianta ser herói se você não pode aproveitar nem um pouquinho a porra da tua glória?

– Sabe aquela noite que você bateu na porta da minha casa? – ela prosseguiu. - Eu tinha doze anos. Éramos amigos. Você me chamou para dar uma volta e então disse que queria namorar comigo e que eu seria a melhor namorada do mundo?

Ele riu.

– Claro que lembro. Você de fato foi a melhor namorada do mundo até desaparecer da minha vida.

Alisson concordou. Vini gesticulou com a cabeça para que ela continuasse.

– Eu planejava me matar naquele fim de semana. Eu já estava com tudo pronto. Eu tinha as lâminas, eu tinha as injeções, eu tinha a corda. Eu estava decidida.

Vini a encarou. Muito sério.

– Você nunca me falou isso.

– Eu nunca achei que precisaria te contar isso. Eu era problemática. Você era um bom amigo, mas toda a situação estava me matando. O bullying. Meus pais. Eu estava começando a ficar anoréxica. A dislexia, no ápice, estava acabando com minha vida.

– Daughter. Pearl Jam.

– Daughter, - ela concorda. Naquele mesmo fim de semana, uma memória confusa, esquecida em algum ponto de 2006. Ambos haviam feito sua primeira tatuagem, escondidos dos pais. Ele tatuou um dos primeiros versos de Daughter, ela tatuou a bridge final. Duas crianças com dificuldades de aprender.

– E então, quando pareceu não haver luz no fim do túnel, você me mostrou que as coisas nunca são tão ruins. E que você não pode colocar uma almofada na cara dos teus problemas. Você tem que enfrentá-los.

– Eu disse tudo isso? – ele perguntou casualmente. – Tudo isso?

– Disse sim. Isso hoje em dia soaria clichê, mas com 12 anos, eu pirei naquilo. Você foi super original. Me ajudou muito.

– Alisson, - ele disse. Respirou fundo. - Obrigado por ter aparecido na minha vida. Nossos caminhos desandaram pra caramba, você passou por muita merda, mas fazer o quê né. Você merece viver sua vida. Livre. Me ajude e saia daqui. Se eu te fiz aquele favor, retribua. Por favor.

Ela começou a chorar novamente. Aquele choro doido. Descarrilado. Espalhado.

– Chega de chorar, mulher. Força.

– Você tem certeza?

– Eu tenho. Absoluta.

Alisson nunca soube exatamente como, mas suas mãos foram parar exatamente no nivelador de oxigênio. Ela desceu o botão até o fim. Suas mãos tremendo.

– Obrigado, - ele sorriu. – Muito obrigado.

Alisson observou aquela cena. Esquisita. Lenta. Não parecia tão errada naquele instante.

Ele arregalou os olhos e pareceu sugar o ar com força. Ela adiantou-se, sem saber se deveria ligar o oxigênio novamente, mas ele a repreendeu.

– Não. Tá tudo certo. Agora só tá vindo o gás do riso. – ele riu.

Alisson soluçava. Ele parecia sereno. A luz fosforescente do poste do lado de fora refletia na beira da cama dele.

Ele sorria. Ela ouvia o fluxo de respiração diminuindo. O beep da máquina de batimentos cardíacos começou a subir e ele apenas sussurrou: desligue o beep.

Ela o fez.

Aquele sorriso no rosto dele era o suficiente para mantê-la longe de religar os aparelhos. Era o que ele queria.

– Alisson, coloque seus braços embaixo das minhas costas, por favor?

– Oi? – Ela não entendeu o sentido da frase, ainda se afogando no choro. – Hã?

– Os braços. Embaixo. Minhas costas. Rápido. – Ele riu novamente.

Ela o fez. Incerta de como fazer. Ele pareceu não sentir os movimentos. Ela sentiu os ossos, a pele gelada abaixo do roupão do hospital.

Ela o encarou nos olhos. Ele olhou nos olhos dela e sorriu.

– It’s perfect. – ele sussurrou baixinho. - I’m in the arms of my first love.

Teen Wolf. Alisson riu e jurou que nunca mais conseguiria viver após aquela noite.

E ela não tinha ideia do que responder para ele.

– The person I’ll always love. – ela sussurrou.

E então ele fechou os olhos. E o indicador de batimentos cardíacos entrou naquele beep em linha reta.

Alisson o posicionou de volta na cama e recuou. Observou as tatuagens no braço do amigo e posicionou o próprio ali, por um instante, comparando. Ela então se inclinou e deu um último selinho na boca dele.

Ela então se virou e andou em direção a porta. Mesmo sabendo que nunca mais o veria, ela no fundo sabia que tinha feito a escolha certa.

A escolha dele.

XXX

Sete semanas depois.

O parque de diversões estava lotado. Luzes coloridas iam e vinham de diversos brinquedos espalhados pelo terreno de grama rasteira e pedregulhos. Era dia de grande movimentação e muitas pessoas se dispersavam por toda a extensão do local. Crianças corriam empolgadas, enquanto apontavam para as atrações do parque; suas mães correndo logo atrás, tentando pará-las. Casais caminhavam de mãos dadas entre os brinquedos, enquanto grupos de amigos aguardavam nas filas enormes, na esperança de irem na próxima remessa. Tudo estava como deveria ser.

Pedro havia tirado as ataduras há alguns dias e sentia-se muito bem, revigorado, mesmo que Vinicius tivesse ido embora junto dos outros. Sentia-se ainda mais satisfeito com o resultado positivo da cirurgia e o que ela estava proporcionando a ele naquela noite, que tinha tudo para ser inesquecível. Agora ele está em um lugar melhor, ele não agüentaria, ele sofreria, ele não tinha mais motivos para continuar tentando. Eu também não sei porquê ainda crio motivações...

E então, Alisson apareceu, segurando em seu ombro.

– Hey, onde você se meteu? – Ela perguntou, sorrindo.

– Achei que vocês iriam demorar um pouco mais naquele banheiro. Viram o tamanho da fila? – Pedro retrucou. – Resolvi dar uma volta.

Kethellen apareceu segurando um algodão doce. Ela tinha vindo a convite de Pedro e Alisson. Os dois viram o estado em que Keth se encontrava desde que perdera Vinicius. Ele era tudo na vida dela, assim como Kevin era. Vini era tudo o que tinha restado, depois da morte do filho. Nada mais fazia sentido, e Pedro e Alisson só estavam tentando ajudá-la a se recuperar do trauma de perder os amores de sua vida, seus bens mais preciosos. Keth só precisava de tempo, e isso ela teria de sobra. Bastante tempo de sobra.

Os três tiveram uma conversa franca depois de todos os acontecimentos. Concluíram que Vinicius se suicidou inesperadamente, mesmo sendo sua vez, a morte não esperava que fosse da maneira que foi. Vinicius dera sua vida porque não resistiria à “fenda” do mundo, ele seria engolido pelas trevas lentamente, e nunca mais mexer o corpo era apenas um adicional. Coisa que ele não suportaria.

– Faz tempo que eu não ponho um algodão-doce na boca. Isso aqui está maravilhoso! – Keth comentou, tirando mais um pedaço do doce e pondo na boca.

Alisson e Pedro se entreolharam e sorriram. Fariam um bem muito grande à amiga, levando-a até o parque.

– Quantos minutos até o Freak Show começar? – Pedro perguntou, olhando para o relógio.

– Uns cinco minutos. – Ally respondeu. – Vamos logo, quero assentos na primeira fileira, adoro esses espetáculos de esquisitices.

Uma música bastante familiar soava das várias caixas de som espalhadas pelo parque de diversões. Carousel, Melanie Martinez:

Come, come one come all
You must be this tall
To ride this ride, at the carnival
Oh come take my hand
And land through play land
So high, too high, at a carnival

And it's all fun and games
Till somebody falls in love
But you already bought a ticket
And there is no turning back now

A melodia dava um toque mais artístico à noite e representava bem aquele clima circense. A tenda onde o Freak Show se apresentaria estava mais a frente, e antes que pudessem chegar até lá, duas “aberrações” os surpreenderam. Uma delas, um anão, deu um buquê de flores à Kethellen. A garota sorriu agradecida. O outro era gigante, totalmente oposto ao seu companheiro. Pedro atreveu-se a tocar a canela dele, verificando se seriam pernas-de-pau. E para sua frustração, eram mesmo as pernas dele. Ficou surpreso.

Alisson riu ao seu lado. O gigante também deu um buquê de flores para a morena de maquiagem pesada e jaqueta de couro. Ela agradeceu e cheirou-as, tinham um aroma muito agradável.

Os dois circenses saíram.

– Será que dá tempo de ganhar um presente pra vocês na barraca de tiro? – Pedro indagou.

– Se você for bom o bastante de mira, sim. – Ally retrucou.

– Ah, claro.

Os três se aproximaram da barraca de tiro ao alvo e um grupo de ruivas passava por ali, quando uma delas esbarrou em Pedro. O universitário olhou-a de soslaio e pensou ter visto Victorya. Era coisa de sua cabeça.

– Você está bem? – Keth perguntou. Já tinha terminado seu algodão doce, então jogou seu palito no cesto de lixo ao lado da barraca.

– Então, pronto pra ganhar um prêmio, espertão? – Alisson pegou uma das armas sobre a bancada.

– Está me desafiando, Ally?

– E por que não? – Riu com um tom misto de desafio e deboche.

Pedro estava pronto para atirar, quando derrubou uma caixinha de pregos que estava sobre o balcão. Os objetos se espalharam pela grama. Errou o tiro.

Alisson foi mais certeira e ganhou o prêmio.

– Pode escolher, Keth.

– É sério?

– É, pode escolher qualquer um. – Respondeu convicta de que a outra garota iria gostar.

– Bom, vou ficar com aquele cachorrinho em cima da bicicleta! – Disse apontando. O proprietário da barraca foi até lá e trouxe a pelúcia para ela. – Obrigada.

– Não foi dessa vez, Peeh. Mas não fica bravinho, ta? – Alisson brincou.

– Tsc, tsc. – Pedro arfou e riu logo em seguida, demonstrando sua resignação.

Acima deles a luz da lua os iluminava. Enquanto iam na direção da tenda do Freak Show, um casal de namorados passou por eles. A garota, que vestia uma blusa da saga The Hunger Games, Catching Fire, tropeçou e xingou o obstáculo com diversos palavrões.

This horse is too slow
We're always this close
Almost, almost
We're a freak show
Ride right when I'm here
It's like you disappear
Where'd you go
Mr. Houdini you're a freak show

And it's all fun and games
Till somebody falls in love
But you already bought a ticket
And there is no turning back now

Pedro parou. Seu coração passou a bater mais rápido, e ele não sabia o porquê. De repente dois panfletos voaram em sua direção. Ele desviou do primeiro, que bateu no peito de Alisson. Segurou o segundo e o observou. Era um anuncio do Motel California.

Puxar o panfleto de Alisson para verificá-lo foi instintivo. Quando o conferiu teve certeza de que havia alguma coisa errada. Era outro anúncio, desta vez sobre uma companhia de seguros de vida, onde estava escrita a frase “A vida é uma verdadeira CORRIDA contra o tempo”, onde a palavra destacada era mostrada com uma cor diferente das demais, claramente dada a ela uma ênfase. Um atleta estampava o panfleto. Tudo ao redor de Pedro pareceu se distanciar. Sua mente girou.

A música! “Mas você já comprou um bilhete, e não há como voltar atrás agora.”

A ruiva! Vic!

A caixinha de pregos!

O prêmio! Uma pelúcia sobre uma bicicleta. Emerson!

A blusa da garota, Catching Fire! João Victor!

O anuncio do Motel California! Lucas e Breno!

A companhia de seguros de vida! A palavra corrida, o atleta... MV!

O universitário não soube o que dizer, apenas sentiu um forte aperto no peito e se ajoelhou. Alisson e Keth correram para tentar ajudá-lo.

– Peeh, o que foi? – Keth perguntou, segurando um dos braços dele.

– Tá se sentindo mal? – Alisson também estava visivelmente preocupada.

Não houve tempo para as respostas. Houve somente um clarão vindo do lado esquerdo de onde o trio estava. A bola de fogo incandescente lambeu os ferros e os trilhos da montanha russa, jorrando seus pedaços contra quem estivesse por perto. Vários deles passaram por Kethellen, sem atingi-la. Pedro só pode concluir que ela estava fora da lista, ela tinha conseguido! Ele não soube explicar no momento como, mas sabia que Kevin tinha salvado-a. Ela sobreviveu à descarga elétrica, de certo modo ressuscitou, ganhou uma nova vida por Kevin já estar em sua barriga no momento do acidente.

Keth tinha alcançado a redenção.

Os outros detritos passaram longe de Alisson. A morena de jaqueta puxou Keth para longe dali. Pedro já estava erguendo-se da grama para acompanhar as duas, quando os carrinhos da montanha-russa se descarrilaram. A vez dela havia chegado, e ele poderia fugir quantas vezes fosse preciso, mas a morte é uma vadia mimada e egoísta, ela iria encontrá-lo onde quer que ele estivesse e arrastá-lo-ia para o inferno da maneira mais impiedosa que encontrasse.

O carrinho se chocou contra o corpo dele numa fração de segundos. Os ossos do crânio, ombro e tórax foram os primeiros a serem esmagados. Pessoas gritavam ao redor. A cartilagem, tecidos e pele foram todos permutados ao sangue e às fraturas expostas. Por último, o metal pesado dos carrinhos esmagou o universitário da cintura para baixo, transformando tudo aquilo em uma massa disforme, retorcida sobre a grama. O sangue lavava os restos do corpo, enquanto o pânico se alastrava pelas proximidades. Pedro pareceu se mexer-

Piscou algumas vezes, antes de uma falta de ar e uma dor invadirem seu peito. Era outra premonição, dessa vez uma muito próxima. Eles estavam caminhando na direção da tenda, que ficava ao lado da montanha-russa. Soube exatamente o que tinha que fazer. Com um nó na garganta e um aperto no coração ele se aproximou de Alisson e sussurrou em seu ouvido:

– Cuide dela. Cuide da Keth, por favor. É meu último pedido. Ela precisa muito de alguém, e esse alguém pode ser você. Não deixe-a abraçar a depressão, ela não merece isso. – As lágrimas nos olhos dele desciam e ele ficou de costas para a garota que perdera o filho. Ela não poderia ver suas lágrimas.

– Ma-mas, Peeh... Do que você está falando?

– Está acontecendo, Ally. A morte está vindo me buscar e eu não posso mais lutar. Chega de tentar mudar meu destino, ele já está traçado desde o dia do parque aquático e não tive a mesma sorte que a Keth... Ela sim merece mais do que eu. – Então o rapaz se aproximou ainda mais do rosto de Alisson e lhe deu um beijo terno e breve nos lábios. – Ela ficará bem, está salva. A morte não virá atrás dela.

Alisson engoliu em seco, entendendo a situação. Era a decisão dele, e não tinha o direito de intrometer-se. Deixou que ele fosse. Keth estava dispersa, olhando para sua pelúcia.

Pedro caminhou com cautela até o local de sua premonição e esperou que tudo o que vira acontecesse. Segundos depois, o rangido foi audível e ele abriu bem os olhos, fixando-os em Alisson e Keth. Queria que as duas fossem a última coisa que ele visse antes de morrer. Não durou mais que três segundos e ele sentiu o impacto contra seu corpo. Os detritos voando, a bola de fogo passou por ele também. Os carrinhos da montanha-russa rolaram pela lama e ele viu um jato de sangue, mas continuava inteiro, como se nada tivesse acontecido.

Avistou Alisson e Keth correndo na sua direção, gritando. Mas as duas não olhavam para ele, olhavam para a grama, para baixo dos carrinhos. O rapaz se desesperou e desatou a chorar quando viu a massa retorcida de pele, ossos e vísceras que provavelmente era seu corpo. As duas garotas se ajoelharam perto da massa disforme. Keth era amparada por Alisson.

Pedro levou um susto quando a terra abaixo de si começou a rachar e ceder, como um redemoinho de areia. A grama foi caindo em algum tipo de brecha e estava sendo sugada. Num rompante ele viu braços se erguerem do buraco e agarrarem seus braços e pernas. Logo reconheceu as faces que lhe encaravam com os olhos arregalados.

Guibson, Breno, Lucas, João Victor, Victorya, Emerson, MV, Sam, Felipe, Jo, Mylla, Marlon e Vinicius. Por poucos segundos pode ouvir um choro de uma criança e deduziu que Kevin também estava ali de alguma forma. Os braços foram puxando Pedro para o buraco escuro, a temperatura e a angústia só aumentavam. Ele gritou o mais alto que pode, mas todos estavam ocupados demais observando seus restos mortais embaixo dos metais vermelhos dos carrinhos e trilhos.

– NÃAAAAAAAAO! – Gritou de novo e foi sufocado pela terra.

Todos estavam indo para o mesmo lugar...

Pedro estava sendo arrastado para o inferno, onde padeceria eternamente ao lado dos outros. A última coisa que viu foi a sombra se erguer da grama e parar de frente para ele, enquanto a terra entrava em sua via respiratória e seu corpo era submerso no buraco. Era uma visão aterradora, assustadora e passava todo o horror para dentro do seu coração. Ele teve vontade de chorar, mas gritar foi a única opção.

A morte riu dele e fez questão de fechar o buraco, depois de seu corpo ser inteiramente mergulhado nas trevas.

XXX

O sol brilhava e aquilo era perfeito.

Fazia alguns meses que Pedro tinha morrido. Fazia alguns meses que Keth havia entendido o esquema.

Doze meses.

Keth ouvia o rangido dos balanços, mas aquilo não a incomodava. Crianças riam por todos os cantos. Aquele conjunto de informações a fazia sentir-se viva. A encarar a realidade, e os perigos que tal realidade oferece para as pessoas. Os pássaros assobiavam algo que parecia uma cantiga de ninar.

– Calma que a tia Ally já deve estar chegando.

Keth estava feliz. Kevin estava em seus braços. Vincent, o progenitor de Kevin, estava ao seu lado. Ela o amava também.

Um ano mais cedo, Keth duvidava que pudesse seguir com sua vida novamente. Ela duvidava que seria capaz de superar toda a merda que havia passado.

Mas a vida havia lhe ensinado coisas.

– Keth, hora de ir.

XXX

Cabelos escuros balançando no vento, Alisson observava Keth através das grades, no lado para visitantes do hospício.

Alisson sabia que hospício não era exatamente a palavra correta. Mas não conseguia evitar.

Com os dedos entrelaçados nas grades, Alisson não deixava de se surpreender com as sensações esquisitas que tinha quando adentrava aquele local. Como se em cada canto, um profundo abismo estivesse a esperando. Pronto para pegá-la pela mão e levá-la para o inferno. Paisagens secas rodeavam a região do hospital psiquiátrico, e aquilo tudo era um apenas um bônus para contribuir com os bad feelings que aquele local ocasionava em seus visitantes.

Alisson nunca imaginaria que o caso de Keth iria terminar de uma maneira tão extrema.

A jovem mulher, outrora bela e curvilínea, agora jazia acabada, os olhos fundos e uma expressão de tristeza mista a um contentamento. Estava carregando uma boneca de colo, no qual carinhosamente havia apelidado de Kevin.

Alisson sentia-se responsável por Keth. E ela não achava que aquilo era bom ou ruim, para Alisson, cuidar de Keth se tornou uma rotina em sua vida.

Era humano.

Tão subitamente, Alisson se viu sendo encarada face a face por Keth. Então a garota disse, num sorriso:

– A Tia Ally chegou.

XXX

Encarando o pôr-do-sol alaranjado e turvo de um pleno outono, sentada no chão e encostada contra a roda do Jeep, Alisson deixou-se levar pela visão do horizonte.

Durante as visitas à Keth, Alisson acabou descobrindo um atalho que levava a uma das serras da cidade. A vista era incrível.

Além do pôr-do-sol, das florestas e dos rios ao horizonte, Alisson também podia ver a cidade. Ela podia ver tudo. Sem medo do abismo. Alisson estava livre outra vez.

Alisson tinha sempre as mesmas sensações esquisitas quando visitava Keth. Uma sensação de medo pelo desconhecido, e também um medo do esquecimento. O abismo ajudava-a a digerir tudo aquilo.

Ela ouviu Bill, o gato de Vini, agora dela, miando angustiado no interior do carro. Ela sorriu. Tinha medo de soltar o gato naquele pedacinho de terra e ver o coitado se jogar no abismo. Alisson já tinha perdido tanta coisa...

Pensando em percas, lembrou-se do que havia escrito um dia antes, para estabelecer uma nova fase em sua vida.

Ela havia redigido aquelas palavras em pouco tempo, principalmente pois teve meses para imaginar um discurso que repetiria para sempre no interior de seus pensamentos. Agora, ela lembrava de cor todas as palavras. Podia até dizê-las em voz alta.

“Meu nome é Alisson Silver. Passei dois anos do fim da minha juventude presa em uma penitenciária localizada no Norte da Califórnia, e finalmente livre, decidi voltar ao Brasil.

Talvez tenha sido uma das piores decisões da minha vida. E também, uma das mais corretas.

Descobri que meu ex-namorado, sua esposa na época e seus amigos estavam sendo perseguidos por uma força sobrenatural. Eles eram sobreviventes de um desastre em um parque aquático, até que uma maldição originária da Grécia Antiga eclodiu.

Praticamente todos os sobreviventes do desastre morreram em acidentes esquisitos sob circunstâncias extremas ao longo dos nove meses seguintes ao acidente no parque.

Por meio de uma boa pesquisa, descobri que as quatorze vítimas eram mensageiros, de acordo com o conto grego. Mensageiros só podem ser assassinados por um ceifeiro mensageiro - o décimo oitavo cavaleiro da morte, o que costuma alucinar, alienar, trair, enganar, destruir e omitir informações. As consequências para as vítimas, cujos nomes são assinados na lista do mensageiro, costumam envolver psicose repentina, pesadelos vívidos, mudanças de comportamento (bad behavior), atos suicidas, noções de grandeza, isolamento, desconfiança além do normal e visões turvas. Até sua efetiva conclusão, a morte sangrenta.

Vi meu primeiro amor desaparecendo. Os lábios dele ainda estavam quentinhos quando eu os toquei pela última vez. Eu nunca fui ao enterro dele, então não cheguei a vê-lo morto. Por isso, ele continua apenas ausente para mim. Um espaço vazio. Um espectro cuja metade está borrada. Então até hoje me pego fantasiando que vou dar um esbarrão nele em algum lugar, como num metrô ou num barzinho, e ele vai ficar me encarando se perguntando se deveria me cumprimentar. Então irá me abraçar como um amante perdido no passado e dizer: “não chore, estamos juntos nessa, Ally.”

Meu nome é Alisson Silver. E eu sei que um dia, todos nós estaremos juntos.

Juntos.”


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado da fanfic. Agradeço a todos por terem acompanhado-a até aqui. Recomendem e não esqueçam que essa não será a última. Aguardem mais informações sobre "Premonição Chronicles 2".
Até breve.



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