Eu abri os olhos, esfregando-os um pouco para que se acostumassem com a luz do ambiente. Eu me sentia um pouco estranha, embora não soubesse explicar o que estava errado. Olhei para os meus novos amigos e quase dei um pulo ao notar que eles tinham se convertido em uma versão level up do Gasparzinho. Porém, isso não era o mais estranho. O estranho foi o fato de que o meu pulo foi impossibilitado uma vez que eu não tinha pés porque eu também tinha virado um fantasma. Todos éramos sombras pálidas e flutuantes pairando no vazio.

—Aqui vamos nós — disse Ren visivelmente animado. Nenhum dos outros parecia estar muito surpreso também, então eu acreditei que não era a primeira vez que eles passavam por esta experiência.

Foi então que eu percebi que William não estava em lugar nenhum. Olhei em volta procurando-o inutilmente, mas tudo que eu via era o modo como as coisas pareciam tremer. Como se o ambiente fosse uma tela de TV com a imagem cheia de linhas.

Esfreguei meus olhos mais uma vez, acreditando que talvez fossem eles que estivessem ruins, mas aquela sensação ficou pior e tudo ficou convertido num borrão escuro e tudo que eu podia ver eram os outros fantasmas.

—O que está acontecendo? — indaguei alarmada.

Milan andou, digo voou até mim.

—Shh não pense, apenas se concentre agora. Não falta muito.

Falta muito para que? Eu tive vontade de perguntar, mas ele se afastou deixando-me ali, aturdida. Os outros também estavam calados. O que viria a seguir? Uma parte de mim queria saber, a outra não.

Um barulho chamou minha atenção. Um som de água corrente que começou leve e se intensificou até quase ensurdecer e apesar disso, eu não via água em lugar nenhum.

—Este é Numai, o lago da reencarnação. Ele é a ponte entre os Rokai e os Hamish. Para encontrar o seu animal de poder terão que mergulhar em suas águas — disse William da escuridão.

Quando ele disse isso, uma luz nos atingiu revelando um lago enorme muito próximo de nós. Aos poucos outras coisas foram surgindo como mágica e logo, nos estávamos todos cercados por uma floresta. Eu também voltei ao normal assim como os outros. A única coisa diferente era o William. Ele não estava mais com as mesmas roupas de antes: usava uma enorme calça de linho com adornos dourados como ouro, o peito nu e dois braceletes de ouro nos braços.

Cassandra sussurrou baixinho.

—Alguém me mate agora.

Ren revirou os olhos e Dayla riu. Sim, o William era um gato e isso era um fato. Mas por alguma razão naquele momento ele era muito mais que um garoto bonito: ele parecia um rei, algo poderoso. Seus olhos estavam muito mais brilhantes que o comum, como se estivessem em chamas.

—Vão. Eu posso guia-los daqui, mas o resto é com vocês.

Todos começaram a caminhar em direção ao lago. Eu hesitei por alguns instantes.

—E eu faço o que mesmo? — perguntei confusa. Era pra entrar na água e depois?

Ele caminhou na minha direção e eu pude sentir o calor emanado de seu corpo.

—O lago vai testar você. Se estiver pronta, encontrará o que procura.

Esse era o problema, pensei. Todo mundo sabia muito bem o que estava procurando. Eu não. Suspirando eu caminhei em direção ao lago.

A temperatura da água estava agradável. Ren moveu as mãos jogando água no rosto de Milan que revidou. Cassandra reclamou.

—Parem vocês dois!

—Cassie tem razão — Dayla continuou — eu já estou cansada de perder nisso aqui. Dessa vez, vamos voltar com nossos Hamish, custe o que custar.

Todos acenaram positivamente.

—E agora? — eu disse.

Milan me deu um sorriso antes de responder.

—Agora? Você mergulha.

Todos tomaram fôlego e sumiram nas águas turvas.

—E espero não morrer — eu disse para o nada —ainda nem namorei um cara.

E com esse último pensamento eu mergulhei.

Uma vez submersa eu percebi duas coisas: a primeira era que água não era tão turva como eu pensava, aliás, era muito pura, cristalina. A segunda era que eu estava totalmente sozinha. Uma onda de medo me atingiu e, impulsionada por esse medo eu nadei para a superfície tão rápido quanto era possível. Mas, ao contrário do que eu pensava, não havia mais um lago ou floresta. Eu estava numa piscina, o sol forte brilhando enquanto várias crianças brincavam ao meu redor.

—Kira! Kira!

Surpresa, vi minha avó Melissa de pé, na borda da piscina, as mãos estendidas na minha direção.

—Vovó! — eu gritei de volta. Não era possível, minha avó estava aqui, estava viva!

Nadei em sua direção e aceitei a mão que me era oferecida. De repente eu não tinha mais dezesseis anos, eu era novamente aquela menininha de cinco anos que passava as férias com a família no Havaí.

—Você tem que parar um pouco de brincar Kira.

Eu fiz uma careta e ela riu.

—O tempo de brincadeira se foi, minha menina. É melhor começar a crescer ou o a fera vai devorar você.

Nesse exato momento todas as pessoas começaram a se transformar em ursos enormes. Dei um salto para trás, mas meus pés estavam presos por correntes enormes. Uma jaula me cercou completamente e então eu estava completamente presa, enquanto os ursos enfiavam suas garras por entre as barras para me alcançar. Eu sentia uma dor lancinante toda vez que eles alcançavam meus braços e pernas. O calor do Sol parecia queimar minhas feridas recém-abertas. Procurei minha avó para pedir ajuda, mas ela apenas ficou em pé a distância me fitando com desprezo.

—Vovó! – eu chamei, sem obter resposta. Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Eu estava sozinha, encurralada e presa.

O Sol brilhou ainda mais intensamente por um instante, e depois uma sombra enorme quase o cobriu. Algo se movimentava lá em cima em círculos, uma ave enorme que desceu sobre os ursos que assustados correram desajeitados.

Então a ave enorme fitou a jaula e ela começou a derreter até não ser nada mais que um amontoado escuro. Sem forças eu caí enquanto a ave levantava voo.