Questão de Tempo escrita por Sailor Marco


Capítulo 5
Dormindo com o inimigo


Notas iniciais do capítulo

É. o título se refere a uma coisa que acontece logo no começo... mas era perfeito, então não podia desperdiçar hehehe



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Quando Victor acordou, percebeu que seu travesseiro estava um pouco diferente.

Não pode ser.

Mas era.

Ele abriu os olhos. Estava deitado no peito de Daniel, com um braço ao redor de seu corpo e a perna em cima dele. Em algum momento, durante a noite, seu cobertor havia caído no chão e agora a única coisa que parecia aquecer seu corpo era o braço de Daniel, que, por alguma razão, estava abraçando-o, puxando-o para mais perdo de si. MERDA.

Os olhos de Victor agora estavam bem abertos, para alguém que havia acabado de acordar, arregalados. Porém, ele não conseguia se mexer. Ele não podia se mexer. Porque não podia se mexer?

Daniel não podia acordar. Era isso. Daniel não podia vê-lo daquele jeito.

Mas parte dele também não queria que Daniel acordasse, porque...

O fato é que eles não podiam se mexer, mas Daniel não sabia disso.

A mente de Victor foi invadida por uma enxurrada de “não”s desesperados quando percebeu a movimentação no lençol, com a cara grudada na camiseta do outro. E Dani começou a se mexer, obrigando-o a trocar de posição também. Agora, ou ele abaixava a cabeça e ficava com a cara grudada no estômago de Dani, o que não era uma opção, ou virava de costas, o que também não era opção, pois assim eles ficariam de conchinha. E não. Simplesmente não.

O que restou para ele foi levantar o rosto e ficar cara a cara com Dani.

Que abriu os olhos logo em seguida. Eles se arregalaram na hora.

– Oi - Victor sorriu, como se aquilo não fosse nada de mais. - Bom dia.

– Mas que porra? - Dani quase gritou, com a voz rouca e afastou-se o máximo que pôde, colando as costas na parede onde a cama estava apoiada.

– Não reclama. Melhor do que tava antes.

– E como tava antes?

Victor não queria responder essa pergunta. Dani ficou o encarando perplexo, com a boca aberta.

– Ai, meu Deus. - disse ele.

– Foi sem querer. Nós estávamos dormindo.

– Sim, eu sei. - Dani suspirou. - Mas que a Ellen não fique sabendo disso.

Mas seus rostos estavam muito perto um do outro. Vocês normalmente dormem assim?, a voz da menininha ecoou em sua mente. Não! ele respondeu ao seu próprio pensamento, sem perceber, e surpreendeu Victor com uma careta, que ergueu as sobrancelhas.

Os dois ficaram se encarando por alguns momentos, até que Daniel desviou o olhar, com uma carranca.

– Não estávamos de conchinha né?

– Não, cara.

– Ah - seu rosto ficou um pouco vermelho - Ok. Vamos levantar?

– Com certeza.

Depois daquilo a semana correu normalmente no acampamento. Daniel e Victor continuaram a dividir a cama, sem coragem para espantar a aranha detrás da cama, e só acordaram abraçados mais duas vezes. O que, a partir de então, foi considerado como uma vitória para Victor, que percebeu que sua dificuldade em não virar e abraçar Daniel durante a noite era muito grande. Daniel também não se sentia tão incomodado assim, no fundo. Mas o outro não precisava saber disso…

Uma semana, e ainda haviam muitas coisas que ele não precisava saber.

Uma semana, e a barreira existente entre os dois, que Dani desejava que diminuísse cada vez mais, ainda não havia diminuído o suficiente.

Daniel ainda estava tentando decifrar quem Victor havia se tornado. Ele estava certo de que era a única pessoa no mundo que não conseguia entender. Todos em sua volta pareciam ter suas próprias opiniões de como Victor era, mas Dani simplesmente não entendia. Victor se envergonhava com frequência, mas não era tímido. Ele gritava bastante, e perguntava tantas coisas estúpidas, principalmente quando estava confuso. Era quase irritante, para ser sincero. Ele era arisco, mas de alguma forma simpático também. Ele dizia coisas para as crianças, que se qualquer outra pessoa as houvesse dito, teria resultado em lágrimas. Mas quando era Victor que as dizia, por alguma razão, as crianças aceitavam suas palavras e Dani tinha certeza de que viriam a ser pessoas melhores por isso.

Victor também era bem capaz, fisicamente falando, como Dani pudera perceber nas tardes de escalada ou caminhada, assistindo seus músculos dos braços e das pernas em desenvolvimento retraindo e relaxando. Mas ele parecia preferir realmente as atividades complicadas. Aquelas que requeriam não só mãos ou músculos no processo, mas dedos impacientes para separar e juntar coisas, observar e coletar.

Daniel não queria admitir, mas sentiu uma sensação estranha no estômago durante o Dia da Parafernália, quando sentou lá e assistiu os olhos de Victor se iluminarem com animação, enquanto ele desmontava um relógio peça por peça e o construía novamente com a ajuda das crianças. Elas pareceram influenciadas por seu entusiasmo e ficaram completamente caladas enquanto ele explicava para que servia cada engrenagem, que Dani não chegou exatamente a saber, sendo que ficara encarando sua boca mexendo-se conforme as palavras.

Eles e as crianças praticaram esgrima, dançaram, atuaram, cozinharam, pintaram, e toda vez Dani encontrava seus olhos encarando diretamente na direção de Victor. Pois ele esperava que o garoto tropeçasse ou fizesse algo estúpido, ele se dizia. Mas, ocasionalmente, ele olhava e percebia Victor o encarando também. Ou talvez, não encarando. Eles apenas encontravam olhares por acidente. Mas ainda assim, Dani pensou, ele mantinha aquela expressão calma, como se também quisesse decifrar quem o Daniel era.

*

Naquela tarde as Torradas teriam o campo de arco e flecha total e exclusivo para eles. Daniel estava bem animado, uma vez que ele era relativamente bom atirando flechas. Ele não fazia ideia se Victor era bom também, mas esperava que não, pois assim ele poderia rir um pouco de sua cara, sem se importar com o quão imaturo aquilo soava. Ele só queria que Victor se ferrasse um pouco por ser tão -- tão confuso.

Uma gota de suor escorreu pela testa de Daniel enquanto eles faziam seu caminho até a clareira, onde uma duzia de alvos, arcos e flechas os esperavam. Estava particularmente quente naquele dia, apesar de estarem no meio de julho e ser inverno.

Victor também sofria as consequências do clima, empurrando sua franja curta para o lado com um grunhido de raiva, toda vez que ela resolvia grudar em sua testa.

E, como obviamente o acampamento não permitiria que dois adolescentes ficassem sozinhos com dezenas de crianças e armas em potencial, quando chegaram à clareira havia uma mulher adulta esperando por eles. Uma profissional, para ser mais preciso. Dani já a conhecia de temporadas anteriores. Seu nome era Maria, e supervisionava os treinos de arco e flecha. Essa manja.

– Alto lá - disse ela, erguendo a mão no ar com um sorriso enorme, fingindo ser uma pirata ou algo do tipo. - Quem são vocês, anões?

Algumas crianças riram, e uma delas choramingou:

– Não somos anões! - e bateu o pé no chão.

Victor sorriu.

– Somos as Torradas, grande e magnífica senhora. - Daniel curvou-se em uma reverência.

– Hmm… Torradas… - Ela pôs a mão no queixo, pensativa. - Meu dragão gosta de torradas. Será que ele vai jantar bem hoje?

As Torradas explodiram em vários “não”s estridentes e algumas risadas em uma cena totalmente divertida de se assistir. Algumas crianças pareciam realmente em pânico, como se aquilo fosse real. Daniel se pegou rindo, e voltou seu olhar para Maria, quando ela continuou:

– Entãaaaaao… - as crianças se calaram, atentas, com olhos arregalados em expectativa - Se não quiserem virar comida de dragão, é melhor eu ensinar esses traseiros a atirar umas flechas!

Victor suprimiu o instinto de cobrir os ouvidos quando as Torradas berraram e urraram em comemoração. E lá vamos nós.

*

Eles meio que chegaram em um acordo em menos de cinco palavras: Daniel ficaria ajudando Maria a preparar as crianças com o equipamento e Victor iria recolher as flechas, uma vez que estava com medo de admitir que não tinha a menor ideia de como segurar um arco. E assim funcionou.

Havia cinco alvos, o que significava cinco crianças por vez. Por um milagre, eles conseguiram organizar as crianças em cinco filas indianas, cada uma alinhada com um alvo, e equiparam as primeiras de cada fileira com as proteções de braço e três flechas cada. Aproveitando que as crianças já estavam com os arcos em mãos, Maria ensinou as regras de segurança e como segurar um arco de maneira correta usando Ellen como exemplo, levantando seus cotovelos, e puxando a mão da menina até a distância recomendada para um tiro firme.

Pega de surpresa, Ellen soltou a corda com os olhos arregalados e errou o alvo de um jeito magnífico, fazendo um sorriso maldoso e satisfeito escapar de Daniel.

Victor percebeu e deu um soco em suas costelas.

Olhar aquelas crianças mirando e atirando com tanta confiança o fez se sentir meio inútil e, de certo, estúpido. Victor sabia que era horrível naquilo, e até as crianças que atiravam a quilômetros do alvo, e o faziam correr igual um condenado para buscar as flechas, eram melhores do que ele no que quer que fosse preciso para segurar um arco. Mas, para piorar tudo, havia essa menininha. Essa droga de menininha de meio metro de altura e olhos enormes que acertava TODAS as flechas o estava deixando realmente indignado. Ele estava começando a ficar realmente bravo, vendo que uma garotinha tão miúda e de aparência tão frágil conseguia ser incrivelmente boa em algo que ele, como digno projeto de punk rebelde bad boy urban conceitual, deveria ser bom.

Quando a menina pegou no arco pela terceira vez, e Victor foi buscar as flechas (e encontrou as dela em uma pontuação relativamente alta do alvo) pela terceira vez, uma necessidade de conseguir fazer igual invadiu o seu interior competitivo, e, em um acordo silencioso com ele mesmo, Victor decidiu que iria aprender a fazer aquilo quando Daniel voltasse com as crianças, e ninguém estivesse olhando.

E assim aconteceu. Maria anunciou que havia chegado o fim do treino de seus “pequenos anões-elfos”, e se despediu de um por um com um beijo na testa. Daniel achava essa mulher sensacional, e se assustou quando Victor pediu para ele ir na frente com as crianças, pois precisava falar com Maria.

Por que ele precisaria falar com Maria?

Mas quando viu, Victor já estava de costas, andando na direção da mulher que estava organizando os arcos.

Daniel deu de ombros e Victor só se atreveu a falar alguma coisa quando o viu sumir no horizonte com as torradas. Maria estava de costas para ele, por isso não sabia que havia ficado por ali, ao contrário dos outros. Deu um pequeno pulo quando ouviu Victor limpar a garganta para anunciar sua presença.

– Ah, mas que susto, Victor - riu ela, apoiando a mão no peito.

Victor abriu um sorriso tímido.

–Por que a repentina decisão de ficar por aqui? - ela perguntou de um jeito simpático, disfarçando a curiosidade com humor.

–É que… hm… Tipo… - Victor começou a coçar a nuca - Eu queria saber se…

– Quer ficar para praticar mais um pouco?

– É… mas…

– Mas você é um desastre?

– Sim, e…

– … Gostaria de algumas dicas?

Victor suspirou, vencido com um sorriso. Ela era boa mesmo.

– É. - Disse por fim. Estava começando a ver porquê Daniel gostava tanto de Maria.

– Espere só eu levar estes arcos lá para o armazém, ok?

– Claro.

– Pegue este aqui - Maria entregou um dos muitos arcos que carregava para ele - é bom para principiantes.

– Não quer ajuda para levar esses aí?

– Fique tranquilo, gatão. - ela piscou para ele - Sabe onde as flechas estão, certo? - ela riu.

Victor sentiu seu rosto esquentar sem saber o porquê. Não estava acostumado a receber muitos elogios, muito menos acostumado a ter alguém que mal conhecia brincando com ele desse jeito. Maria provavelmente também estava farta de vê-lo recolher e guardar flechas. E lá se ia ela para o armazém.

Victor chacoalhou a cabeça, focando-se no arco em suas mãos.

Ele pegou três flechas. Pois uma era pouco, duas era muito estranho, e três era o número que haviam dado para as crianças. Então devia servir.

Os alvos seriam guardados por último, então, ele pensou, não deveria se preocupar caso acabasse se prolongando muito em seu treinamento. “Treinamento”. Ele riu consigo mesmo. Nem as dicas que Maria havia dado no começo da atividade o ajudaram em alguma coisa. Victor simplesmente fez o que achou o que devia fazer, lembrando-se dos filmes que já havia assistido.

Ok, vamos lá. Ele posicionou a primeira flecha no arco, ergueu os braços, fechou um dos olhos e mirou no centro do alvo… Com cuidado… Ele foi puxando a corda bem vagarosamente e criou uns segundos de suspense antes de soltá-la. AGORA!

Ele abriu os dedos e inclinou a cabeça com os dentes à mostra, ansioso para ver sua flecha voando. Até que ouviu um barulho surdo de algo caindo na grama. -- Não pode ser. -- Seu sorriso fechou-se em uma carranca digna das que usava na escola, e olhou para baixo. Onde encontrou sua flecha caída.

Victor havia largado a corda mas soltado a flecha no chão.

ele respirou fundo. Está tudo bem… pelo menos ninguém…

Daniel começou a gargalhar às suas costas. Victor virou-se assustado, em um misto de raiva e surpresa. Era para ele estar com as crianças. Quem estava com as crianças?... O QUE ELE ESTAVA FAZENDO ALI, para começo de conversa? Em vez de responder, Victor virou-se bufando e encarou o alvo, já com outra flecha posicionada no arco. Daniel assistiu de onde estava, reparando em como Victor posicionava a flecha e segurava o arco. Ele não ia comentar nada, apenas observar aquilo tudo com um sorriso de deboche e simpatia nos lábios. Ele sentia necessidade de fazer algum comentário maldoso, mas não o fez.

Victor atirou sua segunda flecha, e esta desta vez não caiu no chão, mas realizou seu percurso estável até o meio do trajeto e embicou na grama, cobrindo apenas metade da distância que devia para acertar o alvo.

Ele bufou, apertando os olhos.

– Tenta levantar mais os ombros. - Daniel disse.

– Sai daqui. - Victor respondeu, ríspido.

– Ué - Dani começou a se aproximar, com as mãos nos bolsos do shorts. - Você não veio pedir umas dicas para Maria? Por que não pode aceitar as minhas também?

Victor não respondeu, observando-o com o canto do olho.

– Tente levantar mais os ombros.

– Você não devia estar com as crianças?

– O lanche não vai ser no refeitório esta tarde. - Daniel constatou, como se aquilo explicasse alguma coisa. Ele esperou um pouco antes de terminar. - Elas vão comer na Grande Árvore. É logo ali, então não tive que andar até o refeitório. Agora tente levantar mais os ombros.

– Dá pra explicar melhor? - Victor esbravejou. - Não sei levantar meus ombros.

Daniel pediu para que ele posicionasse a terceira flecha no arco e se preparasse para lançá-la. Ele deu uma volta em Victor, analisando sua postura, e quando terminou o círculo levantou seu cotovelo do braço que puxava a corda mais para cima.

– Seus braços estão muito baixos. Tenta imaginar que você tá formando um T, e seus braços devem acompanhar a linha da sua boca, para poder puxar a flecha até o seu queixo. Seu queixo, entendeu? Não as tetas.

Victor esboçou um sorriso, antes de voltar para sua cara de Não Me Importo.

Pelo menos ele pareceu ouvir e levantou os braços, de fato formando um T… ou quase. Daniel apoiou o queixo na mão, curioso para ver se aquilo daria certo ou não.

– Puxe mais a corda… - ele comentou.

Victor resmungou baixinho mas não obedeceu. Ele iria conseguir. Foda-se.

Mas não conseguiu.

Ele esperou que Daniel risse novamente quando a flecha caiu a alguns metros adiante da segunda, mas a única coisa que viu foi ele andando até o container de flechas para pegar mais umas duas e retornar com uma expressão branca. Ele estendeu as flechas para Victor com um sorriso frouxo, tentando demonstrar que não iria caçoar dele.

– Mais uma vez. Tenta puxar mais a corda. Queixo, lembra?

– Sim… - Victor balbuciou. - Mas a flecha está na linha do meu queixo e…

– É, ela está - Daniel o cortou. - Mas mesmo estando na linha do seu queixo você não a está puxando até o seu queixo…

Victor permaneceu em silêncio, posicionando a primeira flecha no arco.

– Ok, então… - Dani sorriu, recuando um passo. - Vamos lá.

Lá estava ele novamente, com os braços erguidos na altura do maxilar e os braços firmes, segurando o arco com confiança. Ele puxou a corda…

– Puxe mais… - Daniel incentivou.

Victor não pareceu ouvir, puxando apenas mais alguns centímetros, ainda longe do queixo.

– Puxe maaaais…

Victor atirou a flecha e errou.

– Porra, Daniel. - Victor virou-se, acusativo. - Não dá pra acertar com você falando aí!

– Não dá pra acertar se você não puxar até o queixo. - ele deu de ombros.

Eles não saíram do lugar e Victor ficou bufando, encarando Daniel com um pouquinho de raiva.

– Ah, vamos lá - Daniel estressou-se pela sua falta de atitude e segurou-o pelos ombros, levando-o de volta para o lugar específico de tiro. - Isso é medo de puxar a corda até o queixo?

Ele colocou a flecha no arco de Victor e ergueu seus braços para que ficasse em posição.

– Não precisa ter medo, olha - Ele ficou atrás de Victor e puxou a corda junto dele, com suas mãos sobrepostas, até que roçassem em seu maxilar.

Alguns segundos se passaram para que Daniel mirasse direito, do jeito que conseguia com a cabeça de Victor na frente, e até que decidisse que era momento ideal para soltar a corda, ele desivou o olhar para o pescoço de Victor e sentiu sua respiração pesar. Aquilo não era para acontecer. Não naquele momento. Ele ficou tenso, sentindo seus dedos apertarem o arco mais do que o necessário e voltou seu olhar para o arco. Daniel abriu a boca e suspirou.

Victor não estava entendendo o que estava a acontecer, mas fingiu não perceber quando Daniel soltou uma respiração carregada em sua nuca. Ele arregalou os olhos.

Daniel afrouxou sua mão sobre a de Victor, o que o fez soltar a flecha.

Ela passou raspando na lateral do arco, mas pelo menos havia cobrido a distância necessária desta vez.

– Cara… O que...? - Victor perguntou, virando-se ainda meio confuso.

Mas ele já havia ido.

*

Enquanto as crianças tomavam seu lanche os monitores ganhavam um tempo livre para descansar, e comer também, em volta da Grande Árvore, que era -- acreditem, ou não -- uma grande árvore, com bancos de madeira em volta, cobertos por sua copa. Mas Daniel, ao contrário de todos que se encontravam por ali, estava sentado na grama descalço. Ele conversava com Julia e Nathan. Nathan não usava algo que não fosse bermudas de surfista desde o primeiro dia. Daniel riu, perguntando-se o quão grande devia ser sua coleção (ou a sua mala).

Lana não estava à vista, o que deixava Dani meio inquieto, prestando atenção no que os outros dois diziam, mas levantando a cabeça de tempos em tempos e olhando em todas as direções para ver se enxergava sua amiga em algum lugar.

– Não é, Dani? - Julia perguntou e começou a rir.

– Com certeza - ele respondeu com um sorriso e Nathan riu também.

Ele não fazia ideia do que havia acabado de responder, mas Victor vinha caminhando na direção deles, e Dani se xingou mentalmente, por parecer que estava procurando por alguém, o que de fato ele estava, mas não por ele.

Ele ainda estava com raiva.

Porque sim.

Ele havia se distraído com o pescoço de Victor. E não era para isso acontecer. Primeiramente, por que ele deveria se preocupar com o pescoço de Victor?! Talvez fosse a proximidade. É. Era exatamente isso. Eles estavam próximos, e Daniel estava meio que na seca, digamos, então… Não sabia.

Um pescoço perto de sua boca deixaria ele daquele mesmo jeito, independente se fosse Victor ou não.

Pessoas perto demais deixavam ele daquele jeito.

Se tivessem um abdômen trabalhado e uma nuca particularmente legal, ou não.

– Ai, Daniel… - ele gemeu e afundou a cabeça nas mãos, se escondendo. Julia e Nathan trocaram um olhar inquisitivo mas não comentaram nada.

Victor sentou-se em silêncio perto deles e os cumprimentou -- pelo menos aqueles que não estavam com a cabeça enterrada nas mãos -- com um aceno.

Victor continuou a treinar um pouco com o arco e flecha, apesar de um pouco

perturbado com o que havia acontecido, -- ou pelo menos com o que achava que havia acontecido. -- pois, logo depois que Daniel se fora, Maria apareceu com as mãos na cintura.

Ele sentiu seu rosto esquentar mais uma vez, sem saber até que parte do ocorrido ela teria conseguido ver, e fingiu que nada havia acontecido. Apesar das cinco flechas que pareciam brilhar no gramado, pedindo para que ouvissem seu chamado de “Socorro, me ajude, Mãe Maria, fui atirada por este incompetente”, ele manteve a expressão de alguém que nunca havia tocado nas flechas.

Agora ele estava ali, feliz por ter conseguido acertar o alvo duas vezes, mas ainda frustrado por não entender o que estava se passando com Daniel.

Ele ajudou Maria a guardar o resto do material e subiu para a Grande Árvore. Daniel parecia estar à procura de alguém, e quando o viu, pareceu se encolher de vergonha, ou o que quer que fosse aquilo que fez seu rosto contorcer-se em uma careta, e escondeu a cabeça nos braços.

Ah, Victor pensou, bufando, foda-se.

E então ele viu Lana vindo de onde parecia ser o Q.G., com uma expressão não muito feliz, e passos pesados, que foram se transformando em uma passada leve, até ela chegar perto do grupinho e se sentar graciosamente sobre as pernas.

– O que aconteceu? - perguntou Nathan para ela.

– Nada. - Ela forçou um sorriso por cima da raiva.

Daniel levantou a cabeça rapidamente ao ouvir a voz de Lana, com os olhos inquietos, e sorriu. Victor perguntou-se por um segundo se era ela que Daniel procurava, e sentiu o peito apertar um pouco, sem saber o porquê.

Mentira, pois ele sabia. Mas aquilo não passava de algo ridículo. Então rolou os olhos e começou a prestar atenção nas folhas da grama, que pareceram se tornar muito interessantes por um momento.

– Para com isso. - Julia estalou a lingua e empurrou Lana de leve.

– É sério, - Lana revidou - não aconteceu nada mesmo. Só meu pai que ligou aqui no acampamento pra nada.

– Quê? - perguntou Nathan, curioso.

– Isso mesmo. Ele ligou, pra nada.

– E por isso você tá brava? - Julia interveio.

– Sim. Porque ele é um chato.

Daniel sorriu. Victor continuou a mexer na grama.

– O que ele disse? - Julia quis saber.

– Ah. Ele ligou, todo puto, porque achou um isqueiro na minha escrivaninha, e já veio me xingando, perguntando se eu tô fumando, perguntando se ele acharia um maço de cigarro escondido caso se aprofundasse nas minhas gavetas - ela mexia as mãos sem parar, tentando se lembrar de tudo - E pra explicar pra ele que era só para um trabalho de Ciências? Dai ele quis saber se pode mesmo confiar na filha dele, porque já não reconhece mais a princesinha dele, e porque… - ela parou. Bufou alto e baixou os braços. - Não mereço. Esperei ele ficar quieto para dizer que era só para a escola e desliguei, antes que ele continuasse.

Eles começaram a rir, com exceção de Victor, que teve os lábios curvados para baixo sem perceber.

– Ai, - Julia jogou o cabelo para trás, rindo. - eu também passo por muitas dessas, mano. Toda vez que eu vou sair de casa meu pai diz para eu usar camisinha, e eu, tipo, PAI! - ela começou a gargalhar. - Mas dá raiva às vezes. Ele fica muito em cima de mim por umas coisas que nem importam, e quando eu sinto que era para ele se importar, ele ta lá, vendo o terceiro filme do Homem-Aranha pela décima vez.

– Nem me fala - Daniel comentou. - Toda vez que eu saio de casa, não importa pra quê. Se eu vou no cinema com o Gui e a Luce, ou se vou na festa da família de algum amigo. Meu pai sempre vem e diz “juízo”, com aquele olhar de censura, como se eu fosse fazer um filho, não importa aonde eu for.

– Talvez seja por que você voltou pra casa com um chupão no pescoço quando disse que ia estudar. - Lana colocou a mão em seu ombro.

– Para com isso, - ele começou a rir, com as bochechas vermelhas. - não precisa me lembrar.

– Geeeente, que história é essa? - Julia cobriu a boca com a mão.

– Não foi nada, - Daniel chacoalhou a cabeça. - e você, Nathan?

– Não muda de assunto - Julia deu um soco em seu braço, rindo.

E você, Nathan? - ele repetiu, com mais insistência na voz, tentando não rir.

– Ah, cara - Nathan respondeu, esticando as pernas. - Não tenho muito o que contar. Meus pais se divorciaram quando eu era bebê, e só vejo meu pai em festas muito especiais, tipo o Hanukkah do meu meio-irmão, ou, sei lá. O natal de 2012. Não lembro direito. Eu o vejo muito pouco.

Um professor chamou Nathan da Grande Árvore e ele se virou para ver o que era. Parecia que ele estava o chamando para ajudar a levar os lanches que sobraram para a cozinha, e ele se levantou, estendendo a mão para Julia ir junto.

– Já voltamos, gente. - eles correram e largaram o assunto no ar.

Um silêncio estranho instalou-se entre Lana, Daniel e Victor quando nenhum deles soube como prosseguir a conversa, e ao perceber que Victor não havia falado nada, Lana aproximou-se dele, com o sorriso renovado e segurou suas mãos nas dela.

– E você, Victor? - ela perguntou - Também briga muito com o seu pai?

– Ah, eu… - Victor sorriu de canto, desconfortável.

Daniel parecia mortificado, como se estivesse com medo.

– Ele morreu, Lana.

– Victor… - Daniel murmurou.

– Que foi, Daniel? - ele respondeu, arisco. - Ele morreu, ok? Passou.

Daniel respirou fundo antes de continuar:

– Por que você tá bravo?

Lana soltou as mãos de Victor, sem saber o que dizer, virando a cabeça como se estivesse assistindo a uma partida de tênis de mesa.

– Não tô bravo, porra.

– Tem certeza?

Victor voltou seu olhar para a grama.

– Você não disse que tinha passado? - Daniel esbravejou, esperando que Victor respondesse. Mas ele não o fez. - Pelo menos você não tem que passar por essas coisas que a gente passa.

Victor o encarou descrente, com os olhos estreitos e a boca meio aberta. Ele estava mesmo ouvindo aquilo?

– Sério, Daniel?

– Quê?

– Sério?

Foi a vez de Daniel ficar em silêncio.

– Você está mesmo me dizendo que eu “pelo menos” não preciso passar por essas coisas quando sabe que meu pai tá MORTO? - ele se controlou para não elevar muito a voz. - Você mais do que ninguém sabe que ele tá morto. Você mais do ninguém sabe que eu não tive ninguém pra me ajudar durante a perda, porque você, mais do que ninguém, sabe como é dizer essas asneiras para alguém que perdeu o pai. Então não me venha com esses papos idiotas…

– Me desculpe, Victor, eu… - Lana começou a dizer, mas foi parada quando Victor fez um gesto com a mão.

– Você não fez nada, Lana. Nem sei por que está se desculpando. - disse ele, com a respiração ainda desnivelada, querendo manter o tom de voz. Ele olhou para Daniel - Mas é bom saber que pelo menos alguém se preocupa em pedir desculpas. Porque tem outras que não parecem saber a importância disso.

Lana olhou para Daniel para ver se ele havia entendido algo que não fora dirigido a ela, mas ele continuava a encarar os pés descalços, em silêncio.

– De novo, hein? - Victor murmurou. - Segunda vez e você ainda não aprendeu. Puta merda, Daniel.

E então ele se levantou, deixando os outros dois absortos em uma parede de silêncio. Lana estava se matando por dentro, se perguntando se já era seguro fazer mais perguntas sobre o assunto, ou se Dani ainda queria permanecer em silêncio. Ela conhecia o começo da história, de que os dois eram amigos, mas brigaram e… Ela suspirou. A única coisa que sabia naquele momento era que ver Victor sair daquele maneira a deixou de coração partido.

Daniel se remexeu de leve no lugar.

– Ande… - disse ele, calmo. - Pode perguntar.

– O quê?

– Pergunte o que quiser. Você já tinha me perguntado antes, mas eu não quis

responder... - ele suspirou.

Lana ponderou por alguns segundos.

– A morte do pai do Victor tem algo a ver com... a coisa? - ela tentou, hesitante.

Daniel franziu o cenho.

Que coisa?

– Foi assim que você chamou… - lembrou ela. - Você tinha me dito que vocês dois eram amigos, e então aconteceu uma coisa… - ela esperou um pouco antes de completar: - “A coisa” - ela fez aspas com as mãos.

– Ah, sim… - desenhando círculos na grama, Daniel começou a contar, em um tom meio distante. - eu…

– Você também me disse que sempre fala mais do que deve… até naquela idade, e…

– Posso contar? - ele ergueu o olhar para ela.

– Desculpa. - ela levou o dedo indicador ao lábio, simbolizando silêncio.

Daniel esboçou um sorriso.

– Então… Isso que você presenciou aqui foi basicamente o que aconteceu naquela época.

Lana respeitou o momento de silêncio que ele tirou para si mesmo antes de continuar. Ela queria gritar e exigir melhores explicações, mas ela conhecia Dani, e seus timings eram meio diferentes.

– O pai dele morreu muito de repente… e foi perto do aniversário dele… E eu não ajudei muito. Falei umas besteiras, e fui meio egoísta, querendo que ele se animasse e ficasse feliz por eu estar lá para brincar com ele… Mas eu não era o pai dele. Faz sentido?

Lana assentiu.

– E eu fui grosso… Sim - murmurou ele. - Até com aquela idade. - sorriu de canto. - E ele brigou comigo, falou tudo o que eu tinha que ouvir… Mas naquela época eu não tinha noção de que aquilo era tudo o que eu tinha que ouvir. Por isso só gritei de volta e… É. Perdemos a amizade.

Lana ouvia tudo, e quando percebeu que era sua deixa para dizer alguma coisa, logo disse:

– E depois disso? Você não fez nada?

– Como assim?

– Pra se desculpar.

– Ah. Eu tentei. Mas então foi a parte dele de começar a ser o cuzão que conhecemos hoje e…

– Já entendi - ela o cortou.

Os dois suspiraram juntos.

– Só vamos rezar para ele estar mais calmo no jantar, para você se desculpar e...

– Nem quero ir para o quarto.

– Não vai para lá, não - ela interveio novamente. - Dá um tempo para ele ficar sozinho. Eu não gostaria de ver sua cara por um tempo, depois disso.

– Entendo.

– Mas, se você não conseguir falar com ele no jantar, vai direto pro quarto e pede desculpas.

Daniel olhou torto para ela.

– Daniel. - ela cobrou, erguendo as sobrancelhas.

– Tá.

– Ok?

– Ok…

– Então vejo você e o Victor no jantar.

***

Mas Victor não apareceu no jantar.

Daniel passara o resto do dia rondando o Q.G. e ajudando professores para não ter que retornar para o chalé tão cedo, e quando entrou no refeitório e pegou sua bandeja, seus olhos logo trataram de procurar por Victor. Mas ele não o encontrou.

Lana se aproximou dele. Sem surpresas. Ela também já havia procurado por ele, e soube na hora o que estava se passando na cabeça de Daniel quando viu sua expressão.

– Ótimo - disse ela, próxima ao seu ouvido. - Depois quero saber das exatas palavras que você usou.

***

O clima no quarto estava pesado quando Daniel entrou.

Victor não o olhou feio nem nada, e isso foi o mais estranho. Ele estava sentado no chão com as costas apoiadas em sua cama e o olhar fixo na cama de Daniel, que poderia ser o meio termo entre o chão e a parede, pois ele não estava fitando nem um, nem outro.

A única coisa que Daniel podia dizer era que, do jeito que o olhar de Victor travou ao abrir a porta, ele estava decidido a olhar para qualquer coisa, menos para ele.

– Você está bem? - Daniel arriscou após fechar a porta com extremo cuidado.

Victor não mexeu um músculo enquanto o outro sentava na cama à sua frente, tentando se impor em seu campo de visão. Contanto que não olhasse na cara de Daniel estava tudo bem. E ele não olharia. Nunca mais.

– Sabe… eu gosto mais quando você é estúpido comigo.

Percebia-se que Daniel estava brincando, numa tentantiva de aliviar o clima, se conseguisse olhar por trás das camadas de culpa e hesitação. Mas tal frase só fez a raiva de Victor aumentar e ele então levantou-se, decidido a sair daquele quarto. Daniel segurou seu braço antes que pudesse alcançar a porta.

– O QUE É, PORRA? - ele se virou, livrando o braço de Daniel.

– Eu que te pergunto - respondeu Dani, acusativo.

– VOCÊ NÃO ME DEIXA EM PAZ.

– Você que--

Daniel foi interrompido por um Victor raivoso que partiu para cima dele com os punhos fechados e um ganido de raiva.

Com os braços erguidos na frente do rosto, Daniel conseguiu se proteger do primeiro ataque, mas Victor não parou e investia cada vez mais em seu rosto e seu toráx. Dani não possuía tempo para revidar - e nem queria revidar. Meio que merecia aquilo - e não reagiu de nenhuma forma até suas costas atingirem a parede e o punho de Victor afundar na madeira com violência, a centímetros da cabeça de Dani.

– SEU MANÍACO. VOCÊ PODIA TER… - A voz de Daniel foi morrendo aos poucos, observando o punho vermelho de Victor recolhido. - … me quebrado.

Victor parecia tão assustado quando ele, mas mesmo assim conseguiu bradar:

– ENTÃO REAJA.

A instabilidade em sua voz denunciava a ira ameaçando se manifestar em lágrimas.

– ANDE! - ele abriu os braços, expondo o peitoral - ME BATA!

Daniel levou uma mão ao rosto, sustentando o olhar de um Victor alterado, só então sentindo que havia sido atingido na bochecha no meio da confusão.

– ANDE, MERDA!

E Daniel foi.

*

Desgrudou suas costas da parede e avançou em Victor, que por um momento de sensatez fechou os olhos e esperou o soco no estômago.

E foi abraçado.

*

Daniel fechou os braços em volta de Victor e o apertou. Victor arregalou os olhos e ficou sem reação por alguns instantes, antes de se desvencilhar do outro, em choque.

– Mas que merd…

– Não vou deixar acontecer de novo, ok?

– …

– Me desculpe.

– Você…

– Minha vez de falar, cacete.

Victor calou-se, desviando o olhar ainda com raiva, mas sem sair do lugar.

– Você acha que eu não sinto falta de como era antes? Acha que eu não lembro de como era ter meu melhor amigo sem ele querer me matar nos corredores da escola? Eu tentei, Victor! Eu tentei me desculpar naquela época, mas você não quis ouvir - Daniel fez uma pausa para recuperar o fôlego e viu Victor comprimir os lábios, como que não querendo admitir aquilo - Até que entrei na sua. E parei. Entrei no seu jogo de ignorância e acabamos do jeito que estamos… Eu… e, eu, ahn… porra! Eu até achei que estávamos voltando a ser uma fração do que éramos antes, mas agora fodi tudo de novo, e não vou deixar acontecer duas vezes, ok?

O olhar dos dois se encontrou por um segundo.

– Fala alguma coisa, Victor.

E Victor não disse nada. Apenas virou as costas e se dirigiu para a sua mala, de onde tirou a garrafa de vodka que Dani vira no primeiro dia e a abriu, tomando um gole direto do gargalo. Daniel suspirou e aceitou que aquela reação era melhor do que a que estava realmente esperando. Victor havia se sentado novamente no mesmo lugar, encostado na cama, e Dani concluiu que se juntar a ele era a melhor opção. Sentou-se ao seu lado e roubou a garrafa de sua mão, enquanto encaravam o nada. Dani deu um gole maior do que consideraria sensato e sentiu o álcool queimando a garganta. Fez uma careta.

Eles ficaram assim, em silêncio, roubando a garrafa da mão do outro de tempos em tempos, até que ela chegou à metade.

– Cara… - Daniel virou a cabeça, meio tonto - Agora, sério…

Victor fechou os olhos.

– Me desculpa.

– Daniel…

– Por favor…

Victor suspirou e fez que sim com a cabeça, tomando mais um gole.

– Mas você é um merda. E mesmo te desculpando ainda estou com raiva.

– Compreensível.

Muita raiva.

E ele começou a rir.

Daniel franziu o cenho, meio confuso. Estava começando a sentir o corpo pesar, sofrendo os claros efeitos da embriaguez, com os ombros pendendo para frente e para os lados, sem ter um controle certo sobre sua cabeça. Victor continuava rindo. Seria assim que ele ficava quando bêbado? Dani já sabia que o corpo pesado era de lei para ele, que sempre que bebia um pouco a mais do que devia, a leveza deixava seu corpo. Seria a risada de Victor o seu delator de embriaguez?

– Cara… Você tá bem? - perguntou Daniel, rindo.

Victor abriu-se em uma gargalhada e deixou a cabeça cair no ombro de Daniel de um jeito não muito confortável.

– Não. - ele conseguiu dizer, antes de voltar a soluçar.

– Você machucou meu ombro - reclamou Daniel, tentando parecer bravo, porém a risada parecia estar abrindo seu caminho através da alma, de tão profunda.

– Para de ser maricas…

– Maricas? Eu? - Daniel explodiu de rir - Não fui eu que cheguei na “segunda base com alguém do mesmo sexo”.

Victor parou de rir, mas não parecia bravo.

– Espera - disse ele, estreitando os olhos, sem conseguir impedir sua cabeça de ir um pouco pra frente. Ele também ficava com o corpo pesado. - Como você sabe disso?

– O jogo do eu nunca… - Dani respirou profundamente quando percebeu que já tinha passado pelo pior da risada, encarando a parede. - Eu vi você dando um gole nessa hora.

– Droga.

Sem saber o que dizer, Victor também se pôs a apreciar a parede de madeira do chalé. Ele não estava mais com a cabeça apoiada em Daniel, mas algo em sua cabeça dizia que não se importaria em ficar daquele jeito de novo.

– Mas bem que você queria, hein? - perguntou Victor, com um sorriso malicioso.

Daniel engasgou quando tentou dar outro gole na garrafa.

– Espera. Que?!

– Chegar na segunda base com algum menino, sabe? - ele continuou a falar, como se fosse algum pai explicando para o filho de onde vem os bebês. - Nem precisa ser na segunda base, talvez. Sua cara denuncia, sei lá. Acho que só de encostar em algum você ficaria feliz

Daniel estava no máximo silêncio. Estava com um pouco de raiva por ouvir aquilo. Que direito tinha Victor de dizer coisas como aquela e não receber um soco na cara? Mas ele estava certo. Ele franziu as sobrancelhas para o chão, e Victor sorriu. Talvez ele quisesse.

– Eu percebi como você ficou sem graça quando me viu sem camiseta - aquela era pra ser uma frase séria, mas Victor se enrolou no meio e arrastou algumas palavras sem perceber, tentando apontar o dedo indicador para o rosto de Daniel. - No arco e flecha também. Você ficou muito feliz perto do meu pescoço. Eu também, mas foda-se.

– Não é um tanquinho. - Dani balbuciou, de cara emburrada.

Victor voltou a rir.

– Você fez biquinho.

– Não fiz - Dani se defendeu. Mas, de fato, aprofundou o biquinho sem perceber.

– HÁAAAAA… - Victor arregalou os olhos, de tanto que ria.

– Você é ridículo.

– Você é maaaaaaaaaais.

E o corpo de Victor pesou. Sua cabeça foi para o lado e puxou o resto do corpo, caindo com a cabeça no colo de Daniel, olhando para cima, ainda rindo. Daniel ficou lhe encarando ainda emburrado, com uma curva mínima no canto dos lábios.

– Se eu admitir, mesmo contra a minha vontade - começou Daniel, soltando uma mão em cima da boca de Victor para abafar o som de sua risada. - Que você tem um tanquinho, você para de ser tão idiota?

– Talvez.

– Sim.

– Talvez.

– Para! - exclamou Daniel.

– Tá. Sim.

– Ok. Vamos lá. - Dani tentou se concentrar ao máximo nas palavras que iria usar, e depois de pensar muito, deixando os dois em um silêncio muito estranho, conseguiu dizer: - Você tem um tanquinho legal.

– Obrigado.

– Não. Não sou obrigado.

– Mas tem braços legais.

– Você acha? - Dani ergueu as sobrancelhas.

– Acho. Mas só agora. Amanhã eu não vou ter dito nada disso.

– Sabe o que também é legal? - Dani sorriu. Eles não estavam preocupados em trocar de posição. Ele estava bem com Victor deitado ali.

– O quê? - perguntou Victor, com um ar meio sonolento.

– Dormir abraçado com você. É legal. Tipo… - Dani levantou as mãos e começou a gesticular. - Não que eu goste, mas talvez eu goste, mas é legal, é tipo… Abraçar.

– Abraçar é legal. - Victor concordou.

– A gente se abraçava bastante, né?

– Você se lembra disso? - A seriedade em sua voz surpreendeu um pouco Daniel, que ainda estava meio perdido.

Daniel parou para pensar um pouco. Eles já dividiram a mesma cama muitas vezes, quando eram menores. Naquela época era super normal, e ele não se importaria de voltar a fazer isso… mesmo que… bem. Daniel suspirou sem perceber.

– Lembro-me de muitas coisas.

Victor não desgrudava os olhos de Dani.

– Também me lembro de muitas coisas… - ele riu.

O silêncio mais uma vez se instalou entre eles, porém, não pareceram se importar. Cada um estava mergulhando em sua própria mente, revivendo momentos que nem mesmo eles se julgavam capazes de recordar. Daniel estava pensando especificamente no dia em que os dois foram passar o fim de semana na casa de seu tio, que ficava no interior, e o terreno lembrava muito o acampamento, com grandes clareiras e grama em todo lugar. Aquele fora o ponto mais alto da amizade dos dois, um pouco antes da morte do pai de Victor. Eles haviam combinado com os pais de serem exploradores, e que não deviam ser perturbados, ganhando total liberdade para correr pelo sítio, sem levarem bronca.

Aquilo era algo que Daniel sempre tivera vontade de fazer, mas nunca havia conseguido, pois seus pais não gostavam da ideia de tê-lo correndo sozinho pelo sítio enorme. Mas, com Victor ao seu lado, daquela vez, eles puderam montar nas árvores, entrar no estábulo dos cavalos sem ninguém saber, e, o mais emocionante de tudo, puderam subir no trator. Eles não contaram aquilo para ninguém. Era uma missão secreta.

– Do que você tá lembrando?

Dani olhou para baixo e encontrou Victor com um sorriso quase melancólico.

– Do trator. - ele respondeu.

– Por que será que eu também?

Eles riram.

– Naquele dia você disse que ia me derrubar - Victor disse - Você nunca conseguiu.

– Vai querer discutir desafios inacabados? - ele ergueu as sobrancelhas.

Victor desviou o olhar, como se tentasse lembrar.

– Não finge que não lembra, cuzão - Dani socou seu ombro. - Você duvidou que eu te beijasse, e quando eu tentei você saiu correndo.

Victor começou a rir.

– Por que você precisava lembrar isso? Nós éramos duas crianças…

– Ainda somos, se for parar pra pensar.

– Só que duas crianças bêbadas.

E começaram a gargalhar.

– Mas se isso te incomoda tanto… - Victor disse, e hesitou antes de continuar, quando Dani se virou para ele - Por que não resolvemos isso hoje?

– O quê? - perguntou Dani, confuso.

Victor ponderou por alguns segundos. Ele já não estava se importando mais com o que dizia, Daniel também parecia não se importar. Eles estavam tão perto. Faria alguma diferença?...

– Me derrubar. - disse ele, por fim.

– Ah…

Depois de alguns segundos processando, Daniel sorriu.

– Ok, - ele deu de ombros - por que não?

Mas nenhum deles se moveu.

Daniel, após alguns segundos, colocou a mão em cima do peito de Victor, para garantir que eles não saíssem daquela posição. Ele não queria que isso acontecesse, e, de sobrancelhas erguidas, percebeu que seu coração batia muito rápido. Seus olhares se encontraram por um momento, e Dani lutava para não notar que a respiração de Victor estava acelerada.

O tempo que passaram se encarando em silêncio foi uma das coisas mais horríveis que Dani podia se lembrar de ter feito. Ele não sabia o que fazer. Devia continuar em silêncio, ou dizer alguma coisa? Devia desviar seu olhar para a parede, ou continuar a encará-lo? Devia ficar onde está, ou devia inclinar-se e…

– Vai resolver isso hoje? - Victor percebeu o que estava acontecendo e resolveu dar uma impulsionada. Foda-se, ele pensou.

Daniel não disse nada. Apenas tirou a mão de seu peito e inclinou a cabeça, sem desviar o olhar, como se fosse receber um soco a qualquer momento. Ou como se Victor pudesse fugir novamente. Mas a única coisa que ele fez foi fechar os olhos. Estavam a centímetros de distância quando Daniel também resolveu fechar os olhos, e sentiu a leve respiração de Victor em seu nariz…

E então alguém bateu na porta.

– A garrafa - Victor sussurrou de olhos arregalados. Ele empurrou Daniel que ainda estava de olhos fechados sobre ele e agarrou a garrafa de vodka em uma velocidade sobre-humana, escondendo-a debaixo da coberta da cama mais próxima e levantou-se.

Teve de ajudar um Daniel desnorteado a se levantar também, e arrumou o cabelo com as mãos.

– Senta aí, e não fala nada. - disse ele, empurrando-o para a cama - Você ainda tá meio bêbado.

Então Victor não estava?

Mas antes que pudesse se aprofundar nas questões triviais, Daniel viu Victor abrir a porta e do outro lado estava o diretor Levi, com cara de desinteressado.

– Ah, boa noite, senhor Victor. Senhor Daniel - ele os cumprimentou com descaso, e então voltou-se para Victor - Parece que alguém lá em cima escutou suas preces, meu jovem.

– Como assim? - Victor gaguejou.

– Recebemos uma ligação de sua mãe, a minutos atrás. O senhor vai para casa.


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Notas finais do capítulo

hihi