Biografia de Alguém escrita por Madu Loescher


Capítulo 4
Capítulo 4




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No dia seguinte, numa quinta feira, acordo uma hora antes do que deveria (ás vezes meu despertador dá um bug). Esfrego os olhos e jogo o pescoço para trás. Ele estala. Massageio-o e troco de roupa para a escola. Desço e tomo café da manhã como sempre, como se o Atila não quisesse vingança. Volto para o quarto ao ver que ainda tenho meia hora.

Pego o dono de papel que dobrei na noite anterior e desenho uma camisa azul para ele. Eu a pinto, e logo depois pinto uma calça jeans preta nele. Quando termino a roupa do boneco, faço três pontinhos (os olhos e o nariz) e um semicírculo meio deformado (a boca).

Faço o mesmo com o cachorro, que fica melhor que o dono. No lugar das roupas, desenho manchas pretas. Ele está muito parecido com os outros desenhos de cachorros que eu faço. É um cachorrinho do pet shop perto daqui de casa. Ele já fugiu muitas vezes, e todas elas ele ficou ali em casa até Bianca me convencer a devolvê-lo.

Vejo que faltam 5 minutos para a passagem do ônibus, então desço para o jardim e encontro Diego esperando o ônibus.

– Ei, o que você está fazendo aqui? – ignoro completamente o “Oi”, ou “Bom dia”. – Achei que seu pai te levasse para a escola!

– É, mas ele chegava atrasado. Eu só ia com ele até me acostumar com a nova escola.

– Então você vai de busão a partir de agora?

– É. Acho que sim. Mas é tão ruim assim?

– Tire suas próprias conclusões.

Nesse exato momento, o ônibus chega e ele entra. Vê todos os bancos cheios e entupidos, então senta lá atrás. Não na janela, no corredor.

Sento-me no lugar de sempre, ao lado dele, e todos fazem um coro surpreso. Diego me olha com uma interrogação no rosto, e eu digo bem baixinho:

– Te explico depois.

Não conversamos muito. Principalmente porque não havia nada sobre o que conversar. Deito a cabeça na janela e não consigo adormecer, pois o ônibus sacoleja mais que o normal. Esfrego os olhos para tentar afugentar o sono e, sem pensar, deito a cabeça no ombro de Diego. Ele passa um braço por cima de meus ombros e eu levanto a cabeça, surpresa.

– Ei, – ele diz – pode dormir. Eu vi o quanto está cansada.

– Mas eu vou incomodar, não?

– De maneira alguma. Agora deite e descanse. Ainda tem seis horas de aula e eu de tarde para aguentar. – rio e fecho os olhos, com a cabeça descansada no ombro do Sr. Potter. Ele faz um carinho na minha bochecha, e eu durmo sentindo-me extremamente feliz.

***

Acordo com o mesmo sacolejo de sempre e uma mão me cutucando. Diego sorri para mim e me levanto de bom humor. Por mais que eu tente, não consigo esconder o sorriso.

Saímos do ônibus juntos, e não pude deixar de imaginar se a minha mão esbarrasse na dele e, sei lá...

No caminho para a sala, no corredor, ainda estou sorrindo, o que me ferra:

– Que felicidade toda é essa? – pergunta alguém. Não preciso me virar para saber que esse alguém é Magda, a filhinha querida do diretor. Viro-me e, como sempre, levo um susto com a cara feia dela. Não quero descrever, porque ninguém jamais a viu sem maquiagem (é tanta maquiagem que a gente não sabe o tom de pele dela!).

– O que é que você quer Magda?

– Duas coisas – ela mostra dois dedos. – Primeiro: quero conhecer esse seu amigo. – ela olha para Diego com uma tentativa (nojenta) de um olhar sedutor. – Segundo: quero mostrar para ele que você não presta e tem gente muito melhor nesse mundo. – ela faz uma alusão muito óbvia a si mesma.

Diego me olha com uma cara de “quem é essa garota, por que é que ela usa tanta maquiagem e por que ela está dizendo isso?” que me deixou com nervoso.

– Olhe, – começa Diego – eu não te conheço e nem nunca te vi na vida. Por que está falando mal da única pessoa legal que conheci até agora nesse colégio e, pelo amor de Deus, por que é que você usa tanta maquiagem?

– Ei! – ela parece ofendida, mas eu não tenho certeza. – Não sei se você veio de uma terra sombria em que não existe maquiagem, mas é perfeitamente N-O-R-M-A-L – ela faz questão de soletrar a palavra – por aqui usar maquiagem, entendeu!

– Só por que eu não nasci na capital não quer dizer que eu sou um Neandertal ou coisa do gênero. – infelizmente, ele parecia acostumado com isso. – E eu sei que garotas usam maquiagem. “De onde eu venho” – ele diz isso com uma voz debochada – elas também usam, mas você usa tanta maquiagem que eu não sei se o seu rosto é assim ou não!

Magda sai batendo pé, emburrada porque pela primeira vez na vida não conseguiu o que quer.

– Ela é sempre assim? – ele pergunta.

– Não. – ele suspira claramente aliviado. – Você a pegou de bom humor.

– Peraí, é o quê?

Rio.

– Vamos, temos que nos preparar para a aula do Sidney. É português.

– Vambora. – nós caminhamos juntos, ele sorrindo e eu também, apesar de estar internamente assustada com o que está por vir.

O professor fala, fala e fala, e nós morremos de tédio e copiamos. Não consigo gostar de português.

Como se não fosse suficiente uma aula de português, temos DUAS aulas de português. Sabe o que vem depois? Hã? Não, não é mais português. É redação.

Após a metade do pior dia de aula ter passado, tem o recreio (a única parte boa do dia). Nós nos escondemos para podermos ficar na sala conversando.

– E aí? O que foi aquilo hoje mais cedo?

Não falo nada. Ainda estou apavorada por estar QUEBRANDO AS REGRAS!

– Oi? Terra chamando Anne. – ele passa a mão pela frente do meu rosto tentando chamar atenção. – Você tá bem? Helena? Lena? Ei.

– Não acredito nisso. – murmuro mais para mim mesma do eu para ele.

– Não acredita no que?

– Que eu estou quebrando as regras.

– Ah! Pelo amor de Deus! Você quebrou uma lei e invadiu o meu apartamento! Isso te deixa nervosa?

– Aquilo foi diferente!

– Além de muito mais perigoso, tem consequências muito mais graves. – Não pude deixar de encontrar razão nas palavras dele.

– Mas lá ninguém soube.

– E poderiam saber. Eles só não descobriram porque eu apaguei o vídeo daquela noite quando você saiu.

– Você se arriscou a isso tudo por mim? Mas seria suicídio!

– Não seria suicídio não…

– Seria adulteração de documentos! É outra lei quebrada!

Ele ri. Ri de dar gargalhadas!

– Do que você está rindo? Isso é sério!

– Eu deduzi suas próximas ações e disse para ele não se preocupar se vc subisse pelo muro e entrasse no meu apartamento, porque somos “velhos amigos” e você sempre entrava pela janela quando eu morava em uma casa no campo lá em Santa Catarina. Ele entendeu e disse que só naquele dia ele deixaria. Estamos completamente seguros.

Solto todo o ar que não reparei que estava prendendo.

– Você me matou de susto!

– Ei, achou mesmo que eu te deixaria à mercê da lei (que está certa)?

– Talvez. Eu nem te conhecia direto ou há muito tempo e… – me arrasto para um pouco mais longe dele – pensando bem, eu ainda não conheço.

– Ah! Pelo amor de deus! Você disse que confiava em mim, me abraçou, me confiou seus maiores segredos… – corto-o bem ali.

– Quando foi que eu fiz isso?

– Você fez isso no exato momento que disse que responderia a todas as perguntas às quais eu tivesse direito. – A compreensão dói muito mais do que se pode imaginar.

– Não acredito que fiz isso!

– Calma. Eu não vou invadir sua vida nem nada do gênero. Só se você me quiser nela.

– Olha, não é questão de querer ou não, por exemplo: Todos ao meu redor fazem parte da minha vida. Você, Bianca, Magda, a moça da barraquinha de churros ali da esquina (que é muito bom), o motorista do ônibus... Todas as pessoas nos mudam de alguma maneira, e isso nos faz quem somos.

– E isso não explica se eu poderia fazer mais parte da sua vida do que a Magda, por exemplo.

– E não se escolhe quem entra mais e quem entra menos na vida. É só uma questão de acaso. Por exemplo, por acaso eu te conheci, por acaso estamos tendo essa conversa…

– Mas todas essas coisas tem uma razão.

– Qual foi a razão de termos nos conhecido?

– Tinha que acontecer.

– Destino? E qual seria a razão para o seu ‘destino’ me ter feito te conhecer?

– Não controlo o destino. Ele é incontrolável.

– Então tudo é ao acaso.

– Não. Não tem lógica, mas eu acredito.

– Não ter lógica é a mesma coisa que não ter sentido.

– Já ouviu que o amor não faz sentido? – como assim “amor”?

– A discussão não é sobre amor.

– Com destino é a mesma coisa.

– Continuo não acreditando.

Ficamos calados, até que ele diz:

– Sabe, isso é uma das coisas que eu adoro em você até agora.

– O que? – fico feliz e nervosa ao mesmo tempo com aquela declaração. Vai que, né.

– Você defende seus ideais, por mais que estejam errados.

– Você tem alguma prova de que existe destino? Porque se não tiver eu não vou acreditar.

– Eu entendi. Calma.

– Ganhei. E! – grito. Jogo um braço para cima e comemoro.

– O fato de eu ter cedido não significa que você está certa. Além do mais, você está errada em muitas coisas.

– Por exemplo? – pergunto, sabendo que seria bombardeada com besteiras que eu já fiz.

– Infringir a lei, se esconder do mundo, seja lá o que foi que fez seu nariz sangrar…

– Me esconder do mundo? – corto-o. – Fazer meu nariz sangrar? Eu bateria com a cabeça na parede até meu nariz sangrar? Por quê?

– Eu sei lá por que. Mas de se esconder do mundo você tem culpa sim.

– O que você quer dizer com “se esconder do mundo”?

– Você tem 14 anos e eu sou o único amigo que você já teve. Estou certo?

– Tenho que concordar com você. Mas quem seria amigo meu? Quer dizer, além de você?

– Muita gente, se você não obrigasse as pessoas a adivinhar seus gostos e até seu nome!

– Tá bem. Vou tentar melhorar.

– Dês de que continue sendo você.

– Meus genes não vão mudar junto com meu comportamento, então…

– Por Deus! Para de ser inteligente demais para mim.

– Tá bom, vou tentar ser normal.

– Mas você não é normal. – ele replica. Dou língua para ele.

O professor entra na sala e, quando ele se vira, corremos para trás da porta. Saímos segundos depois como se tivéssemos acabado de entrar e ele fica surpreso com nossa “pontualidade”.

Mais duas horas de aulas chatas e acaba.

– Finalmente podemos ir para casa! – grita uma voz desconhecida de dentro da multidão de alunos que não aguentam mais a escola.

Rio. É a mais pura verdade.

Vou para o ônibus acompanhada de Diego, e no caminho percebo que é a maior besteira possível.

Ao chegar lá, Atila me espera com o olhar cheio de ódio. Muito bem, eu sou (não a partir de agora) o ser mais burro, demente e qualquer coisa do gênero da história desse colégio, mas não chorei de novo.

– Olhem só quem decidiu bancar a corajosa. Da última vez que você fez isso não deu certo.

– Hoje será diferente. – digo mais firmemente do que esperava que fosse conseguir.

– Ainda consegue falar? Bem, vamos dar um jeito nisso. – ele avança para cima de mim e tenta me dar um soco, mas quando me abaixo para não ser atingida, uma mão segura o punho dele! Olho para cima, e Diego está encarando-o nos olhos!

– O que você quer, hein? – ele pergunta, me deixando (sinceramente) com medo dele.

– O que eu quero? Quero ensinar a sua namoradinha a não me provocar. – Diego ri e diz algo quase inaudível. O que eu ouvi foi algo como “Q… Dra… El…”.

– O que foi que ela fez de tão ruim assim, hein? – Diego pergunta.

– Não é da sua conta.

– Agora passou a ser.

Diego puxa o braço de Atila e tenta imobilizá-lo nas costas, mas acaba sendo derrubado. Atila ri e eu dou um soco na cara dele. A risada dele e do público de idiotas ali presente cessa. Atila soca minha barriga, mas apesar da dor, chuto a canela dele e corro para Diego (modo de dizer. O espaço do corredor do ônibus é muito pequeno).

– Meu Deus! Você está bem? – digo desesperada. Diego sorri e diz:

– Não conta para ninguém o que aconteceu hoje. Meu pai vai me dar uma bronca. – tento rir, sem sucesso.

Atila vem por trás de mim e chuta minhas costas. Diego já ia se levantando para bater nele, mas o ônibus (por sorte) chegou à minha casa, e corro para fora, arrastando-o junto.

“Tomara que eu nunca mais veja a cara do Atila” penso. “Prometi para a Bianca que acabaria com isso, e não quero descumprir a promessa mais uma vez”.

Tento entrar em casa, mas Diego me para:

– Você está bem, não é?

– Ainda apavorada. Você está bem, né? Não deveria ter feito isso.

– Sim, estou bem. Mas ele mereceu. Por que ele queria bater em você?

– Porque a namorada dele, a Giulia, me… me provocou, eu bati nela e perguntei quem mais iria encarar. Aí ele gritou “vadia!” e tudo isso aconteceu.

– Por isso seu nariz estava sangrando outro dia.

– É. Diego, vamos cada um para a sua casa e não falamos mais nisso na frente de qualquer outra pessoa. Ok?

– Bem, eu pedi para a sua avó para almoçar com vocês hoje porque meu pai foi promovido e não vai poder chegar a casa antes das 08h00min. Vamos?

– Vamos. Por favor, não comente isso com Bianca. Não vou omitir nada dela, mas é melhor dizer outra hora.

– Tudo bem.

Fazemos o percurso pequeno do jardim da frente até o portão da minha casa de mãos dadas, o que me arrepia até as raízes dos cabelos.

– Oi Bianca, chegamos.

– Oi Helena. – ela olha em meus olhos e na mesma hora percebe que eu tenho alguma coisa para contar. Mas, como há muito tempo somos BFFs, nos comunicamos pelo pensamento. A mensagem foi clara: “conversamos depois”. – Bem, me ajude a arrumar a mesa. Diego sinta-se a vontade.

Ajudo-a a arrumar a mesa, enquanto Diego nos encara, com curiosidade.

Almoçamos em silencio, o clima pesado. Quando terminamos, eu e Diego vamos para a biblioteca e fazemos o dever de casa. Para não falarmos nada, escrevemos nossa conversa em uma folha de papel. Nunca vou perder essa folha.

Diego vai embora às 03h00min, com a promessa de voltar à noite quando eu enviar uma mensagem. Agora é a hora. Tenho que encarar a verdade e contar para Bianca.

– Bianca,…

– É. Precisamos conversar. – ela completa. – O que você fez dessa vez? – Seus olhos estão marejados, ela sabe que aí vem bomba. E isso torna tudo mais difícil.

– Não… Não cumpri com a promessa. Atila aquele garoto de ontem, berrou que queria terminar o que começou ontem, aí Diego tentou brigar no meu lugar e eu tive que me meter. Não podia deixar ele à mercê do Atila! – nesse ponto eu já estou desesperada.

– Sempre vai ter uma desculpa, não é? Nunca vai parar, você vai encontrar uma alternativa sempre? – Parece mais uma afirmativa do que uma pergunta.

– Eu… Não.

– Sabe o que você disse ontem? A mesma coisa. Exatamente a mesma coisa!

– Por favor, me perdoa…

– Não. – Ela estava chorando! Meu Deus, eu sou mesmo um monstro!

Eu podia ser qualquer outra coisa, uma flor, um pássaro, um tigre... Mas eu tinha que ser uma pessoa. Podia ser qualquer coisa, dês de que não tivesse capacidade de fazer isso que eu fiz. Sou um monstro. Com esse pensamento, mordo o lábio para não chorar. Não sendo eu a errada.

– Até que eu tenha razão para te desculpar e você prove que posso confiar em você, não vou desculpar. – lágrimas escorriam livres pelo rosto dela! Nunca fiz nada tão ruim na minha vida. – Sai. Por favor, Helena, sai. Saio do cômodo e subo correndo as escadas para meu quarto. Não tenho coragem de ligar para Diego ou sequer mandar uma mensagem. Não quero que ele perceba o monstro que eu realmente sou.

Pego meu Ipod, meu fone, meu ursinho de pelúcia, Fofinho, e meu livro e pulo a janela do quarto.

Caio no chão com força e ralo o joelho, mas isso não tem importância. Subo a árvore e ponho fone no ouvido. Dou play em “Warum”? Da banda Juli. Gosto de músicas em alemão.

Abraço Fofinho (meu carneiriho de pelúcia e companheiro de aventuras dêsde sempre), fecho os olhos e choro pela minha grande burrice. Ainda não acredito que fiz isso.


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