― IV ―

Piper

Tudo acontecia rápido demais! Piper mal vira os monstros até que o acampamento fora sitiado. Quando viu Percy ferido ouviu um grito de fúria conhecido. Era sua mãe, Afrodite!

Piper ainda estava processando o que acontecera em seguida: Nico apareceu; um som terrivelmente agudo e triste; os monstros caindo mortos; Annabeth estática; uma parede de sombras encobrindo Nico e Percy; essas mesmas sombras se dispersando e revelando um Percy curado e rejuvenescido deitado sob os braços de Nico; uma discussão e... uma profecia.

Piper ouviu Thalia dando ordens à alguns filhos de Apolo para que levassem Rachel até a enfermaria para descansar e para alguns filhos de Ares para cobrirem a cabeça de Quíron e preparar o devido funeral. Nico levantou-se segurando Percy, mas mesmo Percy perdendo alguns centímetros por ter rejuvenescido o filho de Hades ainda era menor que ele e mais fraco fisicamente, então Clarisse ajudou a carregá-lo até a enfermaria. Annabeth fez menção em impedir Nico, mas Jason a impediu postando-se diante dela.

― Você fica! ― Ordenou o filho de Júpiter. ― Parece que temos muito o que conversar!

― Não tenho nada para falar com vocês! Não vou deixar meu marido aos cuidados daquele moleque! ― Annabeth contornou Jason e já ia seguindo para a enfermaria a passos largos, o filho de Júpiter a segurou pelo braço.

― Já disse que você fica! ― Annabeth virou a mão para esbofeteá-lo, mas Piper a interceptou no meio do caminho. A filha de Atena a encarou incrédula.

― Até você Pipes?

― Essa conversa diz respeito à somente alguns de nós. Vamos conversar em um lugar mais reservado! ― Piper colocou charme nas palavras. Os conduziu até a sala privativa que Quíron costumava usar como escritório, para receber os novos semideuses e orientá-los quanto as normas do acampamento e coisas assim.

Ah Quíron... Piper lembrou-se da cena horrível da cabeça do centauro rolando de dentro do saco de couro trazido por Horcos.

― Você vai confessar ou vou ter que contar tudo eu mesma? ― Interrogou Thalia friamente depois de entrarem todos na sala e Piper fechar a porta.

― Não tenho o que confessar! Tudo o que aconteceu foi um acidente! ― Defendeu-se a filha de Atena.

― Acidente?! Então foi um acidente você se deixar levar pelos servos de Gaia? Foi um acidente o acordo que você fez com os gigantes? Foi um...

― VOCÊ NÃO ENTENDE! ― Bradou Annabeth interrompendo Thalia. ― Você não sabe nada sobre as coisas que estavam para acontecer!

― Não, mas Nêmesis sabe! Houve uma reunião no Olimpo e eu, como Comandante das Caçadoras, estive presente ao lado de Lady Ártemis! Nêmesis apareceu e nos contou como você estava se organizando com os gigantes para devolver a Atena o poder que ela possuía antes de Roma! Você queria a destruição da legião e se prontificou a entregar a vida de um romano para despertar Gaia! Você roubou o graveto de Frank quando ele e Leo foram lhe resgatar achando que você estava em perigo, para usá-lo como sacrifício! Afinal o sangue é a energia vital que Gaia precisava e o graveto do Frank fazia muito bem esse papel, não é mesmo? Contudo os gigantes enganaram você e levaram Leo para o altar do sacrifício também!

― Você não sabe como é ter Atena como mãe! ― Disparou Annabeth agora em lágrimas. ― Em sua forma romana ela estava enlouquecendo! Jamais venceríamos os gigantes sem minha mãe sã! E a única forma de devolvê-la a sanidade era acabar com a legião romana! Eles a desonraram! A trocaram por Belona! Minha mãe sempre foi o pilar das vitórias de todas as guerras, sem ela todos morreríamos!

― Nico estava levando a Atena Partenos de volta aos gregos! Era só questão de tempo para Atena recobrar a sanidade ao se sentir importante novamente. ― Manifestou-se Jason. Piper estava ao seu lado sem acreditar nas coisas que ouvia. Ainda tinha pesadelos com tudo aquilo que aconteceu naquele dia.

― Eu não confiava nele! Eu não confio nele! Não tenho de me explicar a nenhum de vocês! ― Ralhou Annabeth em fúria.

― Perdoem-me, não posso ouvir mais! ― Lágrimas vinham a filha de Afrodite que correu até a porta.

― Onde vai McLean? ― Inquiriu Jason. Nem sequer meu nome ele pronuncia mais.

― Fazer algo que eu deveria ter feito há muito tempo, Jason... ― Piper encarou por um momento os profundos olhos azuis do Filho de Júpiter. Um dia eu fui capaz de lê-los, um dia eu fui realmente feliz.

Sem esperar mais nada Piper saiu correndo dali. Passou em frente a um grande espelho adornado com flores de bronze celestial e encarou aquilo que ele refletia, a típica filha de Afrodite que Piper sempre odiara: cabelos tingidos e desgastados com todo o tipo de química; maquiagem para disfarçar o efeito dos anos, mesmo não tendo nem chegado aos trinta ainda; roupas de grife impecáveis;

Piper deixou as lágrimas caírem borrando a maquiagem e o rímel, seus olhos ficaram envoltos em tinta preta. Soltou o cabelo bagunçando-o com raiva. Quebrou com os dentes metade das suas unhas perfeitamente pintadas e com elas arrancou os babados de seu vestido. Chutou seus sapatos rosas de salto caríssimos para o lado e sentiu o chão frio nos pés. Encarou a mulher enlouquecida e amargurada que a encarava de volta refletida no espelho. Como... Como pude me deixar levar tanto assim pela minha mãe?

Num grito sufocante de culpa, dor, ira e alívio, a filha de Afrodite quebrou o espelho ao bater com força sua cabeça nele e sentiu os cacos caindo e arranhando sua pele perfeita. Ficou parada rindo da própria dor até sentir o cheiro de rosas e uma mão leve em seu ombro.

― Ah meu bem, o que foi que eu fiz com você?

A voz era doce e Piper contemplou pelos cacos no chão uma mulher esguia num vestido grego branco.

― Ma... mãe? É vo... você?

Quando Piper virou-se Afrodite a puxou para si em um abraço forte. Estava trêmula como Piper nunca a vira antes.

― Perdoe sua mãe minha filha, ela está enlouquecendo. Cada dia que passa os deuses se desesperam ainda mais! Demos poder demais aos mortais e agora estamos pagando o preço. Estamos sendo esquecidos... ― A voz da deusa estava embargada como se fosse desaparecer a qualquer momento. ― Sei que pretende se desculpar por tudo o que provocou. Tome isto. ― Afrodite entregou-lhe um frasco transparente com um líquido azul. ― Ponha na bebida de Percy para quebrar o efeito daquela última.

Afrodite dera a Piper uma poção do amor uma vez, ela usou em Percy quando este cogitou em desistir do casamento com Annie. Se essa agora cortaria o efeito, então estaria fazendo um bem...

A deusa desapareceu deixando a filha ali parada com o frasco em mãos. Piper virou-se e assustou-se ao ver que o espelho estava intacto e o bronze polido como nunca! No reflexo viu seu cabelo cortado irregularmente com pequenas tranças como costumava usar há dez anos atrás, uma blusa branca que dizia com letras bordadas em tons de rosa: “Love Rules!”. Estava com uma bermuda jeans surrada e uma sandália grega simples. É hora de fazer o que é certo!

Escondeu o frasco no bolso da bermuda e correu até a enfermaria que estava tragicamente lotada por conta do ataque das hordas de Éris trazidas por Horcos. Procurou o leito de Percy, mas não encontrou.

― Com licença, você sabe onde está Percy? ― Perguntou para uma filha de Apolo que estava cuidando dos feridos.

― O pequenininho de preto falou que aqui estava cheio demais e que Percy precisava de ar e muita água, então levaram ele para o chalé três.

Piper agradeceu e se dirigiu até o chalé de Poseidon. Era fim de tarde e encontrou a porta entreaberta. Se aproximou devagar quando começou a ouvir uma melodia suave ritmada pelas cordas de algum instrumento antigo e uma voz carregada de emoção cantava baixinho:

Antes de você... meu mundo era pequeno... diferente

Agora meus pensamentos... se perdem... em sua frente

Sois o herói da canção... que... me apareceu

Roubastes meu coração... agora... ele é seu

Cada palavra fazia o coração de Piper se apertar. Era exatamente como ela se sentia em relação à Jason. Lágrimas irrompiam de seus olhos, mas ela tinha de fazê-lo, então entrou. Viu Percy deitado confortavelmente em uma cama com lençóis azuis e brancos e uma figura de cabelos pretos vestindo roupas de mesma cor, de costas para a porta mexendo nas cordas de uma lira fazendo soar aquele doce som e cantando pausadamente acompanhando o ritmo do ressoar das cordas do instrumento:

Invades meus sonhos... na noite... sob o céu estrelado

A luz nos meus olhos... um açoite... eu sonho acordado

A morte... a me acompanhar... com grande fervor...

Oh eu sei... não devo confiar... nos deuses do amor...

O cantor pareceu perceber a presença de Piper e parou. Ele levantou-se, era Nico parado com uma feição inquisidora.

― Nico... Posso falar com você... um instante? ― A voz de Piper estava embargada pela emoção.

― Estou ouvindo. ― Falou o filho de Hades com a voz calma em um tom que era quase um sussurro. ― Só não fale muito alto, ele precisa dormir mais um pouco.

― Jason e Thalia estão agora interrogando Annabeth pelo o que aconteceu nas terras ancestrais. ― Piper mal conseguia encarar Nico nos olhos. ― E... Eu gostaria de confessar meus crimes para você.

― E por que para mim? ― Nico estava um pouco confuso e indicou uma cadeira para Piper se sentar, ele sentou-se num banco que surgira em sombras de repente que era quase um trono.

― Por que foi você minha vítima. ― Piper respirou fundo e Nico fez um aceno com a cabeça pedindo a ela para continuar. ― Ah eu juro que não sabia no começo, achei que estava ajudando Percy... e Annabeth. Não sabia que estava te prejudicando, não da primeira vez...

Nico parecia ouvir a tudo muito calmo. Como pode parecer tão calmo? Eu em seu lugar já estaria me atacando! Mas a calma de Nico era bem-vinda pois, desse modo, Piper podia desabafar sem medo de represálias.

― No começo minha mãe me manipulou um pouco, quando Annabeth estava naquele estado... Fui eu quem disse a Percy para te procurar. Eu pensava que você... amava... Annabeth e faria de tudo para salvá-la. E...

― Não precisa pesar as palavras. ― Cortou o filho de Hades. ― Não a interromperei até terminar, mas por favor, fale de modo direto. Sem falsas cortesias.

Piper contou tudo à Nico. Contou como sugeriu que Percy invocasse Afrodite, contou como Percy pensou em adiar o casamento quando descobriu que Annabeth sabia sobre o segredo do filho de Hades, contou como ajudou Annabeth a usar uma poção dada por Afrodite para fazer Percy não desistir do casamento. Enfim, contou tudo e no final mal conseguia olhar Nico nos olhos. O filho de Hades percebendo que ela havia acabado o discurso começou o seu:

― Sua mãe me procurou antes de Percy a invocar. Ela me alertou que ele trocaria a própria vida para salvar Annabeth, então ela me propôs um acordo. ― Piper pareceu perder o chão naquele momento. ― Ela queria que eu abrisse mão do meu amor e das lembranças que eu tinha dele. Pode parecer um bom negócio, se livrar das coisas que nos fazem sofrer, mas não é Piper. Todo aquele sofrimento que eu sentia era ruim, sim, mas era a única coisa que eu podia ter dele. Era o sentido da minha vida. Eu então a fiz jurar pelo Estige que Percy não se machucaria com seja lá o que adviesse do nosso acordo e o aceitei. Fui levado para muito longe pelas sombras em uma missão. Quando completei a primeira parte fui enviado de volta. Percy havia me convidado para ser padrinho do casamento e, devido ao acordo com sua mãe, eu não me lembrava. Achei que o casamento era o seu com Jason. ― Piper sentiu uma pontada no coração naquele momento. Será que eu e Jason poderíamos ter nos casado? ― Naquele dia eu comecei a me apaixonar novamente por Percy e temi que isso pudesse quebrar o acordo, então fugi para muito longe e lá permaneci até que o acordo foi quebrado, por parte da sua mãe. E quanto a poção, bom, eu já a removi do sangue dele. Eu não sei qual era a sua intenção em me contar, mas saiba que não guardo rancor nenhum por você Piper, eu sei como os deuses do amor podem ser desleais.

Oh eu sei... não devo confiar... nos deuses do amor... Lembrou-se Piper do último verso da canção que Nico estava cantando. Era aliviante saber que Nico não se ressentia dela.

― Você tinha uma poção para anulá-la? ― Perguntou agora mais leve.

― Uma poção para anulá-la seria perigoso. Ele poderia perder a capacidade de amar e... Eu sei como é ruim não conseguir amar, mesmo nos fazendo sofrer o amor é algo... precioso. Não sabe o medo terrível que senti quando achei que não iria conseguir salvá-lo!

― Pensei que não temesse nada Rei Fantasma! ― Declarou Piper de pé fazendo uma mesura para abraçar Nico. ― Paz então?

― Só tememos por aquilo que amamos Piper, quem nada teme é porque nada ama. ― Nico retribuiu o abraço. ― Paz, sim, isso soa bem.

Piper deixou Nico sozinho cuidando de Percy. Ela só desejava ter alguém que a amasse como Nico amava o filho de Poseidon. Tirara um peso enorme das costas ao contar tudo para o Rei Fantasma e ficou pensando no que ele dissera sobre como aquela poção poderia fazer Percy perder a capacidade de amar. Piper pegou a poção segurando-a firmemente.

Nico é muito mais forte do que eu! Não quero mais pensar em Jason, vivendo arrependida pelo resto da minha vida. Uma vida sem amor não pode ser assim tão terrível, e se for... Não é nada que eu não mereça!

Piper estava perto do lago, longe de todos. Olhou seu reflexo nas águas por um momento e sentou-se escorando as costas numa grande árvore. Refletiu por algumas horas, pensando, avaliando... Destampou o frasco e bebeu aquele líquido azul até a última gota.

Nada parecia estar acontecendo, então levantou se perguntando se já estava feito. Já era tarde e a lua brilhava cheia no céu.

Não, eu ainda amo Jason. Não está funcionando...

Quando começou a andar para voltar ao seu chalé um formigamento no peito a fez parar. Sentiu sede, não conseguia respirar. Ficou tonta e gritou de dor, seu coração parecia estar sendo arrancado. De repente não sentiu mais nada. Ouviu um bater de asas tranquilizante e caiu.

Ah Jason, eu ainda o amo... pensou Piper um segundo antes de morrer.