Cursed escrita por Ariela Bernardes


Capítulo 1
Capítulo 1




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Eram 6h30 da manhã. O sol tentando entrar pela janela do meu quarto me cegou por alguns segundos quando abri as cortinas. Senti uma brisa quente bater de frente comigo quando, ainda com o corpo mole, olhei na rua. Era primavera, mas quem se importava com isso além de mim?
Amontoei meus cobertores no vácuo entre minha cama e a parede rosa antes de me colocar de pé e procurar por meus chinelos. Esfreguei mais uma vez os pulsos nos olhos e amarrei meu cabelo loiro, armado, em um rabo de cavalo que surpreendentemente fez minha cabeça ficar pesada.
Me dirigi ao banheiro ainda calada me trancando lá por alguns minutos enquanto escovei os dentes e desembaracei minhas mechas, que mais se pareciam com um ninho.
- Já ia chamar você, Eliza. Pensei que perderia aula - ouvi Bruce, meu pai, dizer quando, enfim, deixei o banheiro.
Ele estava em pé ao lado da minha cama com as mãos no bolso de seu jeans desbotado.
- Já disse pra você não entrar no meu quarto sem antes bater. Isso é invasão de privacidade, por mais que você seja meu pai e já tenha dado banho em mim. As coisas mudam, sabia? - murmurei apontando para a porta sem nenhuma dose de simpatia.
Eu estava irritada, mas não sabia bem o porque.
- Tudo bem. Acordou de mau humor hoje, como sempre - respondeu ele, levemente sarcástico, ao se dirigir para a porta e bate-la atrás de suas costas.
Éramos apenas eu e ele ali. Minha mãe, a qual meu pai nunca me disse o nome pois não gostava de falar sobre a pessoa que um dia amara e do nada o abandonou com uma criança de colo, nunca havia sequer dado notícias, mas isso não me feria muito, talvez um pouco (onde meu consciente não era capaz de localizar), já que eu, aos meus 18 anos, formulei meu próprio conceito de sobrevivência: não sentir algo por quem nunca demonstrou nada por você; e esse parecia ser o caso de minha mãe.
Troquei a regata do meu pijama por uma camiseta lisa e branca. Meus shorts foram trocados pelo meu jeans mais velho - e também meu favorito; e por fim vesti um moletom vermelho bem folgado com a singla "U.S.A." estampada na frente.
Desci até a cozinha onde meu pai comia, com a maior paciência do mundo, ovos mexidos acompanhados de suco de laranja:
- Me desculpa por ter sido bruta com você. Não queria, mas você me deu motivos - abri um sorriso torto a ele enquanto fiz um gesto mostrando que havia algo em seu bigode.
- Não me importo mais com isso, Lizie - disse ele, engolindo a última garfada de ovos enquanto me chamava pelo meu apelido. - Você é uma adolescente bipolar, talvez porque esteja usando drogas escondido de seu pai coroa. Posso te levar ao psiquiatra ou à reabilitação agora mesmo, se confirmar minhas suspeitas - continuou soltando uma breve risadinha ao colocar seu prato e o copo dentro da pia.
Não respondi, apenas lhe retornei um olhar dizendo que a piada não teve sentido e muito menos graça.
Não demorou muito até que eu me desse conta da hora. Já eram 6h52.
- Preciso ir! - falei tomando o último gole do meu leite com achocolatado enquanto roubava biscoitos açucarados do 'pote de sobremesa' - eu só podia comê-los depois depois do jantar, regra proposta por meu pai mas que eu não dava muita importância.
- Me dá uma carona? Preciso abrir a loja hoje, Emma pediu folga - falou ele vestindo sua jaqueta marrom enquanto eu pegava as chaves do meu carro.
Fiz que sim com a cabeça, evitando falar com a boca cheia.
Enquanto ele trancava a casa e verificava (inúmeras vezes) se tudo estava fechado e seguro, segui até a garagem onde tirei o automóvel - um Ford Scape 2009 prateado.
Aquele era o presente mais caro que meu pai já havia me dado. Ele nunca me disse, mas eu tinha a sã consciência de que ele guardara dinheiro por alguns anos para me dá-lo quando completei 17 anos de idade - há pouco mais de um ano.
Esperei Bruce chegar, o que não demorou muito, e se ajeitar no banco de passageiro antes de dar partida.
Morávamos em Santa Mônica, Califórnia, desde que eu me entendia por gente. Não era uma grande cidade, mas por ser perto de Los Angeles, atraia turistas anualmente no verão que contaminavam nossas praias com suas enormes bundas.
- Sabe por que Emma pediu folga? - perguntei.
Emma era minha madrinha - solteirona divorciada, mas bonita; e amiga de Bruce desde a infância.
- Não sei. Disse que precisava ir visitar alguém - respondeu meu pai.
Eu sempre quis que eles ficassem juntos. Emma era como uma mãe que eu nunca tive e, por mais que escondessem, eles sentiam algo em especial um pelo outro. Era visível.
Da nossa casa até a loja de meu pai não era muito longe. Apenas algumas casas e uns restaurantes orgâncos de distância.
Estacionei em frente ao nosso ponto comercial. As letras acima da porta 'CAFÉ CLAIREWOOD' ainda acesas.
- Bom primeiro dia de aula - disse Bruce me puxando para dar um beijo em minha testa.
Ele era um bom pai, mas com um problema: superprotetor a ponto de irritar.
- Pode me trazer um bolinho daqueles que a Emma faz? - perguntei antes dele descer do carro. - Por favor! - insisti.
Bruce fez que sim com a cabeça e foi em direção à porta de entrada para abri-la.
Lá tínhamos desde lanches naturais ou super gordurosos, os apelidados 'combos de calorias', bolinhos deliciosos feitos por Emma e um simples leite com café, até um bom lugar para quem quisesse sossego para ler. Era um café, mas eu e meu pai preferíamos chamar de loja.
Não demorou muito e Bruce voltou com o bolinho. Era de chocolate, coberto por chantilly e com uma cereja em cima. Meu predileto.
Agradeci antes de dar a primeira mordida e voltei a guiar meu carro em rua reta.
Meu colégio, o Kings, ficava há exatamente 14 quadras dali, virando à esquerda.

Estacionei meu carro na primeira vaga que encontrei. Lambi os dedos e me olhei pelo retrovisor duas vezes para ter certeza de que não haviam vestígios de chantilly em mim. Agarrei minha mochila que já estava lá desde o dia anterior em um dos bancos traseiros. Ativei o alarme do meu Ford e enfiei suas chaves em um dos bolsos de trás da minha calça.
- LIZIE! - escutei uma voz aguda me chamar antes mesmo que eu completasse dois passos dados.
Era Madison, minha única e melhor amiga. Levei alguns segundos para acha-la, algo não muito difícil para quem procura uma garota baixinha, ruiva e com sardas no nariz.
Esperei uma picape passar para atravessar a rua e ir ao seu para nos abraçarmos. Ela estava junto de Aidan.
- Ei, o que ficou fazendo durante todas as férias, loirinha? - perguntou Madison, colocando uma mecha de seu cabelo vermelho fogo, naturalmente liso e invejável, atrás da orelha.
- Tirando a parte de que eu terminei de ler umas quatro trilogias, me empanturrei de chocolate e fiquei navegando na internet até de madrugada? Hummm... Cuidei da loja pro meu pai, e o melhor: dormi. - Madison riu.
- Pensei que só minhas férias tivessem sido chatas, mas as suas superaram expectativas - disse Aidan me olhando com um sorrisinho enquanto simulava aplausos. Seu cabelo curto, estilo militar, e seu rosto redondo enfeitado por olhos esticados, herança de seus avós paternos chineses, combinavam perfeitamente com seu porte atlético.
Eu já o conhecia há algum tempo, mas não o considerava um amigo pelo fato de: ele só falava comigo quando Madison estava por perto. Talvez por eles terem mais afinidade depois de terem ficado durante quase todo o segundo ano letivo, mas não assumindo um namoro.
- E sua temporada de férias no Brasil? - indaguei à Madison enquanto seguíamos até os portões do colégio deixando, sem perceber, Aidan pra trás com seus amigos fortões.
- Foram boas. Eu e minha família visitamos o Rio de Janeiro e São Paulo, e tirando o ar pesado da poluição, são cidades bonitas - disse ela, agora amarrando seus fios em um rabo de cavalo. Madison não deixava o cabelo parar quieto - Deveria ter ido com a gente. Chamamos você várias vezes, sem contar os SMS que te mandei - completou acertando um soquinho em meu braço.
Soltamos algumas risadas juntas enquanto ela contava os apuros pelos quais tinha passado com sua família no Brasil, por não saberem falar português fluentemente.
Não enrolamos muito, e seguimos direto para nossa sala - 3° ano ao lado do banheiro feminino virando no penúltimo corredor à direita, como foi informado pela direção.
Nos acomodamos na última fila, onde nossos rostos alcançavam perfeitamente a janela. Eu no terceiro lugar e Madie no segundo.
- Olhe aquilo. Algum palpite de quem seja? - sussurrou Madison quando, simultâneamente, olhamos juntas para fora.
Havia um carro preto, meio achatado e de modelo descohecido para mim, estacionado em uma das vagas dos professores.
Fiz que não com a cabeça antes de ajeitar a coluna na cadeira, olhar mais uma vez no veículo que prendera totalmente minha atenção, e focar no Sr. Adamson, mesmo professor de filosofia do ano anterior, que acabara de entrar na sala.
Seu óculos meio amarelado que deixava os seus olhos vesgos enormes, estava na ponta de seu nariz enquanto ele, tão alto e desengonçado, girava a maçaneta da porta para fechá-la. No mesmo décimo de segundo uma força oposta a abriu:
- Com licença, senhor - disse um garoto de olhos esverdiados, cabelo castanho escuro e meio arrepiado, de bochechas vermelhas, levemente rosadas, e feições sobrenaturalmente belas realçadas pelo azul claro de sua camiseta, enquanto empurrou a porta graciosamente para entrar. Era um dos poucos alunos novos do colégio.
- Toda! - disse Adamson olhando para ele com a cara de quem queria lhe meter a mão na orelha.
Adamson odiava alunos atrasados.
Acompanhei o garoto com os olhos até que ele puxasse a cadeira da última mesa na primeira fila. Ele, agora perdendo o tom rosado das bochechas, ficou pálido, cercado por tantos olhos curiosos.
Suas mãos ficaram inquietas sobre a mesa, variando de sua coxa, onde secava o suór delas em sua calça, entre sua boca, onde roeu as unhas pelos 40 minutos que ainda sobravam da aula.
Não consegui tirar os olhos dele por mais nem um segundo. Seu rosto me era familiar, mas eu nunca havia visto ele na vida.
O sinal tocou e, como era o primeiro dia de aula e nem mesmo os professores estavam conseguindo se organizar, eu e Madison saímos da sala.
Olhei mais uma vez para o garoto e ele estava com os olhos voltados para o chão, branco feito as paredes sem tinta em sua volta.
- Viu aquele garoto? - disse Madison, boquiaberta. - Ai meu Deus, ele é um gato - continuou.
- Tem certeza que nunca o vimos antes? - indaguei enquanto seguíamos até o bebedouro.
Minha garganta estava seca.
- Eu posso garantir que não - respondeu Madison jogando seu cabelo para trás impedindo que ele se molhasse enquanto nos abaixamos para beber água.
Madison estava disposta a saber mais sobre o garoto, então procurou a única pessoa no colégio capaz de saber tudo, ou quase, sobre o tal: Trisha.
Trisha era aluna e editora do jornal escolar - uma publicação idiota com avisos, notícias e fotos envolvendo o colégio que era preservada há alguns anos em exemplares mensais; e apenas ela poderia dizer algo a mais sobre o garoto por ter contato direto com os professores.
- Tris! Ei, ei... - gritou Madison quando viu Trisha na porta da secretaria. - Você sabe alguma coisa sobre aquele aluno novo, o gato de olhos verdes? - continuou aos sussurros.
Trisha abriu um sorrisinho. Ela tinha o cabelo preto e curto, acima do ombro, escorrido. Bastava um simples movimento e todas os fios se mexiam.
- Você não é a primeira que me pergunta isso, sabia? - sussurou Trisha de volta, sorrindo - Ele se chama Aaron. Sei que veio com sua família da Europa. Todos são americanos, mas moraram lá por um tempo. Ele tem alguns irmãos, e parece que alguns primos vieram também. São uma família imensa pelo que fiquei sabendo - Trisha deu uma pausa, parecendo ter dado fim ao assunto, mas não: - Estão vendo aquela garota?
Ela mostrou com o nariz uma moça encostada na parede do pátio há alguns metros de nós. Ela tinha o cabelo loiro, quase igual ao meu, se não fosse pelo fato de que o dela era ondulado.
- É uma das irmãs dele, mas ainda não sei o nome. Os outros não vieram porque, segundo o pai deles que esteve aqui hoje de manhã, perderam o vôo. É só isso que eu sei, por enquanto - murmurou pensativa.
Madison franziu a testa, sorriu para Trisha dizendo um 'obrigada' silencioso e me puxou de volta pra sala.
- Ela é loira, e ele é moreno. Como são irmãos? Ah, esquece, isso não é da minha conta - Madie tinha um jeito engraçado de pensar: franzia a testa ao máximo que conseguia e começava a coçar seu queixo.
Não respondi, apenas voltei minha atenção toda para o canto direito da sala quando entramos. Mas Aaron não estava mais lá. Tanto ele quanto seus objetos haviam sumido e a única coisa que restara era o lugar vazio.
- É. Perdemos ele de vista - conclui a Madison.
- Ué, pra onde ele foi? - respondeu Madie coçando a cabeça e olhando pros lados. - Talvez ele tenha ido embora. Viu como ele estava pálido?
- Não, nem percebi - menti. Eu havia visto a palidez de Aaron bem antes que ela.
Preferimos não tocar mais no assunto até o final da aula - que acabou meia hora antes do normal. Animadas pelo último som estridente do alarme, deixamos a sala ajeitando as bolsas em nossas costas e concluimos, sem muito interesse: a irmã de Aaron era mais nova, pelo fato de ter deixado a sala de segundo ano em frente a nossa. Ela tinha olhos grandes, intensamente azuis.
Acompanhei Madison até o portão, onde me despedi dela e a deixei junto de Aidan. Só então segui até meu carro, me acomodei em uma postura torta e olhei pelo retrovisor esquerdo, antes de dar partida, notando uma pessoa com o capuz de um moletom cinza, tapando seu rosto até o nariz, fitada em mim pelo espelho.
Senti um estranho arrepio descer pela minha espinha e engoli em seco quando voltei o olhar para o para-brisa. Olhei de volta para o retrovisor e, sentindo um peso sair de minhas costas, notei que não havia nada lá, além de um casal do primeiro ano dando uns amaços. Fiquei impressionada por um segundo mas logo exclui a imagem da minha mente.
Girei a chave e conduzi meu Ford até a loja de Bruce onde, no caminho, um nome brotou na minha cabeça vazia e passou a ecoar: Aaron.
- O que a moça vai querer hoje? - perguntou meu pai quando cheguei e sentei em um dos altos bancos que ficavam pareados com o balcão.
A loja estava quase cheia, sendo que apenas uma das sete mesas, de dois lugares e de frente para a porta do banheiro, estava desocupada. Era horário de almoço, e o 'CAFÉ CLAIREWOOD' era o lugar preferido para quem quisesse degustar um sanduíche natural rápido e delicioso, algo no qual meu pai mandava muito bem.
- Um refrigerante e um sanduíche de peito de frango, por favor - respondi ouvindo meu estômago roncar.
Eu poderia, sem problemas, entrar na cozinha e preparar o lanche sozinha, mas sempre quando meu pai vestia o avental azul e branco, feito especialmente para nós funcionários - eu, Emma e ele; ele tratava qualquer um que entrasse ali como cliente.
Coloquei minha mochila no chão, cruzei os braços sobre o balcão e olhei para a vidraça esperando meu almoço. No mesmo instante vi Aaron e sua irmã no outro lado da rua.
Ele, com seus músculos não exagerados, mas de um esportista, desenhados sob sua camiseta azulada, parecia discutir com a garota.
Me virei por um instante para abrir a latinha de Coca-Cola que meu pai acabara de colocar no balcão e, quando dirigi minha atenção novamente para a rua, eles haviam desaparecido tão repentinamente quanto surgiram.


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