Por nada termos, faremos tudo escrita por Sayuri


Capítulo 1
Capítulo Único




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Nunca imaginei que um esporte fosse capaz de despertar um espírito de luta e entusiasmo tão forte quanto os que presenciei. Os colegas ao meu redor foram testemunhas, o estádio foi a prova. O dia 5 de maio de 1962 ficou registrado na história do Chile; de que o futebol teve este poder.

Conferi minha aparência no espelho do outro lado da sala mais uma vez. Meus cabelos estavam se rareando nas têmporas e começavam a crescer alguns fios brancos. Meus olhos castanhos estavam com olheiras, indicando a noite mal dormida. Arrumei a minha roupa mais uma vez, há tanto tempo que não a usava que ela parecia mais apertada, principalmente na região da barriga, que crescera nos últimos anos. O relógio marcava 12h17min. Estava apenas com o café da manhã, mas com o estômago tão embrulhado que não conseguia pensar em comida, o mesmo nervosismo e ansiedade também estava estampado no rosto dos meus colegas. Alguns de pé, encarando o vazio. Outros sentados, apoiando os cotovelos nas coxas, com os dedos entrelaçados. Um deles segurava uma fotografia suja como se fosse um amuleto. A pergunta silenciosa pesava sobre os nossos ombros: o que fazíamos ali?

Não que duvidássemos de nosso propósito, não. Era uma honra poder fazer parte daquilo, porém não combinava conosco. Éramos todos trabalhadores braçais: pedreiros, carpinteiros, encanadores. Nossas mãos eram calejadas e nossos rostos estavam precocemente envelhecidos pelo sol. Combinávamos mais com o macacão sujo de barro e cimento que com ternos pretos e sapatos lustrados.

Mais dois homens entraram na sala e reconheci apenas um deles, ele me encarou em silêncio, até levantar sua mão em punho e acenar levemente com a cabeça. Retribui o gesto e outros fizeram o mesmo. Não vacilávamos antes, não vacilaríamosagora.

“Porque nada tenemos, lo haremos todo. ”

.

Viña del Mar, 1960.

O vento frio que balançava os galhos das árvores e derrubava as folhas de outono também fustigava meu rosto. Prelúdio de um inverno triste e sombrio, combinava mais com o meu humor do que o sol brilhando no céu límpido e azul. Tal contraste era a natureza mostrando que estávamos todos à mercê de seus caprichos e vontade. Num instante se mostrava bela e reluzente, no outro, cruel e implacável.

Acelerei meu passo e o balde que carregava começou a respingar. A água gelada parecia se infiltrar pela minha roupa e acabei acelerando mais ainda, o que, por sua vez, fez mais água respingar.

Em casa, coloquei o balde perto do fogão a lenha e estiquei as minhas mãos em direção ao fogo, aproveitando as brasas para me aquecer antes de colocar uma chaleira para ferver. Minha esposa entrou na cozinha logo em seguida, vestindo três blusas de lã, pelo que pude distinguir, mais o cobertor enrolado no seu corpo miúdo. Olhei-a com espanto, era apenas final de maio, o tempo não esfriara tanto assim.

— O que quer que eu faça? A calefação não funciona e não temos água quente!

Eu me aproximei dela, esfregando seus braços antes de abraçá-la.

— Eu sei, querida. Mas não é só isto que deixou seus olhos vermelhos, não é?

Seus lábios finos tremeram e seus olhos negros se encheram d’água.

— O rádio anunciou que o número de mortos já está em 1.600... E se eles estiverem no meio?

Rosa era uma cabeça mais baixa que eu, de modo que beijar os seus cabelos castanhos e lisos no topo da cabeça não era problema algum. Era a única coisa que eu podia fazer para consolá-la.

Uma série de terremotos atingiu o país, principalmente o sul. Os jornais e o rádio o chamaram de Grande Sismo do Chile. Em poucos minutos, vidas foram ceifadas, casas destruídas, houve incêndios por causa da ruptura dos cabos de energia e rompeu-se diversos canos de fornecimento de água.

O primeiro tremor, no sábado, dia 21, atingiu as cidades de Concepción, Los Angeles, Chillán e regiões vizinhas. O segundo aconteceu no dia seguinte e devastou todo o território entre Talca e Chiloé, só não fez mais vítimas porque grande parte da população já tinha evacuado por medo de que as suas casas desabassem por causa dos tremores do dia anterior. Os pais de Rosa e seus irmãos moravam em Valdívia, a cidade mais atingida por este segundo terremoto.

Mesmo estando a mais de 800 km distante do epicentro, também pudemos sentir os efeitos desta catástrofe. A luz elétrica oscilava bastante, todos os telefones foram cortados, o abastecimento de gás foi interrompido, assim como o de água. Era preciso recorrer a poços artesianos ou postos de abastecimentos para pegar uma cota diária de água. Se nós já estávamos neste transtorno, não queria imaginar as condições dos milhões de feridos e desabrigados.

— Vá. Pegue um trem, ônibus ou o que tiver disponível e vá para a Valdívia. Eles precisam de voluntários para ajudar e você precisa encontrar seus pais e saber como eles estão. Se for preciso, traga-os para cá, nós daremos um jeito.

“Nós daremos um jeito...” Eu também queria acreditar nisto. Eu precisava acreditar nisto. Já que aguardava a avaliação final, a decisão se o Chile seria capaz de honrar o compromisso assumido perante a FIFA e sediar a copa mundial ou se desistiríamos do sonho.

Mesmo que prosseguíssemos, seria necessária a remodelação completa do cronograma do Mundial. Valdívia e Talca não seriam mais cidades-sede. A cidade vizinha, Valparaiso, desistiu de sediar, alegando falta de recursos. Com isto, toda a equipe de construção e eu perdemos o emprego. Nossa esperança era que a Copa continuasse e então, pleitear um emprego na ampliação do Estádio Nacional. Com a capital Santiago sendo perto de casa, ainda poderíamos ver nossas famílias nos fins de semana.

Passou-se dez dias desde o Grande Sismo para os jornais estamparem na primeira capa as célebres palavras de Carlos Dittborn, o principal idealizador e organizador da Copa: “Porque nada tenemos, lo haremos todo.” A Braden Copper Company permitiu o uso do seu estádio em Rancagua, a minha cidade, Viña del Mar, e Arica remodelariam suas sedes esportivas para comportar o evento. Além disto, diversas federações de futebol colaboraram e a própria FIFA entregou uma doação de vinte mil dólares para que o evento não fosse cancelado. A Copa Mundial no Chile seria realizada!

.

Arica, 1962.

Quando Carlos Dittborn, em 1956, proferiu sua frase famosa no discurso que deu ao Chile a oportunidade de sediar a Copa, não pensou que ela faria tanto sucesso e se mostrasse tão verdadeira. “Por não termos nada, faremos tudo” virou nosso lema de reconstrução e cartazes foram espalhados por todo o país. A Copa era o que precisávamos para não sucumbir ao desespero da tragédia de dois anos atrás. Infelizmente, Carlos Dittborn não viveu para ver seu sonho acontecer. Vítima de uma pancreatite que culminou num ataque cardíaco, morreu há apenas 32 dias antes da Copa Mundial começar.

Não sei de quem foi a ideia, mas tudo o que enfrentamos não poderia passar batido. Faríamos a nossa homenagem e o mundo perceberia que somos um povo guerreiro. Prestaríamos nossa homenagem às vítimas do terremoto, ao povo chileno por ter encontrado forças entre os escombros para se reerguer, e a Carlos Dittborn por nunca ter desistido.

Minha família estaria entre os espectadores, minha esposa, meus sogros, que passaram a morar conosco, e o mais novo integrante da família, meu filho, Juan. Ele nasceu com os cabelos pretos e enrolados como o meu e com os olhos negros como os da mãe, e faria cinco meses em breve. Felizmente não precisei me mudar, nem ficar longe da minha família, já que consegui um emprego na reforma do centro esportivo da minha própria cidade.

Sei que nem todos aqui tiveram a sorte que eu tive, assim como nem todos foram afetados pelo terremoto. Pablo, por exemplo, morou a vida toda em Arica e não teve nenhum problema diretamente relacionado ao terremoto. Tinha esposa e filhos, o mais velho tinha dez anos e sonhava em ser jogador de futebol, mas antes de completar onze anos, o menino morreu de tuberculose. Pablo sempre levava consigo a foto do filho com o uniforme da seleção chilena, segurando uma bola debaixo do braço.

Outro era Jorge, com 62 anos e que tinha vindo de algum lugar da Europa anos antes, fugindo da guerra. Sua visão não era muito boa, as costas estavam arqueadas pela idade e ele andava muito devagar. Jorge foi voluntário e, embora ajudasse pouco, ele se sentia feliz em colaborar com o que podia, pois dizia que ajudar neste espetáculo lhe fazia esquecer os horrores da guerra.

Alguém tocou meu ombro:

— Marcos, está na hora.

Eu me levantei, dei uma última olhada no espelho e me encaminhei para a saída junto com os outros. Em fila, pegamos um pequeno embrulho negro que nos foi dado e começávamos a andar em direção ao gramado do estádio de Arica, que tinha recebido o nome de Carlos Dittborn e seria palco da partida entre Uruguai e Colômbia. Olhei ao redor admirado, não tinha visto o interior do estádio ainda, visto que só trabalhei no estádio de Sausalito. O estádio não estava cheio e o público era pequeno. Apesar de ser o jogo de estreia, tínhamos a sensação de nos encaminharmos para receber a Taça Jules Rimet. Afinal, independente do resultado do último jogo, já éramos campeões.

Vi câmera em volta do gramado que, pela primeira vez, transmitiriam as partidas ao vivo por todo o Chile. A imagem de milhares de pessoas reunidas vendo o que faríamos fez minhas mãos tremerem e comecei a suar.

Uma fila de homens trajados de ternos pretos, carregando o mesmo embrulho preto, andava paralela à nossa. Todos nos dirigimos à marcação central do campo, nos posicionando em círculo. Alguns se posicionaram no meio do círculo. Todos abrimos nossos embrulhos, um guarda-chuva preto. O guarda-chuva simbolizava nosso pedido para que Deus tardasse a estação chuvosa até a Copa terminar e sua cor, o luto do país. De cima, era possível ver alguns guarda-chuvas brancos em lugares estratégicos, formando uma bola de futebol gigante.

O tempo em Arica, a cidade da eterna primavera, estava agradável e sem nuvens. Mas nada pudemos fazer para impedir a chuva que aconteceu debaixo dos guarda-chuvas e que banhava o rosto de todos ali naquele pequeno círculo.


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