As Seis Cordas escrita por Luamar


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Hey,
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É uma história meio bobinha, o enredo possui certo cenário familiar e se passa aqui no Brasil mesmo.
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Boa leitura a quem vier!
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P.S: O título da história foi retirado do poema, "As seis cordas", de Federico García Lorca, com o qual o conto se inicia. É uma referência ao violão, e nada mais, tipo suicídio...



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Capítulo Único

AS SEIS CORDAS

.

A guitarra

faz soluçar os sonhos.

O soluço das almas perdidas

foge por sua boca redonda.

E, assim como a tarântula,

tece uma grande estrela

para caçar suspiros

que boiam no seu negro

abismo de madeira.

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Leandro passaria boa parte de seu dia a tocar suaves notas no violão. Simplesmente tocando Legião Urbana se ela não o interrompesse. Se ela não o mandasse ficar quieto, calar-se, deitar-se. Dormir.

E então o ambiente se calaria também, porque Leandro nunca a desobedecia e tirava as mãos do instrumento no mesmo instante.

E a cozinha de repente ficava sem som, totalmente estática. Pararia no tempo até que ela voltasse a escutar o leve som do conteúdo fervente na panela.

“Menino insuportável”,pensaria ela. Ditaria e ditaria a si mesma durante toda a tarde em que seu coração, solitário na cozinha, sentiria falta de alguma melodia ou simples companhia em seu solitário trabalho.

Porque era dessa forma que Mariana agia, agiu e agirá provavelmente, até o final de seus dias. Um certo peso na consciência às vezes lhe advertia que, talvez, a intenção do garoto realmente fosse ser agradável. Que, talvez, ele não estivesse tentando e tentando irritá-la do modo mais cretino que pudesse.

Com lindas canções de amores lindos e hipócritas. De pessoas com mentes estreitas. Daqueles sentimentos reais que perneiam todos nossos pensamentos, relacionamentos. Mas que, alguns de nós, fingem ignorar.

Só que isso não era possível, era? Fossem passos do destino ou algo estritamente planejado por mentes malignas, aquele era o filho de sua irmã. Tão ou mais intragável que a mesma. Ela que agora jazia a sete palmos debaixo da terra.

E então Mariana ganhou de brinde um filho bastardo.

(...)

Mariana era casada há treze anos com Ricardo. Ricardo que estava viajando e voltaria amanhã. Ou depois e logo após.

E então sua tarefa hoje seria ir à feira, escolher legumes e verduras. Voltar para casa. Quem sabe antes não passaria ao shopping, comprar um novo vestido.

Só que seus planos apáticos foram interrompidos novamente, pois agora ao seu lado, andava o garoto de quinze anos, de alguma forma querendo auxilia-la com as compras.

Ele era tão malditamente falso que agora, apenas três meses depois da morte da mãe, sorria abertamente para ela.

Ela que nunca lhe abrira um sorriso. Sua face, na realidade, se contraia automaticamente ao vê-lo, embora não fosse algo intencional. Para ele, seu rosto deveria ser uma perpétua careta.

Todavia, lá estavam os dois, andando na feira.

Ela com o rosto retorcido pela indesejada companhia e ele com um sorriso largo. Ela com um vestido bege sem nada marcante. Ele com roupas de skatista. Quase tremia ao perceber que achariam ser seu filho.

— Eu posso escolher os tomates. — ele falou, esperou que ela confirmasse antes de sair na frente. Andava devagar o rapaz, sem pressa para nada.

Ela foi comprar temperos, e a senhora que lhe atendeu comentou com um sorriso pequeno:

— Você tem um belo rapaz.

Belo. Ao que ela simplesmente concordou com um aceno. Apesar de tudo, não era de sua natureza ser grosseira, ou demonstrar não ser uma pessoa agradável para as pessoas de fora.

Seus olhos foram procurar Leandro, e o achou perto de um trio de outros meninos de sua idade, embora esses estivessem com skates. Viu que Leandro a apontou, e desviou o olhar por saber que os garotos a iriam encarar, seguindo a direção da mão de Leandro.

Então pagou e pegou suas compras.

— Obrigada, senhora.

Saiu de leve, procurando entrar num grupo grande de pessoas que passavam, pois iria agora comprar feijão. Precisaria passar por perto de onde Leandro estava, mas não queria que ele a visse e a se pusesse a segui-la novamente.

E ao fazer isso, sumiu em meio a pequena multidão, mas podia ouvir claramente as vozes dos garotos.

— Não se preocupem, eu ‘tô’ bem. — disse Leandro, num tom que transpassava sinceridade.

— Aquela era sua tia mesmo, Leandro? — perguntou outro, que tinha a voz mais grossa, parecendo que deveria ser mais velho que o restante dos meninos. — Parece um pouco com a Tia Nati, mas é muito séria. Quase feia. Mesmo com aquele rosto bonito.

Sua última fala pareceu quase um resmungo, como se aquele fato fosse alguma afronta. Ela achou que Leandro iria simplesmente concordar, pois talvez ela mesma achasse isso. Mas escutou a risada leve dele, antes de sua resposta:

— Não não, ela apenas ainda está meio abalada. É uma pessoa maravilhosa. Tão bonita quanto minha mãe.

“Tão tão bonita quanto Natália”, ela repetia para si, meio desconsertada. Isso verdadeiramente seria verdade na mente de alguém?

(...)

Ricardo voltou três dias após o prometido. Algo de hábito, por isso ela não reclamava. Até porque não havia motivos de desconfianças.

Ela o escolhera com cuidado, e o mesmo pode ser dito em relação a ele. Duas pessoas religiosas, com profundo temor pelos pecados do povo. T r a i ç ã o não era palavra que merecesse sequer ser soletrada debaixo daquele teto.

E ele entrava pela cozinha, a roupa social meio úmida pelo suor, a camisa retirada de dentro da calça.

Ele a cumprimentou primeiro com um sorriso discreto, retirou os sapatos apoiado no batente da porta, por sua idade e condição física não o permitirem mais se abaixar devidamente, e logo após entrou no recinto.

A mão circulando de leve sua cintura, para então dar-lhe um beijo casto nos lábios.

Era tudo de praxe. Porém, honestamente? Por puro e simples desejo dela. E pelo profundo respeito que ele tinha com ela.

Ele era um homem de quase cinquenta anos, enquanto ela agora tinha trinta e três. Por ele, já teria netos, estava velho.

Aquela sua prepotência de antes, que a conquistara nas resoluções firmes, estava muito mais abrandada. Ele queria agora o calor de poder doar um amor puro a alguém. De poder cuidar e ser cuidado.

Ele a puxaria para rede para que ficassem apenas conversando, balançando e balançando com ela deitada em seus braços e ele beijando-lhe delicadamente as mãos, a fronte...

A puxaria, se já não soubesse, por anos e pensamentos que ele mesmo tinha ajudado a firmar, que ela refutaria. Esse tipo de carinho não era o que ela buscava num relacionamento. Era apenas estabilidade, dever.

Dever que ela mesma às vezes lhe pedia desculpas por não poder realizar adequadamente, já que até agora os filhos não vieram.

E seus olhos, antes quase sempre em lágrimas quando esses pedidos viam, utilmente estavam opacos. E ele não cria mais que ela acreditasse em seu próprio pesar. Ela parecia conformada que não teria filhos e às vezes, quase feliz com a ocorrência.

Só que ele engolia essas constatações, pois de fato a amava. Carinhosa e respeitosamente. Embora mal pudesse nomear suas razões para isso.

(...)

Ela observava a interação entre Ricardo e Leandro quase abismada.

Pareciam cúmplices de algo. Um algo que Leandro segredava completamente, sempre arrancando sorrisos serenos de Ricardo.

Ela passava roupa numa tábua de passar. Estava no canto da sala, enquanto Ricardo estava deitado no sofá de frente a televisão e Leandro estivesse sentado no chão, em cima do tapete.

O garoto passava a Ricardo folhas de cadernos as quais o mais velho lia com extremo interesse e mesmo admiração. E assim que terminava, ambos cochichavam a respeito. Leandro parecia extremamente orgulhoso.

A novela, antes quase um ritual, estava lá, totalmente ignorada. Pois ela não conseguia para de observá-los e eles de agirem feito crianças. Até que seu pouco ânimo lhe abandonou e ela ordenou com a voz firme:

— É melhor você ir dormir, Leandro.

Apenas assim, sem nenhuma explicação a mais. Porém não era necessário, já que o garoto não a questionava. E seu marido não iria também por em dúvida sua palavra, independente do que ela falasse.

Leandro recolheu as folhas, e se levantou, desejando a ambos os tios uma boa noite.

Mariana ainda tinha o olhar desconfiado, de quem não estava contente. Ver folhas de papeis assim a deixava quase, ameaçada.

— O que ele lhe mostrava, Ricardo? — perguntou com uma voz mais branda, parando sua atividade por um momento.

— Nada de relevante, apenas algumas produções artísticas. — disse sorrindo, fazendo um pouco caso que era incomum se ver nele. — O garoto tem uma banda, sabia?

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Não ela não sabia, e nem queria saber. Não queria saber de músicas, ou sequer qualquer tipo de arte que pode ser retratada em letras e palavras.

No entanto, obviamente ela não o impediria de continuar com a ação. Fora criado assim por Natália, e se puxara o gênio da irmã, como aparentemente puxara, não iria parar agora.

E afinal, Ricardo parecia um pouco mais contente. Não ter um filho era um fardo mais pesado do que ela supunha.

Apesar de todo o incômodo, apesar de a ficar relembrando e relembrando daquela que ela preferia nem mais ouvir o nome, o garoto poderia deixar Ricardo mais feliz. Completar o que faltava naquela família. Talvez por ele, ela pudesse tratar melhor o garoto.

Aquilo poderia ser um sinal, uma chance.

Pai, mãe, filho. Uma família completa e perfeita, afinal. Tudo segundo os preceitos de Deus.

(...)

Depois de terem sido tomadas, Mariana pôs em práticas suas resoluções, e o clima estava mais confortável entre ela e o rapaz.

Ela esforçava-se para suavizar a expressão, amenizar o tom da voz.

Tentar bancar a mãe era algo difícil, uma ideia que ela há muito abandonara, e que agora teve de retoma-la a força. Só que Mariana era resoluta. Não havia nada que a fazia voltar atrás depois de aceitar a decisão.

Ela seria então uma rocha firme em seus propósitos. Não à toa que ficou todos esses quinze anos sem falar com a irmã mais velha. Não sem motivo que ainda hoje, essa mesma continua lhe sendo um tabu.

Ricardo não chegou a conhecer Natália.

Mariana e Natália moraram sozinhas durante algum tempo, bem ali, na cidade de Campinas, até que a briga aconteceu e Michelle buscou outro lugar para morar. Seus pais moravam numa cidade muito pequena e no interior, na qual nenhuma das duas chegou a gostar algum dia.

Mas Mariana já tinha visto Leandro e Natália, enquanto passeava pelo shopping. Já encontrara a irmã várias vezes.

Só que Natália e Ricardo nunca se viram não por estratégias mirabolantes de Mariana para evitar o confronto e sim, por uma ordem.

Uma ordem fria e única, proferida por Mariana, a qual Natália nunca desobedeceu, por conta de sua própria mente culpada.

Todavia, embora aparentemente o cenário familiar estivesse se harmonizando lentamente entre Mariana, Leandro e Ricardo, com o passar de dois meses, tudo foi posto em choque novamente.

Mariana era uma mulher que com os anos, tornara-se metódica. Havia privilégios e inibições. O certo e o errado, em linhas que não se misturavam para formarem tons cinzentos.

E por isso, mesmo com o tamanho de sua determinação em encarar Leandro como seu filho, um acontecimento aparentemente foi feito para que ela vacilasse.

Ela já deveria ter desconfiado de seus instintos naquele dia.

Havia lugares que eram errados. Locais pelos quais ela nunca passava. E por detrás do velho shopping, era um deles.

Lá, onde existia uma escadaria de ferro por fora. Um local no qual várias de suas memórias de adolescência adormeciam. Onde ela, comumente, passava horas sozinha ou conversando com a irmã.

Mas seu corpo, naquele dia, a levou até lá. Ela foi ao mesmo shopping a que não tinha mais o costume frequentar, e sua mente foi preenchida por uma forte vontade de observar novamente aquele seu lugar, antes, quase sagrado.

Entretanto, ela percebeu que havia uma movimentação lá em cima. Viu vultos de pernas. Vultos que, lá de baixo, seriam impossíveis de serem vistos completamente por fora da escadaria.

E ela quis saber quem estava lá. Quem mais, nesses tempos, apreciava o local.

Subiu sem fazer muito barulho, apesar dos saltos medianos. E quando finalmente chegou ao topo, lá estavam eles.

Naquela escadaria, aos beijos, como se aquele gesto, daquela forma, não fosse tão condenável. Exatamente do mesmo modo sem inibições, como ela já viu várias vezes Natália fazer.

Leandro e outro garoto, juntos. Céus, agora ela tinha um gay para completar a história.

Só que aquele era seu sobrinho, a quem ela obrigatoriamente teria de criar como a um filho, sem poder ignorá-lo, largá-lo ao vento e deixar que voasse para longe de si.

E seus olhos se encheram de lágrimas. Seus ouvidos não escutaram mais nada. E ela foi descendo as escadas, entrando no shopping pela garagem e indo em direção ao banheiro. Buscando um espaço sozinha para a turbulência que sabia estar por vir.

Ela ignorou a voz do garoto a chamando. Sua vista estava num embaçamento indistinto de contornos. Ela estava sozinha.

E em sua mente, talvez, ela ainda pudesse escutar aquelas vozes roucas a contando sobre um imaginário mundo onde se pudesse ser total, caso ela não conseguisse fechar seu consciente a tempo.

E o que ela deveria fazer? Nada lhe preparou para aquilo. Foram anos e anos de uma forte luta, sendo uma pessoa de bem, juntando-se ao fiel encontro com Deus! E aquele garoto queria lhe dar outro tapa na cara. Bem quando ela achava que uma cruz bem forte protegia seu rosto. Ou que simplesmente não houvesse mais mãos para lhe atacar.

Murmurava a si mesmo que Deus não dava uma cruz pesada a quem não pode suportar.

Deveria rever suas convicções? Deveria voltar a trás com sua palavra de criar o garoto como filho? Pois veja bem, ela montara sua vida em cima de bases sólidas. Seguiria os preceitos de Deus.

Teria agora que enfrentar toda a vergonha que esse menino traria?

Talvez essa fosse a própria risada final de Natália. Ela podia quase ouvir o som divertidamente sarcástico.

Quinze anos atrás Mariana abandonou a irmã. Sem arrependimentos. Largou a roqueira, bissexual e maluca. Insana. Aquela que, mais tarde, se tornou mãe solteira. Pura vergonha.

Ela que lhe atacava e atacava com palavras. Que lhe traiu sua confiança.

Natália tinha coragem de entrar em seu quarto e roubar suas composições.

De acusá-la de fraca por se fechar depois de um terrível caso de amor. Terrível caso de amor no qual essa mesma Natália ajudou a falir.

Não é realmente que culpasse a irmã pelo fim do namoro. Era mais pela falta de compreensão.

A questão é que Mariana sabia ser sempre um gigantesco espaço vazio que nunca conseguiria se contentar com nada.

Aquele mundo inteiro não lhe bastava. E se ela se apegasse a sua essência, nenhum ser humano comum a contentaria. E ela teria de buscar ser inteira sozinha.

As coisas podem ser vaidade. Aquele sentimento de sempre querer ser superior a todos, de se destacar, fazer brilhar. E não compreender que nesse mundo todos somos iguais, afinal.

O medo do que lhe aconteceria quando morresse. Temor de que todas suas lutas fossem em vão ao final do dia. Uma certa fraqueza de encarar um futuro incerto, cheio de obstáculos, que poderia ser apenas ilusório. Um simples castelo de cartas.

Mariana um dia fora uma sonhadora. Aquela que, junto a brilhante irmã mais velha, curtia o som do rock. E ela mesma escrevia suas músicas. E ansiava cantá-las também.

Ela se reconhecia como sendo uma pessoa sensível. Só que mais do que isso, ela queria, desejava, ser reconhecida. Ser, um dia, alguém importante para o mundo. Tornar-se imortal para a humanidade.

Esse era um sonho de muitos, e bem menos que a metade chegavam a realmente cruzar um pedaço do caminho. Raríssimos chagaram ao final.

Mas ela era talentosa, sabia disso. Vez ou outra conseguia que bandas covers de bares cantassem suas músicas. Às vezes ela mesmo subia no palco.

Só que parecia que aquilo não era o bastante. Que não importa o quanto rodasse de bar em bar, não aparecia uma gravadora a chamando. Ou mesmo alguém a convidando, espontaneamente, para subir ao palco, sem que ela antes insistisse. Não quando Natália brilhava mais, isso naturalmente, sem precisar de nada.

Ela sabia sentir inveja da irmã. Era óbvio. Mas ao mesmo tempo, esta era a mesma que mais lhe incentivava. E por isso Mariana tentava amenizar o sentimento e seguir em frente.

Continuar e continuar até seu sonho, sempre tão distante, se realizar.

E então veio Carlos, a segunda pessoa que, naquela época, mais lhe apoiara. Que mais lhe enchia de elogios e tinha paciência para perseguir o sonho junto com ela. O primeiro homem que a olhou, lhe deu valor e foi seu.

E ela era terrivelmente apaixonada por ele. Por seu senso crítico, por sua aparência, por sua história triste, naquela antiga mania que Mariana tinha ir buscar sentir a dor alheia.

Só que o tempo passou, ela não conseguiu nada e o namoro também ficava mais e mais turbulento.

Até o dia em que ela pegou Carlos e Natália se beijando totalmente afobados. A irmã obviamente bêbada, mas ainda sim consciente.

Esse foi o primeiro choque que teve. A traição, de duas pessoas queridas, de uma só vez.

Todavia, esse sentimento de dor não foi nada comparado ao que sentiu depois, quando descobriu que o namorado a traíra muitas vezes antes. Ou quando ouviu todas as palavras sujas e pesadas que ele proferira a seu respeito pelas costas.

Isso a destruiu. Quebrou sua vontade de continuar perseguindo seu sonho de se tornar cantora famosa, ídolo de milhares. Porque, de repente, ela não sentia mais aquele anseio pela humanidade. Aquela vontade de traduzir suas dores. Aquele sentimento de que a humanidade é bela.

E por a ter feito encarar o mundo como ele realmente é, que Mariana ficou raivosa. Por Natália ter gritado em sua face o quanto ela era fraca por desistir de um sonho puramente por conta de ter amado um cafajeste, ao invés te ter tentado a consolar.

Não que mais alguém, fora ela mesma, tenha compreendido isso.

E agora ela teria de se submeter a novos e novos julgamentos e olhares desconfiados. Deveria escolher realmente, sofrer pelo garoto?

(...)

Ela estava ali na plateia. Totalmente contra sua vontade. Desconfortável.

Aquele calor humano tão sufocante para quem fugiu tanto disso que o retirou de si mesma. E sua pele fria agora suava, e ela sentia seu pescoço e costas molhados. Era fedido.

Fedor é uma quebra na perfeição. Denota quase podridão. Ela não deveria estar ali.

Mas estava.

Depois de encarar os acontecimentos, e deixar-se cair em lágrimas como a tanto e tanto tempo não mais fazia, ela decidiu que tinha de continuar. No passado, não tinha reais problemas com a homossexualidade. Talvez devesse trabalhar isso pouco a pouco com o garoto, sem assusta-lo.

Ela agora tinha um dever.

Ricardo, a quem ela não iria esconder o fato, aceitou melhor do que ela supunha. O tempo tinha o modificado a um nível que ela nem saberia medir. Não pareceu contente quando ela disse que deveriam trabalhar juntos para fazer o rapaz voltar ao normal. Porém, também não reclamou. Apenas disse que o garoto a chamaria para que fosse vê-lo cantar e que seria interessante que ela aceitasse.

E aqui ela estava. Pensou em se levantar, ir embora, mas talvez sentindo isso, Ricardo lhe apertou a mão. Ela lhe encarou, apenas para receber um sorriso gentil.

E então, Leandro começou a cantar.

Ela poderia lhe elogiar a voz. Conseguiria fazer isso sem que lhe quebrasse alguma moralidade, mas conforme os versos se forram indo e voz melodiosa fluía, ela reconheceu-se.

Aqueles malditos trechos de música que fazia quando jovem.

Ao seu lado, Ricardo começou a cantar também, demonstrando ter a letra completamente memorizada.

E ela estava atônita, olhos literalmente arregalados. Percebendo ao redor, jovens e mães elogiando a letra. Elogiando o desempenho do rapaz.

Um sentimento quente invadiu seu coração, uma quase euforia, um orgulho. Ao mesmo tempo em que seu coração batia forte, suas mãos tremiam e ela sentia seu corpo suar frio.

No entanto, quando a música acabou e Leandro já deveria entrar com a próxima, ele interrompeu o show e a olhou preocupado.

O garoto achava que, a cantar aquelas músicas, traria, enfim, um sorriso naquele rosto tão cansado.

Para ele, ela era sua musa, sua ‘ídola’, e não haveria compositor-poeta que chegasse aos seus pés. Então pensou na ideia de poder a homenagear, e talvez, se desculpar pelo trabalho que estava dando.

Cantar aqueles versos que gostava por mostrar como havia, naquele mundo, pessoas tão irremediavelmente sinceras. Que podiam amá-lo e sentir toda a dor que ele emanava.

Natália lhe ensinou a amá-la.

A ver Mariana como alguém extremamente especial, mas incrivelmente machucada. E ainda que a perda de sua mãe lhe fosse dolorosa, ele pensava saber que não precisava de luto, e que ela estaria orgulhosa de si agora.

Ele sabia, porque Natália também sabia, que ela estava terrivelmente perdida. Mas ele poderia a ensinar a ser a si mesma novamente, sendo como um filho.

Nada muda mais alguém que um filho, nada. Muito menos um caso de amor mal resolvido.

Todavia, agora ele pensava se suas escolhas foram certas. Cantar aquela música no meio do quintal, quando estivessem sozinhos em casa, talvez tivesse sido uma melhor ideia.

E não tê-la deixada tão estressada por conta de seu namoro com Rafael.

Só que já era tarde para arrependimentos. E ele, tal qual o gênio da mãe, era irreverente. Já havia dado o primeiro passo, e agora não pararia até cair num precipício.

Usando o microfone, falou:

— Queria chamar para cantar aqui em cima, a compositora, minha tia. Quero que todos a salvem com palmas. Você pode trazer ela aqui, tio?

E ela se viu levada por Ricardo, que sorria tão abertamente quanto a muito ela não via. Mas ela não estava o vendo nesse momento. Seus olhos eram palco e platéia.

A ansiedade foi tomando conta de seu corpo ainda mais fortemente. A sensação deleitosa de medo e antecipação de um prazer.

Aquele era um festival de escola, simples, sem nem mesmo possuir a presença de jornalistas.

Só que mais do que fama, o que Mariana conseguiu ali, foi viver.

Na realidade, pode ser que seja possível ainda continuar amando e deixando-se ser humana.

Porque muitas vezes nós somos invisíveis na multidão, e há muitas pessoas horríveis entre nós, mas há também aqueles que nos amam. Muito mais o que pensamos que amamos, e da forma mais pura que podemos conhecer.

(...)

Ela estava agora naquela mesma escadaria. Revendo, naquela rua apagada, Natália correndo enquanto soltava gargalhadas. Aparentemente fugindo de um homem que lhe perseguia com um buque de rosas vermelhas.

Ela ouvia sua irmã o mandar tomar um banho gelado, enquanto subia a escadaria para lhe fazer companhia. Aquela voz rouca de quem gritara muito e muito em algum show, lhe dizendo: “— Sabia que estava aqui, Ma! Que obras primas produziu essa noite?”.

E então Mariana declamaria, cantarolaria. E as duas passariam a madrugada discutindo sobre como Mariana seria famosa e que Natália iria querer ficar no camarim, pegar os rapazes bonitos e comer toda a comida boa.

E apesar de serem lembranças, Mariana sorriu. Havia entendido finalmente, que as pessoas deviam descansar. Natália deveria, pela primeira vez, ter paz no único espaço em que sempre fora atormentada: na mente de sua irmã caçula.

Sentou ali, meio desconfortavelmente, dobrando as pernas de um jeito que apenas uma jovem poderia. Uma jovem que ela, inexplicavelmente, sentiu que ainda era. E toda aquela ferrugem de um corpo gasto pelo passar do vento se esvaneceu.

Descansou o violão ao seu lado. Tirou um pequeno caderno e uma caneta da bolsa e se pôs a fazer aquilo que, negando ou não, sempre lhe completava.

Transformar todo aquele mundo em música.


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Notas finais do capítulo

Então... Não é uma história de romance nem nada...
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Espero que não tenha ficado entediante. Beijos a quem leu e se puderem comentar, agradeço ;)
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Aceito sugestões e críticas sem problemas.