A graça da vida escrita por Isabela Na Janela


Capítulo 2
Decepção


Notas iniciais do capítulo

Agora acho que as coisas vão ficando... boas.



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Cheguei em casa completamente cansada.

Abri os portões e o Antonio, meu cachorro vira lata, veio correndo em minha direção, latindo e pulando em mim. Peguei-o no colo e adentrei.

“E aí, garoto, como foi seu dia?”

Minha mãe estava cochilando no sofá enquanto passava um documentário sobre baleias na TV. Ela sempre fazia isso! Em cima da mesa da cozinha, um bilhetinho: “tem lanche na geladeira”.

Peguei o lanche em uma mão enquanto segurava Antonio em outra e fui para meu quarto, me jogando na cama na primeira oportunidade.

“Então, Antonio, agora terei que encontrar amigos lá no colégio” eu disse. Antonio que era meu verdadeiro psicólogo. “Eu sei, eu sei, vai ser bem difícil. Tenho certeza que não encontrarei, mas terei que me esforçar. Se eu consegui provar pro Klaus que estou certa, será o fim da terapia e das suposições de minha mãe de que sou problemática e depressiva. Já pensou como seria bom?”

Antonio subiu em cima da cama e eu lhe dei um pedaço do meu hambúrguer.

Então, acredito eu, que peguei no sono. Não me lembro de mais nada depois da imagem de meu pequeno cãozinho devorando o pedaço de carne.

Acordei no dia seguinte com a mesma roupa que fui à clínica, só que estava sem meus tênis, e uma coberta me cobria. Supus que foi ação de minha mãe. Olhei para o despertador: eram cinco horas da manhã, uma hora antes de eu precisar levantar. Tentei, mas não consegui pegar no sono de novo. Como odeio quando isso acontece!

Com o tempo sobrando, tomei um banho bem demorado e quente. Penteei meus longos e negros cabelos. Ah, como eu odiava ter cabelos longos! Só os mantinha desse jeito para agradar minha mãe, já que ela os adorava.

Coloquei o uniforme do Colégio Estanislau. Um ridículo uniforme, por sinal. Botei meus tênis all star e voialá, estava pronta.

Pude caminhar calmamente na estrada para a escola. Isso era raro, visto que na maioria das vezes eu acordava atrasada e tinha que ir correndo para lá.

*

Coisas que vocês têm que saber sobre Colégio Estanislau: I- é uma escola enorme. II- é necessário fazer uma prova pra se matricular. Se não for bem na prova, não entra. III- isso não significa que há pessoas inteligentes ali. III- Os garotos de lá são feios e idiotas. IV- é minha escola desde quando eu tinha oito anos.

Ok. Quando a gente entra no ensino médio, acha que vai ser uma espécie de paraíso, com garotos bonitos e pessoas maduras. Mas aí percebemos que é bem pelo contrário. Entretanto, não ache que sou diferente do pessoal. Na verdade, sou bem imatura. Do tipo que desenha os professores, de forma cômica, na última folha do caderno. Do tipo que já jogou a comida do lanche numa menina que me irritava, na hora do recreio. Do tipo que fala “recreio” e não “intervalo”.

Uma coisa que você talvez não saiba sobre mim: eu sou uma peste. Foi o que a professora de literatura disse pra mim. Mas, bom, eu sou mesmo. Gosto de aprontar na escola, de fazer arte. Eu sempre fui uma aluna quieta, comecei com as “travessuras” esse ano, quando entrei no segundo médio e percebi que a escola tava acabando e que eu não tinha aproveitado absolutamente nada do meu tempo de estudante. Foi aí que comecei a pegar peças nos alunos e a fazer bagunça. E ir à diretoria uma vez por semana.

Foi quando minha mãe me levou ao psicólogo pela primeira vez, por achar que eu era uma delinquente. Agora eu estou mais... Sossegada.

Ah, isso me lembra do nosso combinado. Entre o Klaus e eu.

Olhando as pessoas no pátio da escola, consigo ver em suas faces que não passam de adolescentes comuns. Ainda que com gostos diferentes, são todos iguais. A maioria estuda ali há bastante tempo, como eu, então não há muito que procurar.

Tenho a brilhante ideia de ir à biblioteca da escola. Faz tanto tempo que não vou lá... E sempre tem pessoas, no mínimo, cultas.

Bom, aquela é a única biblioteca que não é silenciosa. Sério, a bibliotecário é uma das pessoas mais falantes que conheço e isso é bem irônico. Quando ela não está conversando no telefone ou com os alunos, está mexendo no facebook.

Penso em quase desistir ao olhar àquelas meninas da sétima série com seus livros adolescentes e ridículos. Mas aí, eis que eu o vejo.

Sentado no chão, entre duas prateleiras. Lendo concentrado. Fone no ouvido e óculos de grau. Magricelo, com espinhas e cabelo louro.

Aquele era José Costa.

Breve descrição desse garoto: sempre estudou comigo, até repetir o primeiro ano do médio. Completamente antissocial. Usa calças largas, mochila do nirvana e all star. Não é atraente (caso você pense que só porque ele é louro, é bonito). Sempre riu das minhas piadinhas e uma vez o vi jogando um aviãozinho de papel numa professora.

Se existe alguém interessante naquele lugar, é ele!

Aproximo dele:

“Pois não, que livro é esse?”

Ele tira o fone e ergue a cabeça para olhar pra mim.

“O velho pássaro”

Pense em algo rápido, Maria, pense!

“Hum... Ele é... bom? Uma amiga me indicou e eu to em dúvida se devo lê-lo.” Menti.

“Sim.”

Eu não seria capaz de descrever como aquela resposta saiu seca e fria de sua boca. No entanto, insisti:

“Sabe se aqui tem outro exemplar? Vou ler.”

Ainda sentado, ele retirou o mesmo livro da prateleira que estava encostado e entregou a mim.

“Obrigada” eu disse. Ele pôs o fone e não disse mais nada.

Durante a semana inteira não insisti nele, nem em mais ninguém da escola.

*

E lá estava eu, de novo, terça feira, na sala de espera daquela clínica chique.

“Maria Catari... Ah, aí está você. Entre!” disse Klaus.

Entrei na sala dele. Ele se apressou a colocar a “máquina da sinceridade” em cima de sua escrivaninha.

“Sente-se aqui, por favor.” Puxou uma cadeira e eu sentei-me em frente à máquina.

Permaneci quieta enquanto ele colocava alguns equipamentos em meu braço, grudava uns fios em minha cabeça e amarrava um óculos estranho,que tinha lente vermelha, em cima de meus olhos.

Eu não estava ansiosa, muito menos com medo. Eu tinha relaxado no desafio, sabia o que ia ocorrer.

Ele sentou-se em minha frente, com a máquina sobre a mesa entre nós.

“Então... Antes de tudo, um teste rápido. Quero que minta para mim na pergunta que lhe farei.”

“ok”.

“Maria Catarina, você gosta de seu cachorro Antonio?”

“Não”- respondi um pouco nervosa.

Sem apitar, sem aparecer nada em vermelho, ele podia ver que a máquina mostrou que eu mentia.

“Excelente. Agora, responda a verdade. Você gosta de sua mãe?”

“Sim” E novamente, sem eu compreender como, ele viu que a máquina mostrava que eu dizia a verdade.

Ele pegou uma folha e uma caneta e disse que agora era “pra valer”.

“Maria Catarina, você tentou encontrar algum amigo legal lá na escola?”

“Sim, doutor” Respondi, e ele sorriu.

“Que bom. E você se esforçou para achá-lo?”

Hesitei. Talvez... A máquina poderia dar um defeito. Talvez o universo poderia agir a meu favor naquele momento.

“Sim, doutor.”

Ele olhou para a máquina e sua expressão ficou séria.

“Francamente!”

Começou a tirar grosseiramente os equipamentos de mim.

“Você não está levando isso a sério! Eu disse que as consequências seriam ruins!”.

“Mas eu...”

“Nem pense em me dar desculpas! É bom que se esforce, Maria. Nunca melhorará se não se ajudar!”

Ele estava bem bravo. Passamos o resto da consulta em silêncio total. Eu não pedi desculpas ou prometi que iria mudar. Seria mentira.

No fim da consulta, para minha surpresa, minha mãe tinha ido me buscar. Quando fui a seu encontro ela disse:

“Espera um pouco, Cat. O doutor disse que quer conversar comigo a sós. Só uns minutinhos”.

Confesso que meu coração gelou naquele momento. Quão louco seria o Klaus? O que ele falaria para minha mãe? Foram os dez minutos mais torturantes da minha vida.

Quando saíram da sala dele, minha mãe estava com a expressão um tanto chateada. Olhei para Klaus, suponho eu, com olhar desesperado. Ele me encarou com paciência e disse com um sorriso no rosto e falsa gentileza:

“Bom, Maria Catarina, nos vemos na semana que vêm. Espero que cumpra nosso acordo.”

*

No caminho pra casa, enquanto estava no carro com minha mãe, perguntei:

“Mãe, o que o Klaus disse pra você?”

Ela continuou olhando para frente e suspirou.

“Bom, o doutor Klaus não me disse nenhuma novidade, mas pediu para que ficasse só entre nós dois assuntos como esse.”

“Mas é sobre mim! Eu tenho direito de saber!”

“No entanto...” Ela continuou, ignorando minha indignação “Concordamos que fazer uma surpresa para você não faria mal. E adivinha quem eu chamei pra passar uma semana em casa?” Não, não podia ser ela. Ela não. Não, não! “A sua prima Yasmim! Lembra como vocês brincavam quando eram pequenas? Ela vem pra cá semana que vem.”

Naquele momento eu tive vontade de fazer como nos filmes e gritar “NÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOO”.

Eu não gostava de Yasmim desde quando ela matou meu peixinho dourado, desde quando nasceu seios nela antes de nascer em mim e ela se exibia por isso, desde quando os garotos que eu gostava, gostavam dela. Acima de tudo, eu não gostava dela porque ela era uma garota perfeita.

E então eu me lembrei de ter contado isso para o doutor Klaus em minha segunda consulta. E contei muitas outras coisas também!

Meu Deus! Eu estava mais dependente dele do que imaginava!


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Notas finais do capítulo

Se você leu até aqui, meu muitíssimo obrigada!