A Redoma escrita por Hunter Pri Rosen


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!

Escrevi este devaneio para participar do Desafio da Copa do Nyah!

Há muito tempo esta história estava aqui fervilhando nos meus neurônios, e quando li as regras do desafio, achei que era a oportunidade ideal para soltar a imaginação!

Não tem absolutamente nada a ver com as minhas outras histórias, mas mesmo assim espero que vocês gostem porque eu amei escrever isso!

Boa leitura, sociedade!



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De segunda a sexta-feira, tudo acontecia exatamente igual. Ela chegava em um dos terminais de ônibus da capital paulista e se posicionava no primeiro lugar, da segunda fila, de uma determinada linha. Coincidentemente, a mesma que eu utilizava para ir ao trabalho em um escritório na Avenida Paulista.

Como nos outros dias, naquele ela também chegou já com os fones nos ouvidos. Provavelmente ouvindo suas músicas favoritas ou uma estação qualquer de rádio, sem querer ser incomodada com os sons dos motores das dezenas de coletivos que circulavam entre aquelas movimentadas plataformas. Ou talvez para evitar que alguém a importunasse com conversas desinteressantes sobre o trânsito ou sobre como o transporte em São Paulo deixava a desejar. Talvez ela sentisse que não podia fazer absolutamente nada sobre essas coisas e simplesmente preferia se desligar de tudo isso. Se desligar do mundo, das pessoas, dos problemas.

Como nos outros dias, naquele ela também retirou o celular da bolsa e acessou a internet.

Será que ela estava lendo as últimas notícias? Acessando sua rede social? Checando seus e-mails? Respondendo alguma mensagem? Avisando ao chefe que se atrasaria um pouco?

Bem, do meu lugar na primeira fila, eu não conseguia ver exatamente o que ela estava fazendo, mas uma coisa eu sei: de segunda a sexta-feira, tudo acontecia exatamente igual. Eu entrava no ônibus, e ela ficava para trás, aguardando o próximo coletivo sair. Linda e completamente alheia aos meus olhares sobre ela.

A verdade é que eu morria de vontade de me aproximar e iniciar uma conversa, mas nunca fazia isso porque simplesmente não sabia como. No fundo, eu tinha medo de não saber o que dizer e acabar falando sobre o trânsito ou sobre como o transporte em São Paulo deixava a desejar. Enfim, eu tinha medo de parecer um idiota diante dela e preferia sentir a frustração de vê-la ficando para trás, junto com o terminal, do que me arriscar e dizer qualquer coisa para tirá-la daquela redoma que ela parecia ter construído em volta de si.

Às vezes, eu ficava com tanta raiva de mim e da minha total incapacidade de tomar uma atitude, que tinha vontade de “chutar o balde”, caminhar até ela, arrancar aqueles malditos fones dos seus ouvidos e dizer um simples “Oi!”.

Mas logo depois eu descartava essa ideia porque colocá-la em prática certamente assustaria aquela garota. Mais do que isso. Eu acabaria com qualquer chance de me aproximar dela de verdade. De me aproximar como eu queria me aproximar.

Enquanto o ônibus seguia viagem rumo à estação Paraíso do Metrô, eu prometia para mim que o dia seguinte seria diferente. Que eu tomaria uma atitude. Que tudo seria diferente. Eu jurava para mim que eu iria falar com ela no dia seguinte, mas... No dia seguinte, tudo acontecia exatamente igual.

E foi assim por semanas. Talvez meses. De segunda a sexta-feira, eu a via, a deixava escapar e sofria com isso.

Eu nunca acreditei em amor à primeira vista, mas eu tenho que admitir: aquela garota era diferente. Ela me intrigava, me fascinava, despertava algo em mim que eu não compreendia direito. Eu só sei que era algo muito bom. E eu adorava ficar olhando para ela durante aquele período em que nossas filas estavam lado a lado na plataforma. E a cada vez que eu fazia isso, me sentia ainda mais hipnotizado por aquela garota. Preso na sua teia. Atraído para aquela redoma que a cercava e que a afastava de mim.

Se pelo menos, ela tirasse aqueles fones... Talvez eu tivesse coragem para me aproximar de uma vez.

Eu não sei exatamente o que aconteceu, mas em algum momento eu me cansei de tudo aquilo e resolvi tomar uma atitude. Mesmo que ela achasse que eu era um doido ou um “sem noção”. Eu não me importava mais. Eu precisava falar com ela. Ter a atenção do seu olhar, saber como era o som da sua voz. Eu precisava conhecê-la.

Pensando assim, em uma certa manhã, eu saí da primeira fila, onde eu sempre ficava, e caminhei até a segunda, onde ela sempre estava. Havia três pessoas na minha frente e três pessoas atrás dela. Apenas três pessoas nos separavam. Eu acho que isso foi o mais perto que eu cheguei dela.

E dali eu finalmente consegui entender o que ela tanto via naquele celular. Ela estava lendo algum tipo de história. Pelo visto, ela gostava de baixar livros e ler nas horas vagas. Pelo visto não gostava de carregar livros por aí e preferia ler pelo celular.

De vez em quando, ela interrompia a leitura, acessava as músicas armazenadas no celular, procurava por alguma em específico e depois voltava a ler. E assim ela ficava. Lendo e se mexendo discretamente ao som da música escolhida.

Um dos seus pés se movia de um jeito mais frenético e eu deduzi que ela estava ouvindo algum rock. Daqueles que você simplesmente não consegue ficar parado. Não pude deixar de ficar feliz com isso, já que eu também amo rock.

Sorri levemente. E quando de repente, ela se virou na minha direção, como se tivesse me visto pelo seu campo periférico de visão, eu abaixei a cabeça. Olhei para o lado, tentando disfarçar que eu tinha ficado um tanto constrangido e, me chamem de maluco, mas eu tive a impressão de que ela também sorriu. Talvez a tal redoma não fosse tão impenetrável assim, no final das contas.

Instantes depois, ela se endireitou e eu voltei a fitar as suas costas. Desta vez, ela não me deu qualquer indício de que tinha percebido o meu olhar sobre ela e se manteve firme. Firme, alheia e distante. Talvez a tal redoma fosse mesmo impenetrável.

Comecei a me sentir um idiota de novo e cheguei a pensar que ela estava se divertindo com tudo aquilo.

Os passageiros entraram no primeiro ônibus e logo ele partiu, enquanto eu continuava me sentindo daquele jeito estranho. Me arrependi por não ter entrado naquele ônibus. Além de me atrasar para o trabalho, provavelmente eu não teria coragem para abordar aquela garota. E então, apesar de alguns detalhes diferentes, aquele dia ia acabar do mesmo jeito que os outros.

Imediatamente, afastei esses pensamentos e contive aquela insegurança que eu sempre sentia quando o assunto era aquela garota. Decidi que já que havia me arriscado até ali, eu iria até o fim.

Logo o motorista abriu a porta do ônibus e começamos a entrar. Havia uma certa impaciência nas pessoas atrás de mim e eu percebi que estava andando muito devagar em direção à catraca. Mas também, para que tanta pressa? Elas estavam pegando o ônibus no mesmo horário do dia anterior. O atrasado era eu.

De qualquer forma, achei melhor apressar o passo e logo passei pela catraca. Mas aí, um dilema começou a me atormentar: em que lugar eu me sentaria? Longe ou perto daquela garota? O que eu estava mesmo planejando com tudo isso? Ah... Certo, me aproximar dela. Então, o ideal seria que eu me acomodasse perto dela. E foi o que eu fiz. Sem pensar direito e contendo o nervosismo que me dominava cada vez mais, me aproximei e me sentei no último banco. Ela do lado da janela e eu ao lado dela.

Quando notou minha presença, ela pareceu um pouco nervosa também. Mas eu me convenci de que tinha imaginado isso só para me sentir menos nervoso diante dela.

Não demorou muito e eu comecei a me sentir invisível porque ela simplesmente voltou a mexer no celular e aumentou o volume da música, ignorando completamente a minha presença ali.

Quando o ônibus saiu do terminal, ela havia encostado a cabeça no vidro e olhava fixamente para a tela do aparelho em suas mãos. Seus dedos deslizavam pela tela à medida que a leitura evoluía.

A viagem era longa, o trânsito é um inferno, o transporte em São Paulo deixa muito a desejar e para meu desespero, eu não consegui pensar em absolutamente nada para dizer para aquela garota. Não consegui pensar em nada que pudesse tirá-la daquela redoma que impedia que eu me aproximasse de verdade.

Quando começou a chover, duas coisas passaram pela minha cabeça. Primeiro que o trânsito iria ficar ainda mais caótico por causa daquilo e, portanto, eu iria me atrasar ainda mais. E segundo que aquela chuva era minha culpa. Eu finalmente tomei uma atitude, por menor que fosse, e com isso o céu se fechou naquela manhã.

Eu sei, é uma superstição idiota e sem fundamento, mas mesmo assim, eu não pude deixar de imaginar que se eu resolvesse tentar algo mais ousado, como dizer um simples “Oi” para aquela garota, um grande dilúvio poderia castigar a maior metrópole do país. Talvez um furacão. Ou quem sabe um ciclone extra tropical. E eu seria o grande culpado.

Fechei os meus olhos e apoiei a cabeça no banco. Eu sabia que eu só estava pensando em tudo aquilo porque ainda não tinha tido coragem para abordar a garota ao meu lado. Por isso, achei melhor afastar aqueles pensamentos e me concentrar no que eu tinha me proposto a fazer: tomar a droga de uma atitude!

Pensei em fingir que eu tinha adormecido e deixar minha cabeça cair lentamente sobre o ombro dela. Fiquei tentando adivinhar qual seria a sua reação se eu fizesse aquilo. Provavelmente, ela iria se mexer discretamente, eu iria “acordar” e me desculparia pela gafe. Assim, eu poderia iniciar uma conversa.

Mas e se ela simplesmente me ignorasse? Bem... Neste caso, pelo menos eu poderia me aproveitar um pouco da situação. “Tirar uma casquinha”, como dizem por aí.

Abri os olhos e afastei aquela ideia. Se eu fizesse isso, ela ia pensar que eu era um cafajeste. Melhor não seguir por esse caminho. Mas eu precisava pensar em outra coisa. Urgentemente. Não podia perder aquela oportunidade. Eu tinha dado um passo naquela manhã, por que era tão difícil dar o seguinte?

O ônibus entrou na Avenida Paulista, ainda chovia e, como era de se esperar, o imbecil aqui ainda não sabia o que fazer.

Me senti completamente frustrado quando percebi que estava chegando o meu momento de descer e eu tinha perdido a oportunidade de conhecer a garota dos meus sonhos. Levantei e caminhei em direção à porta com a cabeça baixa.

Numa tentativa de não perder totalmente aquela oportunidade, resolvi olhar para trás e dar uma última olhada para ela. E ao fazer isso, meu coração disparou e meus olhos se encontraram com os dela. Ela estava ali. Bem atrás de mim. Eu não podia acreditar, mas aparentemente, ela iria descer no mesmo ponto que eu.

Ela desviou do meu olhar e o motorista parou o ônibus. Voltei a olhar para frente e a porta se abriu. Comecei a procurar o guarda-chuva dentro da minha mochila e para meu desespero, ele não estava lá.

Ótimo. Além de atrasado, vou chegar “ensopado” no meu trabalho.

Respirei fundo e desci. Ela veio logo atrás, já estava com o seu guarda-chuva em mãos e o abriu rapidamente. Me ultrapassou e caminhou depressa pela calçada.

E foi então que eu finalmente enxerguei uma oportunidade de fazer algo de verdade. Era a desculpa perfeita e, no fim, nem era tão desculpa assim já que eu não podia chegar pingando água no escritório, certo?

Assim, tomado por um impulso e vestindo a minha melhor “cara de pau”, eu corri até ela e pedi:

— Com licença.

Ela não me ouviu. Aqueles malditos fones!

Resolvi tentar de novo e gritei:

— Com licença!

E como mais uma vez, ela não me ouviu, nem sequer notou minha presença ao seu lado, eu resolvi tomar uma atitude drástica que já tinha passado pela minha cabeça algumas vezes, conforme eu disse antes. Arranquei um dos fones do seu ouvido.

Ela gritou assustada e finalmente parou. Me olhou e pareceu me reconhecer do ônibus e do terminal.

— Ai meu Deus! Você vai me assaltar?! Você está me seguindo, é isso?! — deduziu visivelmente apavorada enquanto olhava tudo em volta, talvez procurando por ajuda.

Não aguentei e ri. Simplesmente ri. O que de alguma forma, pareceu fazê-la relaxar um pouco e sair da defensiva. Mas, apesar de mais calma, ela ainda me encarava confusa. Esperando uma explicação para aquele comportamento tão impulsivo e até grosseiro que tinha a surpreendido.

A chuva continuava caindo impiedosamente sobre mim e eu percebi que era hora de me explicar:

— Eu não vou te assaltar, ok? Eu só estava pensando se você poderia... Me dar uma carona no seu guarda-chuva. Se você trabalha por aqui e se não se importar em se atrasar um pouco, é claro.

Ela continuou me encarando. Mas de alguma forma, eu entendi que finalmente tinha conseguido chamar a sua atenção e penetrar aquela redoma que eu sempre via quando olhava para ela. Agora ela estava ali. Diante de mim. De verdade. Olhando nos meus olhos. Finalmente eu tinha a sua atenção.

Não sei quanto tempo se passou, mas em dado momento, ela deu um passo à frente, se aproximando de mim e compartilhou o seu guarda-chuva comigo. Eu sorri e ela perguntou:

— Onde você trabalha?

— Naquele prédio — eu respondi enquanto indicava um enorme edifício espelhado no quarteirão seguinte ao que estávamos.

Ela seguiu o meu dedo e fitou o prédio. Depois voltou-se para mim, sorriu (o que me deixou embasbacado por algum tempo) e disse um tanto incrédula:

— Jura? É engraçado porque eu também trabalho lá.

— Sério? Em qual andar? — eu perguntei interessado e sem acreditar que durante este tempo todo ela sempre esteve ali, bem perto de mim.

— No vigésimo. E você? — ela prosseguiu a conversa e toda a insegurança que eu sentia se dissipou completamente.

— No décimo — eu respondi.

— Que mundo pequeno — ela refletiu.

— Pois é — eu murmurei.

Então nós nos encaramos em silêncio por algum tempo que eu não sei precisar quanto foi. Eu só sei que eu poderia ficar assim para sempre. Apenas contemplando aquele rosto.

No entanto, de repente, ela pareceu ficar sem graça e me chamou para a realidade:

— Vamos?

— Sim, vamos — eu assenti e então começamos a caminhar pela calçada.

O guarda-chuva era um tanto pequeno para nós dois e eu cheguei mais perto dela. Quase sem perceber, e movido por uma grande curiosidade, eu peguei um dos fones que eu tinha retirado do ouvido dela momentos antes e o aproximei da minha orelha. Queria saber o que ela estava ouvindo.

Ela pareceu não se importar com a minha atitude e ainda me ajudou, ajeitando o fone no meu ouvido para que ele não caísse. Sorriu para mim e voltou a olhar para a frente.

— Humm... AC/DC — eu reconheci o som. — Eu gosto.

— Eu amo — ela ressaltou com certa empolgação.

Ficamos em silêncio, apenas caminhando, compartilhando o guarda-chuva e a boa música, até que alcançamos o prédio onde trabalhávamos e paramos perto da entrada. Ela me olhou e pareceu ficar sem graça ao perguntar:

— Qual é o seu nome?

— Miguel — eu respondi. — E o seu?

— Ana — ela se apresentou.

— Pronta para mais um dia de trabalho, Ana? — eu indaguei.

— Na verdade, eu preciso de um café primeiro — ela disse e ficou em silêncio, esperando que eu entendesse o convite.

Mas eu estava impressionado demais por finalmente estarmos ali, diante um do outro e, vejam só, trocando algumas palavras. Quem diria!

— Você gostaria de tomar um café comigo? — ela resolveu perguntar diretamente, já que meu cérebro parecia ter entrado em pane. Junto com o meu coração, aliás.

Eu estava atrasado e sabia que enfrentaria problemas por causa disso. Mas mesmo assim, não consegui resistir e me ouvi respondendo:

— Nada me deixaria mais feliz.

Ela sorriu mais uma vez e, para minha surpresa, me estendeu o seu braço para que eu entrelaçasse com o meu. E foi o que eu fiz.

Nos afastamos do prédio e logo entramos em uma cafeteria próxima dali. Pedimos dois expressos e sentamos em uma das mesas enquanto o trânsito na Avenida Paulista, bem diante de nós, se tornava cada vez mais caótico. Quase surreal. Carros e ônibus em um emaranhado penetrável apenas pelas motos que “brotavam” aos montes sabe-se lá de onde. O som de buzinas se propagando por toda a parte. Uma loucura. A loucura paulistana.

As pessoas andavam apressadas pelas calçadas, com seus guarda-chuvas, disputando espaço e falando alto no celular. Pareciam não notar as presenças umas das outras. Parecia que cada uma delas tinha criado a sua própria redoma e não queria ser importunada por nada ou ninguém. Parecia que elas tinham se desligado do mundo em volta, dos problemas e dos seus semelhantes. Elas apenas seguiam, sempre com pressa, com os olhos abertos, mas sem enxergarem de verdade.

Olhei para a garota na minha frente e quando dei por mim, estava sorrindo feito um bobo para ela. É que eu estava feliz, muito feliz. Não só por ter tomado uma atitude, mas principalmente por ter conseguido penetrar a redoma que ela sustentava até aquela manhã. Mas que agora, misteriosamente, não estava mais lá.

Eu finalmente tinha conseguido, finalmente tinha adentrado o seu pequeno universo. Finalmente via uma chance de fazer parte dele. Finalmente aquele dia não estava sendo exatamente igual aos outros. Finalmente, eu tinha abandonado a minha redoma também e me permitido viver. E não só existir.


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Notas finais do capítulo

Gostaram, meu povo e minha pova?

Querem me fazer happy?

Então, reviews meigas por obséquio!

Bjs!