Skyfall escrita por Camilla Y


Capítulo 1
Capítulo Único




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Ela sentia que era observada.

Era uma sensação que tinha começado de leve, a ponto de ela pensar que era uma impressão errada. Porém, essa sensação vinha crescendo de forma vertiginosa agora.

Ela tinha certeza de que era observada e esse olhar lhe queimava a pele.

Mas de onde vinha esse olhar? A quem pertenceriam esses olhos que, ela estava certa, invadiam-na de modo a fazê-la sentir que sua alma estava sendo desnudada?

Seu nome era Agatha. Tinha 23 anos e uma sede absurda de viver. Ao menos, era assim que seus amigos a descreviam. Agatha era uma mulher forte e decidida. Tinha o hábito de tomar decisões que muitos considerariam absurdas e mergulhava nos resultados sem medo das consequências.

Todos diziam que ela não tinha medo de viver.

Agatha preferia dizer que não tinha medo de ser feliz.

Há quem procure uma vida inteira pela felicidade. E existem aqueles que a acham com facilidade. Segundo Agatha, o que diferencia um caso do outro é o que se procura como objeto de felicidade.

No caso dela, a felicidade estava nas coisas mais simples. A receita para a vida que ela seguia tinha apenas um direcionador: fazer o que se tinha vontade de fazer. Sem medo, sem cautela, sem precauções.

Desse modo, a vida era uma eterna aventura para Agatha. Cada dia era uma surpresa, ela nunca sabia o que lhe esperava, principalmente porque era comum que ela amanhecesse sem ter a menor ideia de onde ela estaria quando o dia terminasse.

De fato, é inebriante... Viver sem nunca saber o que pode ocorrer no instante seguinte é assustador, mas, ao mesmo tempo, faz com que se sinta mais vivo do que nunca.

As pessoas, quando acabavam de conhecer Agatha, repreendiam seu modo de vida. Entretanto, os que conviviam com ela há mais tempo, já tinham passado dessa fase. No final, todos terminavam por perceber que a garota vivia assim porque ela era assim. Agatha era uma pessoa que possuía energia interminável. Ela precisava das novidades, a vida para ela não poderia seguir uma rotina. Aliás, isso parecia incompatível com a personalidade da jovem, sempre tão curiosa, sempre tão inquieta, sempre tão animada diante das mil possibilidades que qualquer situação lhe oferecia.

No entanto, o que cativava a todos que conheciam Agatha não era essa vivacidade tão marcante, mas a maneira como ela lidava com as consequências dos atos tomados. Afinal, uma vida surpreendente leva a isso: surpresas. Boas e ruins.

Diante de boas surpresas, não há o que se discutir. É tudo ótimo. Mas e quando nos vemos diante do inesperado que vem em péssimo momento? Agatha se viu nessa situação por mais de uma vez. Nem sempre tudo dá certo e, para ela, houve momentos em que tudo deu errado. Muito errado.

E esse parecia ser seu ponto forte. Agatha tinha um talento particular para horas assim, em que ela era capaz de tirar algo de muito bom, útil e produtivo dos seus piores momentos. Sua vida algo desmedida a colocava não raras vezes em ocasiões nas quais poucos conseguiriam ver o que fosse de positivo. Entretanto, para ela, essa era a graça do que vivenciava. Era até mesmo um desafio. Parecia inclusive que, nos momentos em que tudo dava errado, Agatha se realizava ainda mais, sentindo prazer de redescobrir outras formas de ser feliz, de encontrar um novo caminho, de sentir-se bem consigo mesma.

Não se pode questionar; a personalidade de Agatha era um grande atrativo. A jovem de aparência comum passaria despercebida por muitos, não fosse esse fogo sempre tão vivo em seus olhos castanhos. Agatha tinha uma chama ardente, permanente, que queimava dentro de si e que era sentida com facilidade por aqueles que a rodeavam. Sua companhia era luminosa e aconchegante; era ter sempre por perto a confortável certeza de que, por pior que tudo pudesse parecer, sempre haveria uma solução, sempre haveria um meio de transformar o que fosse em uma situação a seu favor. É o que Agatha ensinava, sem presunção de querer dar qualquer lição. Todavia, sua mera presença era o bastante. Sentir-se tocado pelo fogo vitalizante de Agatha era o suficiente para fazer as pessoas enxergarem a vida com menos medo e mais ardor, furor, paixão e coragem.

Sim, era dessa forma que Agatha tocava a vida das pessoas. Mas agora era a primeira vez que ela se sentia tocada. Essa sensação de ser observada já a havia dominado, sua curiosidade não se aguentava mais... Contudo, o que ela poderia fazer? A quem recorrer para dar um fim à dúvida de não saber de quem era alvo de tamanha atenção?

Bem, em se tratando de Agatha, não se poderia esperar por uma reação corriqueira ou natural. De seu jeito típico, a garota resolveu confrontar quem fosse, o que quer que fosse.

Era uma manhã de sábado. Como era típico da jovem, ela não tinha absolutamente nada planejado para o dia. Agatha estava a caminho de um parque, com seu violão. Fazia um dia bonito, ela pensou em sentar-se em algum lugar aprazível e tocar, cantar. Talvez ganhasse algum dinheiro. Talvez não. Na realidade, não importava. Quando ela sentia fome, sempre era criativa o suficiente para encontrar um meio de obter uma refeição agradável e suficiente.

O desconhecido não a assustava. Pelo contrário; o desconhecido a atraía.

Foi por isso que, caminhando por entre as árvores e sentindo mais fortemente aquela sensação de que era observada, Agatha tomou uma decisão, bem a seu modo, sempre sem pensar ou ponderar demais. Ela decidia e pronto.

Estava perto de uma grande fonte, que jorrava água para o alto. Sentou-se à beirada dessa fonte e passou a encarar detidamente cada pessoa que passava por ela, cada transeunte que atravessasse seu campo de visão.

As pessoas, obviamente, sentiram-se incomodadas. Que tipo de mulher estranha era essa, que encarava tão fixamente cada indivíduo que passava à sua frente? A maioria das pessoas evitava Agatha tão logo cruzavam seus olhares com o dela. O olhar de Agatha era muito poderoso e demandante. Mesmo sem fazer uso de quaisquer palavras, ela interrogava.

A garota sabia que conseguiria o que buscava assim. Os olhos que incidiam tão poderosamente sobre ela estavam por lá; ela tinha certeza. E, em algum momento, ela os veria. E saberia, no instante em que os encontrasse, que se tratavam deles.

Durante alguns minutos, sua busca pareceu infrutífera. Mas Agatha sabia ser persistente e, sem demonstrar cansaço, continuou exatamente assim, atenta, com seu olhar firme e perscrutador.

Agatha parecia senhora de sua vida e destino. Ela dominava os acontecimentos que pavimentavam os caminhos que se seguiam. E, talvez por isso, ela fosse sempre vencedora, independente da situação.

Ela foi vencedora uma vez mais. Se aquilo era um jogo, não haveria outro final, ela venceria certamente. Então, como se simplesmente não pudesse ser de outro modo, Agatha finalmente os viu.

Um par de olhos escuros. Azuis e escuros como as profundezas do mar, densos como o misterioso céu da madrugada.

Os olhos azuis imediatamente responderam à pergunta que os olhos inquisidores de Agatha indagavam.

Sim, eram eles. Eles a tinham observado por todo esse tempo.

O olhar enigmático era também magnético. Agatha viu-se muito rápido presa a eles. E, como era de seu feitio, mergulhou ali, sem se preocupar com as consequências dessa atitude.

Assustou-se; nunca antes havia sido tão fortemente tragada por um olhar. E os olhos azuis tinham mesmo a profundeza do oceano. Faltou-lhe o ar; estava prestes a se afogar.

Mas não se afogou. Não ainda.

Quando deu por si, o homem estava parado à sua frente.

Ele nada dizia, mas sua postura revelava bastante. Era um rapaz que poderia ter a idade de Agatha, talvez um pouco mais velho. Vestia roupas escuras, discretas. As mãos enfiadas nas calças jeans e todo o jeito em que ele se via envolvido denotava alguém que não queria chamar atenção.

Alguém para quem se poderia olhar com pressa e não se notar mais que uma sombra. Por sinal, era exatamente o que ele parecia querer ser.

– Então é você. - Agatha pronunciou essas palavras com uma voz tranquila, de forma até mesmo serena, quebrando o silêncio, mas mantendo o forte contato visual.

– É... - o homem sorriu de canto, com um charme despretensioso - Esperava algo diferente?

– Eu não estava esperando nada em particular. - Agatha respondeu prontamente. Era verdade. Ela nunca se preocupava em antecipar qualquer coisa. Ela não temia ser pega desprevenida; aliás, esse era o seu estado natural.

– Verdade. Você é assim.

– Pois é... Esta sou eu. Eu sou assim. - Agatha repetiu. Então meneou a cabeça e abriu um amplo sorriso. Que conversa estranha... - Pelo modo como fala, parece que você me conhece.

– Na verdade, isso é o que eu gostaria de ter a oportunidade de fazer. - o homem respondeu com naturalidade, mantendo com Agatha o inquebrantável contato visual.

– Sei. - a moça assumiu feições mais sérias e cruzou os braços - Posso saber por quê?

– Ora... - o homem tinha o semblante tranquilo e uma voz calma - Por que você me parece uma pessoa interessante.

– Certo... - Agatha tinha agora um olhar desconfiado - Se isso foi uma cantada, preciso lhe dizer que foi péssima.

– Não, não é nada disso. - o homem sorriu de leve - É só que... Você me chamou a atenção. - os olhos azuis assumiram então um brilho especial - Você possui uma forma de ser tão... distinta, tão única, que... Estou tentando compreender. Você não caminha pelo mundo pedindo passagem, você abre caminho. Não parece haver becos sem saída para você. Tudo em sua personalidade parece tão... forte. Impactante.

– E você notou tudo isso só de olhar para mim?

– Bem... De certa forma. Digamos que... eu sou um bom observador e essas características são vívidas em você. São vívidas no seu olhar, tão... único. - o homem falava com uma sinceridade desconcertante, enquanto parecia realmente desvendar a alma de Agatha em um único olhar - Nunca se deu conta do quanto é especial? Não percebe como é admirada pelos que a conhecem? A sua pessoa é merecedora de atenção; aliás, parece ter o dom de captar a atenção até mesmo de desconhecidos...

Nesse momento, Agatha abriu um largo sorriso:

– Ah, eu sabia que tinha algo por trás disso tudo! Pode parar; eu já reconheci o discurso. Você é o jornalista, não é?

– Como...?

– O jornalista que o Mark disse que tinha ficado interessado em me conhecer! Claro; como não percebi antes? - Agatha agora falava risonha - Ah, o Mark é muito teimoso! Eu disse que não queria, que não estava interessada. Mas o Mark realmente não sabe receber um "não" como resposta... - a garota riu.

O homem, sério, estreitou um pouco os olhos azuis, pensativo. E logo respondeu, em tom inócuo:

– Mark. Seu vizinho, que é ator de teatro.

– É, ele me contou de você. - Agatha agora conversava como se estivesse diante de um conhecido - Ele disse que falou de mim para um jornalista e que houve interesse na minha história e tudo o mais. Mas... Olha, eu sei que o Mark só quer me ajudar, mas não tenho interesse, ok? Não quero ficar expondo minha vida, não vejo motivo para isso. Aliás, o Mark é um exagerado. Não sou tudo isso, não. Pelo que você falou, eu reconheci as palavras dele, mas pode acreditar: tem muitos excessos aí.

O homem ponderou as palavras de Agatha silenciosamente. Ao cabo de alguns segundos, disse:

– Se me permitir, gostaria de observá-la por hoje. Não irei incomodar, quero apenas... ver de perto como você é.

– Olha, eu realmente não quero que se publiquem coisas a meu respeito em jornais e...

– Prometo que não sairá nada em qualquer jornal. Eu só quero saciar minha curiosidade, se me permitir.

Agatha tentava ler algo nas expressões indecifráveis desse estranho homem. Não conseguia enxergar nada ali e acabou dando de ombros:

– Ok, por mim, tudo bem. Se for apenas me acompanhar, sem problemas. - a garota decidiu que não haveria nada de mais em aceitar um acompanhante naquele sábado tão bonito. Como sempre, ela não iria se preocupar demais - Bem, por agora, eu ia aproveitar esse lindo dia e tocar um pouco. - a moça continuou dizendo, tomando seu violão em mãos. O homem se sentou a seu lado, observador.

– Vai tocar para ganhar algum dinheiro? - o homem perguntou, vendo a garota desenrolar um lencinho que trazia amarrado à cintura e colocando-o em frente a ela.

– Vou tocar porque me deu vontade; se alguém quiser me dar algo em troca, eu aceito de bom grado, claro. Mas não é esse o objetivo. - Agatha continuava falando com seu tom ameno, enquanto amarrava os cabelos castanhos em um displicente rabo de cavalo.

– E o objetivo seria...?

– Eu já disse! - a jovem riu, divertida, da forma analítica como o homem observava cada movimento seu e perguntava coisas em um tom tão sério - Vou tocar porque me deu vontade, porque me faz sentir bem. Então o objetivo, se é que podemos chamar assim, seria eu me sentir bem.

– Certo. Não há um objetivo de fato, então.

– Sinceramente, não sei dizer. - Agatha posicionou o violão sobre o colo - E por que você precisaria de um objetivo? Não podemos fazer algo apenas porque estamos com vontade de fazer?

O homem não respondeu. Porém, seu silêncio parecia preenchido de palavras não ditas e não compreendidas por Agatha.

– Escuta, você... - súbito, a garota pareceu dar-se conta de algo - Ei, você ainda não me disse seu nome.

Os olhos azuis escuros encararam Agatha por um instante, e logo desviaram de sua figura para vistoriar o local. Essa atitude, como todas as outras, não foi abrupta nem parecia espontânea. Aliás, tudo naquele homem parecia estar dentro de um planejamento; o que seria impossível, porque ninguém poderia planejar cada ato de cada minuto do seu dia. Entretanto, essa era a impressão que ele passava.

Perto de onde estavam, um menino corria com uma bola e logo virou-se para trás, ao ouvir a mãe chamando pelo seu nome.

O homem, então, voltou seu denso olhar para Agatha e, com a expressão impassível de sempre, respondeu enfim:

– Meu nome é Gregory.

Agatha levantou uma sobrancelha, em atitude incrédula:

– Você está inventando isso?

O homem não disse nada; os olhos azuis, no entanto, continuavam dizendo muito. E Agatha permanecia sem conseguir compreender a linguagem daquele olhar.

– Você só me disse isso porque ouviu aquela mãe chamar o filho de Gregory, não é?

O homem deixou de fitar a moça e passou a contemplar a paisagem, sem parecer se preocupar com as interrogações da jovem.

Agatha compreendeu que ele não diria mais nada a respeito desse assunto. E, apesar da estranheza da situação, que parecia crescer cada vez mais, ela resolveu deixar isso de lado; não só por ser de sua natureza não se preocupar demais com certos detalhes, mas porque algo naquilo tudo lhe parecia induzir a somente dar continuidade aos eventos que estavam sucedendo, sem questionar demais o que acontecia.

– Está bem. Gregory. Mas eu vou chamá-lo de Greg, certo?

Dessa vez, foram os olhos azuis que se voltaram interrogativos para a jovem.

– Você tem cara de Greg. - a moça jogou o rabo de cavalo para o lado e sorriu. Sua atenção voltou-se para o violão e, sem necessidade de uma introdução ou apresentação, ela simplesmente começou a tocar o instrumento.

Agatha não poderia ser chamada de um talento musical, mas sabia fazer as cordas do violão ressoarem de forma harmoniosa o suficiente para agradarem aos ouvidos dos passantes. Algumas pessoas paravam para ouvi-la um pouco mais, outros apenas sorriam ao passar por ela. Vez ou outra, algumas moedas e notas caíam sobre o lenço lilás, aberto sobre o chão.

Observando cautelosamente a cada movimento, não só os de Agatha, mas de todos que passavam por ali, o homem mantinha o rosto sério, parecendo muito compenetrado.

– Greg, relaxa um pouco. - a moça disse, em um breve intervalo que se deu.

– Eu estou bem, obrigado.

– Não perguntei se você estava bem. - o rabo de cavalo já se desfazia e Agatha precisava lutar contra os fios de cabelo castanho que o vento jogava contra seu rosto - Eu estou me sentindo tensa com você desse jeito. E eu queria relaxar, lembra? - ela falou e tomou um gole da água que trazia em uma garrafinha.

– Você precisa que eu relaxe para poder relaxar? - a pergunta soava quase infantil, mas o tom em que as palavras foram utilizadas apontavam para um questionamento genuíno.

– É, Greg. - Agatha riu. Esse homem era estranho, mas não de um modo ruim. E, embora houvesse acabado de dizer que a presença dele a estava, de alguma forma, incomodando, a companhia dele era... interessante. Ao menos, era essa a palavra que ela tinha conseguido encontrar para descrever o que estava sentindo.

– Está bem. Eu vou... relaxar. - como sempre, as palavras do homem eram firmes e sua expressão, absurdamente neutra. No entanto, por trás disso, Agatha quase conseguiu sentir uma certa incerteza por parte do outro, algo como se ele não soubesse exatamente como fazer o que acabava de afirmar que faria.

E essa impressão se confirmou, pois, à medida que a manhã passava, Gregory parecia esforçar-se em demonstrar-se relaxado. Ele não tomava nenhuma atitude de forma exagerada, mas era algo que Agatha simplesmente conseguia sentir. Inclusive, a postura dele, de deixar o corpo mais recostado para trás, apoiado nos braços, tentando apresentar menos tensão muscular assim, parecia tão calculada que, para a moça, o resultado era o oposto do que deveria ser.

Em uma tentativa de ajudar o rapaz a relaxar de fato, Agatha decidiu envolvê-lo mais naquele momento cálido, que agradava já a tantas pessoas naquele parque. Começou a tocar uma conhecida música e rapidamente as pessoas que a prestigiavam ali aplaudiram a escolha e começaram a cantar junto com ela.

Agatha cantava e lançava olhares convidativos a Gregory, como se pedisse que ele a acompanhasse na canção. Os olhos azuis do rapaz compreenderam a intenção da jovem, mas responderam, nesse diálogo mudo, que ele não tinha interesse em participar daquele momento.

Por mais que os olhos castanhos insistissem, o rapaz manteve-se calado e com a mesma postura fria e analítica por toda a manhã. Talvez por isso, Agatha, depois de algum tempo, resolvesse que já havia cantado e tocado o bastante. Sorriu para algumas pessoas que estavam por lá, usufruindo de suas músicas, deixou o violão de lado, pegou o lencinho com as moedas e notas, embrulhando-as nesse pedacinho de pano e enfiando o pequeno embrulho no bolso de sua longa saia esvoaçante. Agradeceu ao pequeno público que se fez presente e começou a caminhar, sem dirigir qualquer palavra ao homem que, tão logo ela se levantou, fez o mesmo e passou a seguir ao seu lado.

– Aonde vamos agora?

– Não sei. - ela respondeu, um pouco mal-humorada.

– É verdade. Você não faz planos. - o homem atestou, como se falasse mais para si mesmo.

– É, eu não faço. Essa é a conclusão a que podemos chegar. E quer saber? - Agatha parou de andar e virou-se para encarar o outro - Acho que já chega, né? Cansei de ser seu objeto de estudo!

– Objeto de estudo? - Gregory apenas repetiu, no mesmo tom tranquilo de sempre, com um leve arquear de sobrancelha.

– É! Não é isso que você está fazendo? Me estudando? - a moça zangou-se um pouco mais, até para sua própria surpresa - Analisando tudo em mim, me observando como se eu fosse uma experiência ou algo assim...

Agora, pela primeira vez, o homem demonstrava alguma emoção. Abriu mais os olhos azuis, permitindo ver como suas cores eram fortes e bonitas:

– Estudando você? - ele repetiu, mas rápido prosseguiu, porque entendeu que ficar repetindo as palavras da garota apenas a deixavam mais zangada - Não, eu não estou querendo estudá-la. Pensei que tivesse compreendido isso.

– Eu compreendi que você queria passar um tempo comigo, porque estava curioso sobre mim.

– É exatamente isso. - voltando a assumir o semblante sereno, Gregory colocou as mãos nos bolsos da calça jeans. A brisa da tarde que se iniciava brincava de leve com seus cabelos negros.

– Não é, não! Você fica me olhando, como se eu fosse um bicho estranho, uma coisa esquisita a ser entendida, estudada...

O homem abriu um pequeno sorriso, como se realmente estivesse achando alguma graça da situação. Diante disso, Agatha sentiu-se um pouco boba, como se houvesse mesmo feito uma tempestade num copo d'água.

– Perdoe-me. Não era minha intenção fazê-la se sentir assim. Eu... - Gregory titubeou um pouco, e continuou - Eu estou, na verdade, fascinado pela sua pessoa. O que estou vendo em você é tão incrível que não sei exatamente como me portar na sua presença. Se pareci querer estudá-la, é porque eu tentava descobrir, para mim mesmo, como é possível que uma criatura seja assim, tão encantadora.

As palavras de Gregory eram tão intensas, que destoavam completamente da forma como foram enunciadas. Não havia paixão em seu tom de voz, nem qualquer outro tipo de comoção. O modo de ele falar era sempre neutro e esse contraste deixava Agatha confusa. Entretanto, ao fitar aquele olhar, era como se um mar revolto a envolvesse, toda vez que ela se permitia perder-se um pouco mais ali.

Sem saber como responder e tendo de fazer um esforço enorme para desviar seus olhos dos dele, Agatha levou a mão aos cabelos, como se fugisse assim daquele momento:

– Tudo bem. Eu desculpo você. - foi o que a moça conseguiu dizer, enquanto fingia arrumar seu rabo de cavalo - E... Bem, eu não sei você, mas estou com fome! É hora do almoço; você me acompanha?

– Claro. - o rapaz respondeu, de forma plácida. Era meio óbvio que ele aceitaria, uma vez que já havia deixado claro que gostaria de acompanhá-la nesse dia, mas Agatha sentiu um pequeno prazer ao ouvir a resposta afirmativa dele.

– Excelente! Eu conheço um lugar ótimo perto daqui! - voltando ao seu ânimo habitual, a garota puxou Gregory pelo braço, seguindo agora em passadas rápidas que eram quase pequenos pulos, os quais o rapaz teve certa dificuldade em acompanhar a princípio, mas logo encontrou um meio de seguir o ritmo da jovem, que agia de maneira tão graciosamente pueril.

Chegaram assim a uma pizzaria. O estabelecimento não era muito grande, mas estava bastante cheio. Agatha entrou, sempre puxando Gregory pelo braço, em meio à multidão que se apinhava ali.

– Tony! - ela chamou, em voz alta o suficiente para se fazer ouvir, ao se aproximar de um balcão - Ei, Tony!

Um homem robusto e vestindo um avental branco logo atendeu ao chamado:

– Agatha! - ele sorriu por trás do bigode - Que bom vê-la! Giordana, olha quem está aqui!

Uma senhora encorpada apareceu e abriu um grande sorriso:

– Agatha, querida! Há quanto tempo! Esteve sumida!

– Eu sei. - a menina riu, timidamente.

– E que bons ventos a trazem aqui hoje?

– Os ventos da fome! - a garota sorriu mais largamente - E logo me lembrei da pizza maravilhosa que vocês fazem...

– Não precisa dizer mais nada! - o homem do bigode fez um gesto para um dos garçons - Traga a especialidade da casa para ela!

Agatha retirou algumas notas de uma bolsinha que carregava, ao que Tony logo a interpelou:

– O que pensa que está fazendo? É cortesia da casa, mocinha!

– Nem pensar! Faço questão de pagar! Da última vez, vocês já me deixaram comer de graça...

– Sim, mas foi porque você nos ajudou muito naquele dia. - Giordana intrometeu-se na conversa.

– Não interessa. - Agatha foi firme - Eu quero pagar e ponto final.

Tony e Giordana entreolharam-se e, com um amigável sorriso para a moça, aceitaram o dinheiro que ela lhes estendia. Era como se a conhecessem bem demais para saberem que seria inútil discutir com ela.

Agatha então puxou Gregory, que se deixava levar com naturalidade pela impulsividade da garota, para se sentarem a uma mesa que acabava de ficar vaga. E logo a pizza lhes foi trazida.

– É uma delícia! - ela disse, enquanto se servia de uma generosa fatia - Prove; garanto que não vai se arrepender!

– Obrigado, eu não estou com fome. - Gregory respondeu, de seu modo impassível.

– É porque eu paguei pela pizza? Vamos lá, não seja bobo! Você é meu convidado!

– Eu agradeço, mas realmente não tenho fome. - apesar de o tom neutro prevalecer, foi possível perceber que ele estava sendo mais incisivo.

– Nossa... - disse Agatha, em meio a garfadas - Você não canta, não come... Será que faz alguma coisa normal?

Gregory não deu mostras de que iria responder, mas Agatha sequer esperou por isso antes de voltar a falar:

– Sabe, você é esquisito. Realmente, se alguém aqui fosse ser estudado, esse alguém deveria ser você.

Nem ela mesma entendia por que havia feito tal comentário. Talvez estivesse buscando afetar o rapaz de algum modo, fazer com que ele saísse dessa zona neutra que a incomodava bastante. O resultado, porém, não foi bem o que ela esperava:

– Você está correta. - ele sorriu de forma simpática e voltou os olhos azuis para as pessoas que inundavam o ambiente.

Como se os olhos castanhos resolvessem acompanhar os profundos olhos azuis, Agatha direcionou seu olhar para o que se passava ao redor. Não demorou a perceber a dificuldade que o casal dono da pizzaria e seus empregados estavam passando, devido ao número de clientes.

A moça voltou então ao balcão e chamou pela mulher:

– Giordana! O que houve? Hoje está mais cheio que o habitual!

– Ah, minha querida! Um aniversário e um batizado, os dois no mesmo dia e horário! Duas famílias inteiras vieram aqui comemorar; e isso fora os clientes de sempre!

– Mas não podemos reclamar! - Tony se pronunciou - Clientela é sempre bom; melhor sobrar que faltar!

– Com certeza, mas... Acho que vocês precisam de ajuda.

– Minha querida, não precisa! - Giordana falou logo - Você é um amor, mas acho que hoje você deveria se preocupar mais com outras coisas, não? - e a mulher deu uma piscadela para Agatha.

– Me preocupar com outras coisas? Que coisas? - a menina respondeu, sem entender a indireta.

– Ora... É a primeira vez que vejo você vir aqui acompanhada de um rapaz... E muito bonito, diga-se de passagem! - Giordana deu uma risada gostosa - Fico feliz que tenha arranjado um namorado, você está sempre tão sozinha!

– Ah... o Greg? - Agatha olhou para trás e viu Gregory observando com sua calma natural o caos em que a pizzaria se encontrava - Não, não... Ele não é meu namorado. É só um amigo... ou melhor, um conhecido.

– É mesmo? Tem certeza?

– Claro que sim, Giordana!

– Me desculpe, minha querida... Mas é que eu o vi olhando para você e ele me pareceu tão encantado, que... Bom, bom! Não posso falar demais. A vida é sua.

– Pois é! E eu decido o que fazer dela. No caso, decidi que quero ajudar e não aceito "não" como resposta!

– Mas, Agatha... E o seu amigo?

– Ele vai ajudar, oras! Simples assim! - a moça virou para trás e acenou para Gregory, chamando-o para onde estava. O rapaz atendeu ao chamado e logo foi informado do que fariam - Muito bem, antes que você me pergunte o que vamos fazer agora, eu já lhe antecipo: Vamos fazer pizza! - enquanto dizia isso, já ia colocando um avental em Gregory, que pareceu realmente pego de surpresa.

– Pizza? Eu... não sei se...

– Não sabe fazer pizza? Novidade! Você parece que não sabe fazer nada, mas tudo bem! Eu ensino! - Agatha vestiu um avental também e puxou Gregory pelo braço, levando-o à cozinha. Conhecia bem o caminho; não era a primeira vez que se dispunha a ajudar o simpático e acolhedor casal.

A garota falava com familiaridade com os outros empregados; sabia onde ficava tudo de que necessitava e, como era comum em tudo o que dizia respeito à Agatha, ela se sentiu extremamente à vontade ali.

Gregory, por sua vez, mantinha o jeito sisudo. Contudo, dessa vez, ele não pôde ficar apenas observando. Agatha exigiu que ele trabalhasse também, se quisesse continuar acompanhando-a. Como ele realmente não parecia saber o que fazer - tampouco como fazer -, a garota precisou, por várias vezes, segurar nas mãos dele para guiá-lo; fosse para ajudar com a preparação da massa, fosse com a montagem das pizzas.

Agatha não deixou de perceber um leve tremor no rapaz, quando houve esse tipo de contato pela primeira vez. Em seu rosto, Gregory não demonstrou qualquer mudança, mas suas mãos o traíam. E, Agatha não saberia dizer se o rapaz tinha verdadeiras dificuldades em absorver o que ela ensinava, mas, mesmo depois de explicar alguns passos do processo diversas vezes, ele ainda lhe pedia que mostrasse, na prática, como fazer. Assim, as mãos da moça uniam-se às dele novamente, para tentar ensinar o que, aparentemente, ele não queria aprender.

Se isso era apenas impressão, Agatha não tinha como dizer. E não podia negar que, lá no fundo, também ela havia gostado bastante desse toque mais íntimo. O toque das mãos, mesmo que destinadas a uma tarefa específica, mexia com ela. As mãos dele eram frias, mas pareciam ganhar calor com o seu toque. Muito mais do que um simples toque, elas interagiam, havia algo diferente ali.

Ficaram algumas horas por lá. Não houve tempo para conversas aleatórias, pois os pedidos não paravam de chegar e a cozinha era povoada de ordens de pedidos, alertas sobre o molho no fogo, perguntas sobre ingredientes e toda sorte de comentários relacionados às pizzas; nada mais que isso.

Quando finalmente o movimento abrandou, a ajuda de Agatha e Gregory não se fez mais necessária. Tony e Giordana agradeceram muito; quiseram pagar pelo auxílio, mas a jovem se negou a aceitar. Ela disse que poderia ser paga em uma outra ocasião, quando aparecesse por lá. Aceitaria uma pizza como recompensa e assim ficou acordado.

Ao saírem da pizzaria, a tarde já morria e a noite vinha chegando de mansinho. Agatha e Gregory caminhavam lado a lado, em silêncio. A garota observava o céu, vendo as primeiras estrelas despontarem. Pelo olhar, ela parecia sonhar acordada.

De repente, Agatha sentiu aquele toque, que tanto já a havia desconcertado, sobre sua face. Ela parou imediatamente de caminhar, ficando estática com o toque que pareceu quase uma carícia em seu rosto.

– O que... está... fazendo? - a garota conseguiu perguntar, com a voz trêmula e baixa.

– Estou tirando um pouco de farinha que ficou aqui. - Gregory respondeu com tanta naturalidade, que Agatha enrubesceu, sentindo-se tola por ter ficado naquele estado. Resolveu tomar o controle da situação, mudando o rumo da conversa:

– E então? Gostou do dia de hoje? - forçou um sorriso, para parecer tranquila.

– Foi interessante. - a voz de Gregory se fez ouvir, causando novos arrepios incompreensíveis em Agatha - Eu nunca tinha feito isso antes e... foi interessante. - o rapaz constatou.

– Foi divertido? - Agatha abriu um sorriso bonito e olhou para Gregory - Porque eu acho divertido melhor que interessante.

– Divertido? - Gregory assumiu um ar pensativo - Eu não sei se poderia qualificar dessa forma...

– Claro; e eu imagino que seja por você não saber o que é diversão. Sério mesmo; você é sempre assim? - disse Agatha, em tom de brincadeira.

– Assim como?

– Assim, sempre tão sério... tão formal...

– Bom, eu... - Gregory olhou para si mesmo, como se seu jeito de ser fosse uma vestimenta a ser analisada sobre o próprio corpo - Eu creio que sim. Isso, por acaso, é mau?

– Não, só é... meio diferente. - respondeu a moça, notando como escurecia rápido agora - Mas não tem nada de mau em ser assim.

– E isso lhe desagrada?

– Se me... desagrada? - a pergunta, feita em tom de naturalidade, confundiu Agatha. Ela não sabia por que se agitava tanto com a forma como Gregory lhe falava. Ou melhor, não era tanto a forma, mas as palavras que ele usava. Ou talvez fosse aquele jeito de ele olhar para ela... - Não, oras. Por que me desagradaria? Você é do jeito que tem de ser e eu não tenho nada a ver com isso. - era mais que visível o tom defensivo usado nas palavras dela.

– Que bom. - Gregory sorriu com sinceridade - Eu não queria desagradar-lhe; especialmente por você ter me proporcionado um dia tão agradável.

– Você gostou? Bom saber! Não me leve a mal, mas é muito difícil saber o que se passa na sua cabeça. Você é tão fechado...

Gregory riu. Um riso discreto e suave. Nesse instante, Agatha percebeu que os olhos do rapaz eram da cor da noite que ia se apossando do céu.

– Desculpe-me por isso. Eu não sei ser de outra forma.

– Você poderia tentar aprender...

– Quem sabe? De todo modo, muito obrigado por esse dia. Eu aprendi muitas coisas.

– Aprendeu a fazer pizza! - riu Agatha, alegremente.

– Sim. Essa é uma das coisas que aprendi.

– Pode aprender mais, se quiser...

– Certamente. Esse aprendizado será devidamente internalizado. Pretendo refletir sobre tudo o que vivenciei a seu lado hoje e...

– Não, eu quero dizer que... - Agatha interrompeu Gregory, e só se deu conta de que o havia feito quando aqueles olhos, em um tom tão impossivelmente escuro e azul, recaíram intensamente sobre ela - Eu... quis dizer que... Se você quiser... Posso lhe ensinar mais.

Assim que terminou de pronunciar essas palavras, a garota engoliu em seco. Estava convidando Gregory a passar mais tempo com ela? Era isso mesmo? Sentiu-se tão profundamente envergonhada que virou o rosto para outro lado, como se assim pudesse fugir do momento tão constrangedor.

– Seria interessante. - Agatha não sabia dizer quanto tempo demorou para que essas palavras de Gregory enfim fossem ouvidas. Para ela, pareceu uma eternidade; mas ela tinha consciência de que deveriam ter passado apenas alguns segundos.

– Sim, seria. - a garota apenas concordou com o comentário do outro, sem saber o que mais dizer. Voltou a olhar para ele, que tinha baixado um pouco o rosto, impedindo novo contato visual.

– Eu preciso ir agora. - Gregory disse, com a mesma simplicidade que sempre projetava em todas as suas palavras - Uma vez mais, agradeço pelo dia proporcionado. Tenha uma boa noite, Agatha.

A moça, sem muita reação, apenas viu como Gregory lhe sorria agora. Os olhos azuis dele voltaram a encontrá-la e, provavelmente por isso, ela não pôde reagir. Ficou calada, vendo como ele fazia um gesto com a cabeça, em despedida. Depois ele deu as costas a ela e se afastou assim, como se nada de mais tivesse acontecido.

Agatha permaneceu parada, no mesmo lugar, observando Gregory ir se afastando, até desaparecer por completo de seu campo de visão. Somente quando não conseguiu mais enxergá-lo é que pareceu cair em si. Afinal, o que tinha acontecido? O que tinha sido tudo aquilo?

Certo, se fosse bem racional, não havia nada mais ali. Um jornalista, a mando de um amigo seu, tinha vindo entrevistá-la e ela negou-se a isso. Mesmo assim, curioso, ele quis conhecer mais da sua vida e ela permitiu. Ele tinha um jeito meio esquisito, mas era boa gente. Passaram um dia "agradável" e "interessante", nas palavras dele. E ela podia concordar. Não tinha sido ruim. E, depois disso, ele foi embora. Como tinha de ser.

Entretanto, se era tudo tão normal, por que ela se sentia tão fora do usual? Por que o coração lhe batia descompassado no peito?

Havia se interessado pelo rapaz? Bem, ele era atraente. E o jeito dele... Agatha não conseguia dizer se isso era um ponto positivo ou negativo nele. Era tão estranho! Mas não era ruim...

E só então se deu conta de que se separaram sem que ela tivesse qualquer noção de como encontrá-lo novamente! O que sabia de Gregory? Nada! Apenas que era um jornalista e que...

Sim, claro! Ele era um jornalista e conhecia Mark! Consequentemente, Mark deveria saber como encontrá-lo! Com isso em mente, Agatha correu para o prédio em que vivia e, tão logo chegou ao quarto andar, começou a bater ansiosa na porta do apartamento que ficava ao lado do seu.

Bateu diversas vezes, tocou a campainha. Mark não estava em casa. Agatha suspirou frustrada. Teria de esperar; provavelmente até o dia seguinte. Mark gostava de festas e farras; não era difícil ele passar a noite fora.

– Tudo bem. Falo com ele pela manhã. - disse para si mesma e entrou em seu apartamento.

O apartamento em que vivia era pequeno, mas Agatha soube fazer valer o seu espaço. Criou um ambiente aconchegante e funcional e, mesmo ele sendo composto de um cômodo e um banheiro, ela vivia muito bem ali.

Assim que entrou, foi encher um pequeno regador para molhar algumas plantinhas que ficavam no parapeito da única janela do lugar. Depois de executar essa tarefa, olhou para o céu. Ele agora não tinha mais a coloração azul escura, como os olhos de Gregory. A noite era negra, como os cabelos dele.

– Ele realmente mexeu comigo. - falou como se confidenciasse um segredo às suas plantas - Não é que eu esteja apaixonada, nada disso. Não houve tempo para isso. Só ficamos juntos um dia e eu nem o conheço direito! - ela ria de si mesma - Se bem que... Quanto tempo é preciso para uma pessoa se apaixonar por outra?

Com esses pensamentos revoando em sua mente, Agatha sentou-se sobre algumas almofadas pelo chão e ficou observando o céu estrelado. Mergulhava no infinito daquele céu e a sensação era semelhante à de quando olhava nos olhos de Gregory.

– É... eu acho que... realmente... queria vê-lo de novo.

Ficou assim, um bom tempo, sonhadora e olhando para o céu.

Acabou pegando no sono e dormindo como estava.

********************************************************************

Era uma hora da tarde. Agatha acabara dormindo demais.

Assim que acordou, dolorida por ter dormido no chão com apenas algumas almofadas para amortecer o seu sono, levantou-se rápido. O primeiro pensamento que tivera foi o de ver se Mark estava em casa.

Deixou o apartamento às pressas e bateu na porta do amigo. Bateu muitas vezes, mas novamente compreendeu que o local estava vazio.

– Droga. Ele já deve ter saído. - ela pensou. Aliás, era possível que ele nem tivesse voltado para casa. Suspirou; não tinha muito o que fazer. Voltou para seu apartamento, tomou uma ducha gelada para acordar e almoçou uma tigela de cereais.

Não costumava acordar tão tarde. Não tinha certeza do horário em que havia adormecido, mas era bem tarde. Perdera a hora, admirando estrelas...

– Que bobagem! - quis repreender a si mesma - Vamos lá, Agatha! É um novo dia! E o que esse dia nos reserva?

Resolveu pintar alguns quadros. Tinha material de pintura em seu apartamento e se pôs logo a fazer esboços de desenhos nas telas. Suas mãos, no entanto, insistiam em desenhar a noite estrelada, a madrugada azul escura, um mar revolto, uma tempestade avassaladora.

– Que droga, que droga! - não foi difícil para ela entender o que estava fazendo - Pare de pensar nele, Agatha! O que houve, virou uma garota boba que não consegue tirar um cara da cabeça? Desde quando você é assim?

Ela falava, tentando comandar o que pensava. Porém, independente do que dissesse, seus pensamentos voltavam sempre àqueles olhos azuis tão densos.

Decidiu que precisava manter a cabeça ocupada.

Eram quase três horas da tarde.

Lembrou-se então de que, nesse horário, algumas pessoas da vizinhança gostavam de levar os cachorros para passear. E Agatha, vez ou outra, prontificava-se para fazer isso pelos vizinhos. Embora ela fizesse de boa vontade, acabava sempre sendo paga pelos serviços.

No momento, aquilo pareceu-lhe boa ideia. Deixou seu prédio e não demorou a ver algumas pessoas saindo de suas residências com seus animais de estimação. Assim que viram Agatha, ela os cumprimentou, animada. A moça logo se demonstrou disponível em levar os bichos para passear e foi assim que, muito rápido, viu-se com oito cachorros, de portes e raças diferentes, para cuidar.

Não era a mais fácil das tarefas, mas não era das piores. Agatha logo encontrou um bom ritmo para todos passearem juntos e foi caminhando assim. Em dado momento, no entanto, seus pés a levaram para o parque, onde estivera na véspera.

Não era de seu feitio ir ao mesmo lugar dois dias seguidos. Isso ia contra seu modo natural de ser, sempre em busca de algo novo. Claro que ela regressava aos lugares de que gostava, mas havia sempre um bom intervalo de tempo separando esses momentos.

Todavia, não pôde evitar. Ela quis voltar lá. Algo dentro dela tinha a esperança de reencontrar Gregory por ali.

Andava segurando as diversas correias com as mãos, enquanto os olhos castanhos faziam uma verdadeira varredura pelo local. Havia muita gente por lá, mas ninguém com aquele olhar que, a cada minuto que passava, Agatha concluía com mais certeza: somente ele possuía.

Respirou pesadamente. Sentia até alguma raiva de si mesma por estar agindo assim. Passou então por um carrinho de sorvete e resolveu comprar um, para ver se isso a animava pelo menos um pouco.

Estava tentando se organizar com os cachorros, a fim de conseguir se aproximar do carrinho de sorvetes, quando ouviu uma voz que imediatamente reconheceu:

– Precisa de ajuda?

Agatha abriu um imenso sorriso e olhou na direção de onde vinha a voz. Ao seu lado, estava Gregory, com um sorriso igualmente bonito estampado na face:

– Adoraria alguma ajuda! - ela respondeu, notando que seu coração se acelerou consideravelmente. Só esperava não estar sendo óbvia demais - Você pode segurar essas correias para mim, só por um minuto? - enquanto perguntava, já colocava as correias nas mãos de Gregory, que, assim como na pizzaria, pareceu um pouco perdido, embora suas feições nunca demonstrassem isso explicitamente - É só segurar com força. - ela acrescentou, enquanto tirava algum dinheiro de sua bolsinha e pedia um sorvete de chocolate - Você aceita um...?

– Ahn... não. - Gregory respondeu, encontrando dificuldades para controlar os cachorros. Na sua presença, eles ficaram bastante arredios e davam voltas em torno dele, cheirando-o e parecendo que o analisavam.

– Ah é, eu me esqueci. Você não come. - Agatha brincou, pagou o sorveteiro e riu ao ver como Gregory parecia ter sido amarrado pelos cães, que o envolveram com suas correias - Você tem que mostrar domínio para ser respeitado. - ela disse, tomando para si quatro das correias - Tente fazer como eu. - ela demonstrou e achou graça de ver como Gregory buscava imitá-la, inclusive andando de forma parecida.

Após alguns momentos de aperto, Agatha conseguiu que Gregory aprendesse a controlar os cachorros que estavam com ele. A tarde era agradável e a brisa vespertina brincava com seus cabelos castanhos, presos em um rabo de cavalo, como no dia anterior.

Agora que não falavam mais sobre os cachorros, Agatha não sabia sobre o que conversar. O dia inteiro, quis reencontrar Gregory e, agora que ele estava ali, ela simplesmente não sabia o que dizer.

Na realidade, havia muito o que ela queria dizer e perguntar, mas não sabia como colocar em palavras. A presença dele a perturbava de uma maneira única.

Ela não compreendia por que estava assim. Agatha nunca ficava sem ter o que dizer, pois era a espontaneidade em pessoa. Aquilo não estava certo...

– Ainda temos de ficar muito tempo com eles? - foi Gregory quem quebrou o silêncio. Agatha olhou melhor para o jornalista e viu que, apesar de ele parecer estar com a situação sob controle, aquilo era um pouco demais para o rapaz.

– Não, não... Na verdade... - a moça olhou em seu relógio de pulso - Já está na hora de devolvermos todos eles.

Encaminharam-se para as casas e as únicas palavras ouvidas não eram entre eles; Agatha precisava acalmar o animais de estimação com sua voz, pois mesmo tendo um pouco mais de controle sobre a situação, Gregory ainda deixava os cachorros agitados com sua simples presença. Por isso, durante todo esse trajeto, ela ia falando com os cães e Gregory permaneceu calado, durante o percurso.

Foram assim deixando todos os cães em seus respectivos lares, sem maiores problemas. Porém, quando chegaram à última casa, depararam-se com uma mãe em prantos.

Estava acontecendo a festa de aniversário do filho de seis anos dela. A casa estava cheia de crianças correndo, gritando, em polvorosa. Agatha devolveu o cãozinho à sua dona, mas não conseguiu simplesmente ignorar o estado em que ela se encontrava. Perguntou o que estava se passando e a mulher tratou de desabafar.

Havia contratado um palhaço para entreter aquelas crianças, mas o dito cujo desmarcou o compromisso na última hora. A pobre mulher ainda tentou chamar um outro palhaço, mas como estava em cima da hora, não tinha sido possível.

Agora, ela estava cercada de crianças que não paravam quietas e ela estava sozinha; não sabia como cuidar do bolo, dos docinhos e dos salgadinhos e, ao mesmo tempo, entreter todos aqueles meninos.

Agatha não precisou de mais do que isso para tomar sua decisão; disse à desesperada mãe que poderia ajudá-la. Alegou que sabia transformar balões em bichinhos e isso poderia divertir as crianças por um tempo.

A mãe quase chorou de alegria; deixou que Agatha entrasse em sua casa, acompanhada de Gregory - que Agatha introduziu como sendo seu ajudante - e os apresentou aos meninos, para então voltar à cozinha. Agatha então disse que faria os bichinhos e pediu às crianças que lhes trouxessem os balões.

– Você realmente sabe fazer isso? - indagou Gregory, vendo a garota encher as bexigas coloridas.

– Na verdade... Não. - ela respondeu rindo, enquanto começava a fazer verdadeiros contorcionismos com os balões

– Não? E como pôde dizer à mãe que faria algo que não sabe fazer?

– Greg, são crianças. Tudo de que elas precisam é um pouco de imaginação.

Gregory não pareceu muito confiante nessas palavras. Cruzou os braços e ficou observando. Agatha transformava os balões em objetos abstratos, mas ela dizia que se tratava de um elefante, de uma girafa, de um leão e as crianças acreditavam, especialmente porque, para cada "animal" criado, ela inventava toda uma história para ele.

Quando alguma criança começava a implicar, dizendo que ela estava mentindo e que aquele balão não era o animal que ela alegava ser, é que Agatha obtinha ainda mais sucesso. Como sempre, era diante das adversidades que ela mais brilhava. Era quando dizia que nem todo bichinho era igual, que aquele era diferente e, por isso, mais especial. E que deveria ser amado, apesar da aparência. De um modo todo seu, ela cativava as crianças, fazia com que elas criassem um grande carinho por um balão transformado em algo irreconhecível e, no final, seus balões se tornaram uma sensação. Agatha falava para as crianças soltarem a imaginação e que pedissem também para ela fazer animais que nem existissem. Os meninos adoraram e a festa seguia sendo um sucesso.

Gregory apenas observava tudo isso, sem dizer nada. Mas sorria. Via como a garota era mesmo capaz de tudo a que se propunha, pelo simples fato de que ela colocava na cabeça que conseguiria. Estava absorto em seus pensamentos, quando uma das crianças veio cutucá-lo.

– Tio. - a menininha segurava uma bexiga vazia na mão e tinha um ar choroso - A fila tá grande para pedir pra tia fazer bichinho. Faz pra mim?

Gregory abriu muito os olhos, demonstrando seu espanto. Não estava esperando por aquilo.

Agatha, que percebeu o que acontecia, olhou para o homem, cujos olhos azuis iam da bexiga para a menina, sem ter ideia do que fazer. A moça riu e disse:

– Meu amor, o "tio" não sabe fazer bichinhos como eu...

Ao dizer essas palavras, Agatha podia jurar ter ouvido um suspiro de alívio da parte de Gregory.

– ... Mas ele sabe fazer pinturas no rosto muito legais!! - complementou a garota, risonha.

Gregory arregalou os olhos e encarou Agatha:

– Eu sei?!

– Claro que sabe. Pinte esses rostinhos fofos e, se eles não entenderem o que você fez, explique a eles sua pintura!

Agatha claramente dizia a Gregory que fizesse o mesmo que ela. Não era necessário talento, bastava que ele conversasse e se envolvesse com as crianças enquanto pintava suas faces.

O homem ainda hesitava, mas não teve muita escolha. As crianças tinham adorado a ideia e já haviam trazido tintas coloridas e jogado sobre o colo de Gregory. O rapaz engoliu em seco, abriu um dos potinhos e, com a ponta dos dedos, pegou um pouco da tinta azul. Passou no rosto da menininha, sem saber o que fazia.

– O que você está pintando, tio? - um menino, que olhava com atenção para o que ele fazia, quis saber, curioso.

Gregory então olhou para Agatha e ela o encorajou com um olhar bem incisivo.

– Isso.. é o oceano.

– Ah! Você vai fazer um peixinho, então? - a menininha se animou, batendo palmas.

– Eu... Sim, vou.

– Pega essa tinta então, tio! Eu quero um peixinho vermelho!

Gregory pegou o potinho que a menina lhe entregava e fez algo parecido com um X no rosto da garotinha. A menina, ao olhar no espelho, fez uma expressão de quem não compreendia bem o que era aquilo.

– Esse peixe... é diferente dos demais. Ele... mora na parte mais funda do oceano. Gosta de comer algas e por isso é muito magro. - Gregory tentou fazer como Agatha; havia prestado muita atenção nela e esperava que tivesse sido o bastante.

A menina ainda se observou no espelho mais um pouco, mas logo sorriu e saiu saltitante dali. As crianças pareceram aprovar e uma fila logo se formou em frente a Gregory.

Agatha divertiu-se com a cena e viu como Gregory foi ficando mais confiante a cada criança que pintava. Chegou-se a um ponto em que ele estava até mais criativo do que ela:

– Esse cachorrinho tem apenas três patas porque ele aprendeu a voar e, se tivesse mais uma patinha, ficaria pesado. Ele é rosa porque gosta de comer flores e acabou ficando da cor delas. Mas isso é bom, porque quando ele tem de fugir das nuvens que gostam de comer cachorros rosas, ele pode se esconder no meio das flores. - Gregory falou, com alguma desenvoltura recém-adquirida, para explicar a mancha rosa e branca que acabava de pintar no rosto do aniversariante.

Nesse momento, a mãe chamou as crianças para cantarem os parabéns. Enquanto os meninos corriam para a outra sala, a mulher, bem mais calma, veio agradecer aos dois pela ajuda. Agora, eles poderiam ir embora; o mágico havia chegado e cuidaria de todo o resto. Ela quis pagar pelo trabalho deles, mas ambos recusaram. Agatha apenas aceitou que a mãe lhes desse um pedaço do bolo e porções de docinhos e salgadinhos para eles levarem consigo.

Saindo da casa, Agatha e Gregory olharam para o céu. Já escurecia bastante.

– Nossa, já está anoitecendo! - a garota exclamou.

– É... o tempo passa rápido quando eu estou com você. - Gregory falou.

Agatha lançou um olhar que misturava indignação e deslumbramento. Por que ele fazia isso; por que falava palavras que a atingiam tão certeiramente como se fossem naturais, como se nada representassem?

– Eu preciso ir.

E agora ele pretendia partir, da mesma forma como fizera na noite passada? Não. Não dessa vez.

– Por que voltou ao parque? - Agatha soltou, de supetão.

Gregory parecia estar esperando por essa pergunta, pois não demonstrou qualquer alteração com a indagação da moça. Pelo contrário; como se estivesse esperando por esse questionamento, ele se aproximou mais da jovem e a encarou profundamente, daquele modo que fazia Agatha sentir as pernas fraquejarem.

– Eu sei. Eu não deveria ter voltado.

– Não foi isso que eu disse. Mas eu quero saber por que veio; por que voltou ao parque?

Gregory ficou em silêncio e era impossível saber se ele estava calado por não ter o que dizer, ou por estar elaborando uma resposta, ou simplesmente por não querer dar alguma resposta.

– Foi por minha causa? Veio atrás de mim? - Agatha estava sem paciência e não ficaria fazendo rodeios. Direcionou a pergunta exatamente para o que ela queria saber.

– Sim. - Gregory enfim ofereceu uma resposta.

– E por quê?

– Porque eu queria vê-la de novo.

A resposta agradou à Agatha. Mas ela ainda não estava satisfeita:

– E para que você queria me ver de novo?

Gregory entrou naquele estado que Agatha já entendia como sendo de silêncio absoluto. Mas ela não permitiria que ele se calasse agora:

– Você disse que queria me ver de novo; certamente há um motivo para isso. Qual o motivo? Quer me convencer a dar uma entrevista? Não saciou ainda sua curiosidade? Vamos lá, Greg! Você tem que me responder!

A forma imperativa como Agatha falou pareceu agradar ao rapaz. Ele passou a mão pelos cabelos muito negros e sorriu de canto:

– Eu vim, mas não devia ter vindo. Vim não por querer uma entrevista com você; eu já lhe disse que isso não me interessa. E ontem foi o bastante para saciar minha curiosidade, sim. Pude ver de perto como você é. Mas...

– Mas o quê? - Agatha perguntou, uma vez que Gregory fez uma pausa nesse momento.

– Mas o dia de ontem me deixou com vontade de usufruir um pouco mais da sua companhia; dessa sua estranha incrível e luminosa espontaneidade. Eu não deveria ter vindo, mas não pude me conter.

E assim, de repente, tantas respostas de uma vez. Gregory era um quebra-cabeças difícil de montar. Por mais que tentasse, Agatha não conseguia compreendê-lo. Seu lado misterioso não parecia mero fingimento; quando ele se calava, não parecia ser por estar tentando fazer um jogo de sedução ou algo assim. Até porque, quando parecia possível a ele, Gregory dizia tudo - e mais um pouco. E dizia de forma profunda, intensa, que mexia com Agatha de uma maneira que ela nem sabia que existia. Porém, a intensidade de suas palavras não era medida nem pensada, era natural, era serena...

– Eu não entendo você, sabe? Tudo em você é tão sem sentido...

– Eu não vim aqui para ser entendido. - dizendo isso, Gregory se aproximou de Agatha, que se assustou com o gesto súbito.

– O que está fazendo?

– Eu só queria... - e complementou o que dizia com um movimento. Desfez o rabo de cavalo da moça - Eu gosto de você assim... com os cabelos soltos.

A brisa da noite fez os cabelos da garota dançarem ao sabor do vento. Agatha levou uma mecha de fios castanhos para prendê-los atrás da orelha. Nesse instante, percebeu que havia ficado um pouco de tinta ali.

– Perdão. - Gregory se manifestou, ao perceber o que tinha feito - Minhas mãos ainda estão sujas de tinta... - ele disse, olhando para as pontas dos dedos, que terminaram sujando os cabelos da jovem.

Agatha não permitiu que ele dissesse mais nada. Impelida por aquele momento, movida por uma emoção inexplicável, poderosa, que demandava dela uma atitude enérgica, a garota puxou Gregory para si, envolvendo-o pelo pescoço, decidida a provar o gosto daquela boca e a sensação daquele beijo. Ela simplesmente sentia que necessitava experimentar essa sensação.

Porém, o contato com o corpo frio de Gregory fez Agatha estremecer. E, quando seus lábios mal tocaram os do rapaz, a moça sentiu uma forte vertigem. O mundo ao seu redor pareceu girar rápido demais e ela se aferrou com ainda mais força ao outro. Porém, isso não ajudou e a fraqueza que se apossou dela cresceu exponencialmente.

Ela nunca havia sentido nada parecido. Era aterrador e, ao mesmo tempo, incrivelmente inebriante. Seu corpo não lhe obedecia mais, mas ela não queria perder os sentidos. No entanto, Agatha logo percebeu que perderia essa batalha, quando sua visão ficou turva e a escuridão começou a dominá-la por inteiro.

A última imagem que viu antes de desfalecer foram os olhos de Gregory, tão azuis e tão escuros quanto o céu que os envolvia.

*************************************************************************

Quando despertou, demorou para compreender onde estava. Olhou ao redor e foi reconhecendo seu apartamento.

Mas como tinha ido parar lá?

Estava deitada em sua cama. Pela janela, entravam raios de sol que indicavam uma bonita manhã.

Tentou se levantar, mas o gesto rápido fez que sentisse um pouco de tontura.

Lembrou-se então de seus últimos momentos de consciência.

A vertigem nos braços de Gregory...

Olhou para si mesma e viu que vestia as mesmas roupas.

Seus olhos castanhos passaram uma vez mais pelo apartamento. Estaria Gregory por ali?

– Greg? - sua voz fraca ecoou pelo ambiente, sem resposta.

Nem sinal do rapaz.

Contudo, era certo que ele a levara para lá. Quem mais poderia tê-lo feito?

Levantou-se da cama, devagar. E sentiu muita sede. Foi até sua geladeira e bebeu quase uma garrafa inteira d'água, em um único gole.

Viu, sobre uma mesinha, os docinhos e salgadinhos que a mãe em prantos lhe dera como agradecimento. Estavam ali, sobre a mesa, deixados com aparente cuidado.

Percebeu que sentia muita fome. Devorou algumas das guloseimas como se não se alimentasse há dias.

Sentia o corpo cansado, como se houvesse feito uma longa viagem. Não compreendia bem o que se passava, mas queria despertar inteiramente. Precisava entender o que tinha acontecido.

No pequeno banheiro de seu apartamento, viu seu reflexo no espelho. Os cabelos estavam sujos de tinta.

– Foi real. Foi tudo real. - ela disse para si mesma, embora não tivesse dúvidas disso. Mas era bom ter essa confirmação.

Entrou debaixo do chuveiro e deixou que o jato de água descesse com força sobre si.

Sua mente estava muito confusa...

Não conseguia entender o que tinha acontecido, por que se sentira daquele jeito... Tentava se recordar das estranhas sensações que a acometeram quando enlaçou Gregory com seus braços, mas não conseguia. Sabia que havia sido algo único, mas não conseguia sentir novamente, nem aproximadamente, o que sentira na noite anterior.

Desmaiara nos braços dele. Mas por quê? O que tinha ocorrido? E Gregory... Como conseguira levá-la para casa? Como ele sabia onde ela vivia? Ela sabia seu endereço?

Então ela pensou que obviamente ele tinha esses dados. Gregory não conhecia Mark? Era claro que ele saberia onde ela morava.

Decidida a não ficar mais com tantas dúvidas, resolveu que iria atrás de Gregory. De algum modo, ela sabia: Gregory tinha as respostas.

Depois do banho, sentindo-se um pouco melhor, vestiu-se com pressa e foi bater na porta do amigo. Outra vez, não obteve resposta. Porém, não aceitaria que a situação ficasse assim dessa vez.

Foi até o teatro onde imaginava que o vizinho estivesse fazendo ensaios. Conseguiu entrar nos bastidores sem dificuldades, porque, por mais de uma vez, auxiliara a trupe com serviços de limpeza, costura de figurinos, decoração de cenários, maquiagem...

Mark não estava lá, mas disseram que ele apareceria para um ensaio mais tarde. Agatha então resolveu esperá-lo no local. Ajudaria nos bastidores, como já fizera tantas vezes, até ele chegar. Nessas horas, ela se maldizia por não ter um celular - se bem que isso não faria diferença, pois Mark também não possuía um - o amigo compartilhava de sua visão de liberdade, em que um aparelho celular era apenas uma forma de prisão...

Umas duas horas mais tarde, Mark finalmente apareceu. Antes que ele pudesse cumprimentar todos os colegas, Agatha foi até ele, como um furacão, puxou-o pelo braço até um lugar mais privado e finalmente permitiu que várias palavras presas em sua garganta ganhassem voz:

– Muito bem, chega dessa brincadeira. Eu quero saber qual é a desse Gregory e quero saber agora!

Mark olhou para Agatha completamente confuso. Franziu o cenho e balançou a cabeça negativamente:

– Gregory? Quem? Do que você está falando?

– Do seu amigo jornalista! Aquele para quem você contou a minha história, que demonstrou interesse em fazer uma entrevista comigo...

– Ah... Sei... Mas você disse que não queria dar essa entrevista...

– Sim, Mark! Eu sei muito bem o que eu disse! Só que você não quis me dar ouvidos e falou para o seu amiguinho vir falar comigo mesmo assim!

– Não, Agatha! Eu não faria isso! Eu respeito você e nunca...

– Tá bom, Mark! Chega de brincadeira; eu já sei da verdade, o Gregory já me confirmou! E pode ficar tranquilo; eu não estou brava com você! Só quero que me diga onde e como eu posso encontrá-lo; preciso falar com ele urgentemente!

– Agatha, eu... Puxa... - Mark via-se perdido nessa conversa - Eu juro que não sei do que você está falando... Nem sei quem é esse tal de Gregory!

– Mark, pare com isso! - a garota segurou o amigo pelos braços, demonstrando seu transtorno - Eu só quero saber como posso encontrar o Greg! Ele é seu amigo! É só me dizer em que jornal ele trabalha e eu cuido do resto! Ele não vai ficar chateado com você, eu prometo e...

– Agatha! Agatha, é você quem tem de me ouvir! - Mark falou mais alto - Eu não conheço esse cara! O tal amigo jornalista é, na verdade, o meu namorado, o George. - Mark revelou, apontando para um rapaz que estava ali próximo, conversando com alguns atores do grupo - Até cheguei a falar de você para ele, mas decidimos não levar uma matéria sobre seu estilo de vida adiante porque você me deixou claro que não queria isso. E você é minha amiga; eu não iria desrespeitar uma decisão sua assim.

As palavras do amigo caíram sobre a garota como um balde de água fria:

– Você... não o conhece? Não conhece o Greg? - ela perguntou, atônita.

– Não.

Sem saber o que mais dizer, Agatha olhou para os lados, sentindo-se confusa, perdida. Mark se aproximou, querendo acalmá-la, já que a amiga parecia necessitar de ajuda, mas ela não permitiu que ele se aproximasse; a jovem saiu correndo dali, como se precisasse respirar. Deixou o teatro com pressa, sem compreender o que se passava.

Foi então para uma biblioteca pública e começou a fazer pesquisas em um computador. Procurava por algum Gregory, que fosse jornalista, mas não encontrou nada. E não possuía muitos dados sobre ele, que a ajudassem a rastrear seu paradeiro.

– Que ridículo... O nome dele nem deve ser Gregory... - Agatha balbuciou para si mesma, começando a entender enfim que não sabia qualquer coisa sobre o misterioso rapaz.

A moça permaneceu algum tempo ali, parada, em frente ao monitor do computador, com os olhos perdidos. Estava terminando de absorver essas últimas informações.

Tinha sido enganada? Mas por quê?

Eram muitas perguntas sem respostas e, quando começou a se sentir sufocada novamente, decidiu que precisava caminhar lá fora, respirar ar puro.

Inevitavelmente, terminou indo parar no parque. Era claro que esperava reencontrar o rapaz ali.

Ficou andando a esmo pelo lugar, por algumas horas. Nem sinal dos densos olhos azuis.

Quando já estava bastante tarde, Agatha teve de aceitar que não o encontraria ali e deixou o parque, voltando para seu apartamento.

Entretanto, nos dias que se seguiram, ela voltou para lá. Durante uma semana, Agatha não saía do parque. Andava por todo ele, desde o início do dia até o cair da noite.

Nunca esteve tão abatida. Não compreendia. E, talvez, o ato de não saber o que tinha havido fosse a pior parte.

Assim, uma semana depois, Agatha estava sentada próxima à fonte onde encontrara Gregory pela primeira vez. Sabia que esse não era o nome dele, mas não se importava. Precisava de um nome para recordar-se dele de forma mais concreta. E, mesmo sabendo que não era esse, apegou-se ao nome Gregory como a única lembrança mais real que tinha do rapaz.

Começava a escurecer. E o céu estava particularmente mais escuro nesse dia. Uma tempestade se anunciava.

O vento ia se tornando mais forte. As poucas pessoas que ainda estavam por lá começaram a abandonar o lugar, para se refugiar da chuva que logo cairia.

Mas Agatha permaneceu onde estava. Olhou para o céu, para as nuvens escuras que se acumulavam na abóbada celeste.

Era como se olhasse diretamente nos olhos de Gregory. Era como se mergulhasse uma vez mais naquele olhar tão profundo, tão enigmático.

E se revoltou.

– O que foi? Ficou com medo?! - ela começou a gritar, com os olhos fixos no céu escuro - É por isso que fugiu covardemente?! É por isso que nunca mais voltou?!

Uma rajada mais forte de vento fez com que os fios castanhos chicoteassem seu rosto. Por impulso, ela pensou em amarrá-los em um rabo de cavalo, mas logo mudou de ideia. Lançou o prendedor longe de si, permitindo aos fios castanhos que ficassem soltos e dançassem enlouquecidamente sob o ritmo do vento da noite.

– Vamos lá! Apareça! Eu tenho certeza que você está me ouvindo! Eu sei que está! Eu quase sentia sua presença durante essa semana! Mas você tentava se esconder! Você está fugindo! Que covardia! Não pode, pelo menos, me dar alguma explicação? Eu mereço uma explicação!!!

Um raio relampejou, acompanhado do estrondo de um trovão.

– Ora, você tem medo de quê?! Medo de mim? Por isso mentiu? Por isso me enganou? Quem você pensa que é? Quem te deu o direito de entrar na minha vida, sem permissão?! - Agatha gritava a plenos pulmões, e sua voz duelava com os sons da natureza, que anunciavam uma terrível tempestade.

– Você não tinha esse direito! Não tinha o direito! Por quê? Por que eu?! Por que brincar com meus sentimentos? O que eu fiz para você? Por que me enganar desse jeito?!

Agatha gritava para o nada, com os olhos fixos no céu tempestuoso. As primeiras gotas da chuva já caíam e rolavam por sua face pálida, misturando-se às lágrimas que também começavam a deslizar pelo seu rosto:

– Por que me fez... Por fez com que eu me... - a voz dela já se quebrava e o choro ia crescendo em soluços incontidos.

– Não diga isso. Por favor.

Agatha olhou para trás, assustada. Gregory estava atrás dela.

– Você... De onde você veio?

– Você me chamou.

– Não foi isso que eu perguntei! Eu quero saber como apareceu aqui, de repente!

Gregory nada respondeu e Agatha sentia-se impaciente demais para isso:

– E por que apareceu só agora? Eu estou esperando por você há uma semana!!!

– Eu não podia aparecer.

– Por que não? E por que apareceu agora?! - Agatha voltava a gritar, enquanto a chuva começava a cair com mais força.

– Porque você precisava que eu viesse agora.

– Ah, claro! E é você quem decide tudo? Eu precisava que você aparecesse muito antes! Eu preciso de respostas, Greg! Ou melhor... esse não é seu nome, não é mesmo? E também não é jornalista e nem é amigo do Mark!!! Mentiu para mim em tudo!!! - acusou a garota, em tom raivoso.

– Eu não menti. Eu nunca disse que era amigo do seu vizinho. Você deduziu assim por conta própria.

– Ah, é? E quanto ao seu nome? Você não se chama Gregory, não é verdade? E disse que assim se chamava! Isso não foi mentira??

– Na verdade, não é bem uma mentira.

– Como não???

– Eu não tenho um nome, então precisei inventar um na hora, pois era o que você precisava ouvir.

– Como é?!

– Eu não tenho um nome, Agatha. Bem, não um nome humano.

Os olhos castanhos arregalaram-se, incrédulos do que a moça ouvia:

– Céus... Você é louco... Eu me apaixonei por um louco...

– Não diga isso.

– O quê? Que você é louco? Porque você é sim, e muito mais do que...

– Não. - ele interrompeu a moça - Não diga que se apaixonou por mim. Você não deve. E nem pode.

– E posso saber por que não? - Agatha perguntou, sentindo seu orgulho ferido.

– Eu sinto muito, Agatha. Eu realmente não deveria ter vindo. Mas não pude evitar. Você me atraiu e eu precisei conhecê-la de perto, ver o mundo através dos seus olhos. Eu queria entender... Precisava entender...

– Entender o quê?...

Gregory suspirou. Era visível que o que ele tinha para dizer não era fácil:

– Eu não tenho um nome humano. Mas sou conhecido por uma palavra muito usada na vida de vocês.

Agatha permaneceu em silêncio. Por mais que seu lado racional desejasse ridicularizar o que ouvia, por parecer insanidade, ela não conseguia deixar de escutar com atenção. Algo em Gregory impedia que ela simplesmente deixasse de ouvir o que ele tinha para falar.

– Há quem diga que o destino já esteja feito e que nada pode modificá-lo. Outros dizem que não existe um destino pronto e já traçado, e sim que ele é construído, aos poucos, por cada um...

A moça não entendia aonde o rapaz queria chegar com essa conversa.

– A verdade é que o destino seria uma mistura dessas duas visões. De fato, cada um é responsável por seu próprio destino. As escolhas individuais vão pavimentando o caminho a ser trilhado. Entretanto, uma vez que determinadas ações sejam tomadas, parte de seu destino está construído e não haverá como modificar isso. Mais à frente, aí sim, seria possível modificá-lo, a partir de novas ações tomadas. Mas é ingenuidade achar que para cada ação, não exista uma reação. Para cada atitude tomada, uma parte do destino é construída e deverá ser vivenciada; disso não há como fugir.

– Eu... não entendo por que está me falando isso.

– As pessoas possuem esse livre-arbítrio. - o homem prosseguiu dizendo, como se ignorasse o comentário da jovem - São livres para escolher. Têm o poder de construir seus destinos a cada segundo que passa. Suas vidas poderiam ser incríveis aventuras, emocionantes por estarem sempre à beira do desconhecido! O destino não está pronto, é criado a cada momento! Deveriam, portanto, ousar, arriscar, fazer valer o seu poder de escolha. Contudo, não é o que acontece. A maioria das pessoas parece ter medo de viver. Escolhem sempre o caminho mais seguro, mais provável, mais óbvio... Não se aventuram. Não se lançam às novidades, por medo das consequências. Escolhem o caminho já trilhado por muitos, porque parecem acreditar que, assim, não serão surpreendidas por consequências negativas. Cada um constrói seu destino, mas o que mais vejo são pessoas que não valorizam esse poder. O poder de serem o que quiserem. Constroem destinos iguais, seguindo os mesmos passos de todos, fazendo com que a possibilidade de existirem os mais diversos destinos seja quase nula. E isso... é entediante.

Agatha escutava com atenção, porque o tom das palavras de Gregory era severo, imponente e algo ali parecia muito importante.

– Mas você, Agatha... Você é diferente. Você foge desse padrão; você não se importa, você não tem medo, você se entrega, você se joga sem se preocupar com as consequências, seu destino é incerto e isso, em vez de assustá-la, parece atraí-la. Você... desafia o destino.

A garota sentiu um arrepio diante das últimas palavras de Gregory:

– Eu ainda não entendo... Aonde você quer chegar?...

– O destino, diante disso, ficaria deslumbrado com você, é claro. Quem é essa garota, tão destemida, tão voluntariosa, tão... apaixonante? Você, certamente, despertaria a curiosidade nele...

– Ah, certo. - Agatha riu, um pouco de nervosismo - Você fala como se o "destino" fosse uma pessoa.

– O destino é uma entidade...

– ... é o quê? - indagou a moça, em tom perdido.

– ... mas nada impede que ele seja personificado.

Agatha empalideceu. Finalmente pareceu compreender o que estava acontecendo ali.

– Eu sou o destino, Agatha. E vim até aqui apenas porque queria conhecê-la.

Agatha quis rir. Sim, ela quis debochar disso, quis ridicularizar o que acabava de ouvir. Quis dizer e fazer muitas coisas, mas foi incapaz de realizar qualquer uma delas. Seus olhos castanhos estavam agora profundamente mergulhados naqueles olhos azuis, que se viam mais atraentes do que nunca. Era como mergulhar nas profundidades infinitas do universo...

– Eu não deveria tê-lo feito, no entanto. Há regras. Entidades como eu não poderíamos fazer essas "visitas", por assim dizer. E eu sei muito bem disso... - o homem sorriu de canto, charmoso sem pretensão de ser, e fez Agatha perder-se ainda mais naquele momento - Mas simplesmente não pude evitar. Eu estava entediado. Acompanho os destinos construídos e há tempos, essa tarefa tem me sido frustrante. Os homens têm sido, mais que nunca, temerosos demais. Programam suas vidas, que se tornaram reféns de calendários... Vivem seguindo agendamentos criados por eles próprios... Perderam o prazer de viver. Aliás, viver de fato tem se tornado cada vez mais raro. Nesse cenário, não tinha como sua figura não se destacar. E eu precisava saber o que a motivava, como conseguia brilhar de forma tão única em um mundo onde isso parece quase uma proibição.

– Você... fala como se eu fosse assim tão diferente...

– Aos meus olhos, você é. Há grandes personalidades remanescentes nesse mundo, é claro. Porém, eu me senti mais atraído por você. Há algo em você... Há algo no seu olhar... Eu precisei ver de perto. - dizendo isso, o homem se aproximou mais da jovem.

Agatha já não compreendia mais o que se passava exatamente com ela, e não se importava. Havia uma atração forte demais, o ar até mesmo pesava em torno de si. A tempestade caía com força agora; o céu parecia desabar sobre a terra. Entretanto, era como se ela não fosse mais capaz de sentir. Seus olhos estavam inteiramente perdidos no olhar cheio de escuridão do Destino.

– Entretanto, essa aproximação... Há um motivo pelo qual eu não deveria... - o homem elevou sua mão e afastou os fios molhados que se colavam ao rosto de Agatha, como se lhe fizesse uma carícia. A jovem sentiu os dedos frios dele, ainda mais frios que a chuva torrencial que se abatia sobre os dois - Eu não deveria estar aqui... Não devo estar aqui.

A presença dele era entorpecente. Agatha sentia frio, mas essa sensação era cada vez a que menos predominava. Ela estava agora com os olhos entreabertos e, em dado momento, percebeu sua respiração acelerada como nunca; seu peito subia e descia com rapidez. Tentando se controlar, ela buscou respirar com calma, pois sentia algo semelhante à noite em que desfalecera nos braços do homem a quem conhecera como Gregory. E Agatha não queria desmaiar novamente. Essa sensação única se agigantava e ela desejava estar ali, consciente e não se entregar. Era o começo e o fim, ao mesmo tempo.

Impressionante como, subitamente, ela parecia tão sensível! Era como se seu corpo fosse capaz de perceber coisas mínimas, como o movimento da Terra. A moça sentia o mundo girar, sentia o ar que a rodeava como uma carícia em meio à tempestade que desabava sobre ela, como se desnudasse violentamente sua alma. Sim, Agatha sentia-se inteiramente descoberta, a sensação de que nunca esteve tão exposta a dominava agora. Era até mesmo capaz de ouvir as próprias batidas do coração. Seu coração batia rápido demais e lhe dava a impressão de que explodiria se continuasse nesse ritmo.

Todas as sensações eram fortes, intensas e dominadoras. Agatha sentia-se afogar nelas. Era desesperador. Mas era um desespero prazeroso... nem ela mesma compreendia como isso era possível, mas sentir-se desaparecer em meio a essas sensações tinha algo de delicioso.

– Eu... - os lábios de Agatha pronunciaram, devagar, palavras que irrompiam das profundezas de sua alma - Eu quero... que esteja aqui... - Os olhos castanhos, semiabertos, pareciam reclamar algo daquele homem. E a linguagem entre os olhares fez-se entender de forma soberana.

O homem levou uma mão à nuca da garota e a outra à sua cintura. Puxou-a para si delicadamente e, com os olhos muito azuis fixos nos dela, aproximou o rosto de Agatha, que finalmente compreendeu o quanto estivera esperando por aquele momento.

Era como se, a vida inteira, esperasse por isso. E a ansiedade sentida nesse instante fazia parecer que o momento chegava até mesmo com algum atraso, porque Agatha sentia a sede de uma vida inteira, a necessidade de saciar algo que parecia maior que sua existência.

Os lábios enfim se tocaram. Gentilmente, a princípio, permitiram apenas o reconhecimento do toque delicado. Porém, o primeiro contato, tímido inicialmente, e que demonstrava maior interesse em conhecer o outro lado, logo se transformou. De ambas as partes, havia a sede, o desejo. E o vigor se tornou parte de um beijo que crescia, parecendo apaixonado demais, mas com a intensidade ideal para duas existências que pareceram se complementar naquele momento.

O beijo era avassalador e tragava toda a essência de Agatha. Era paradoxal; o beijo a enchia de vida, mas também parecia arrastar essa vida para longe. Era como se desaparecesse nesse beijo, que a levava para longe de si mesma.

O frio crescia e era como se estivesse envolta por um redemoinho. Sua mente girava, seu corpo ia se desconectando de seus pensamentos, as sensações prevaleciam e eram, ao mesmo tempo, intensas e vazias, porque nasciam com força, mas logo pareciam sugadas e arrancadas de si.

E, de repente, no ápice desse momento, Agatha, sentindo que se aproximava de um clímax que, de alguma maneira, acabaria levando-a ao desaparecimento completo, aferrou-se com mais força ao corpo do outro. Era inebriante; ela tinha certeza de que estava prestes a sumir, desaparecer, deixar de existir, sem que ficasse qualquer vestígio. Simplesmente, ela sabia, sentia isso. Quanto mais se entregava àquele beijo, mais ela deixava de ser e passava a apenas sentir.

Foi nesse instante, um segundo antes de isso tudo se concretizar, que o homem interrompeu o beijo. Partiu-o de forma abrupta; deu dois passos para trás, tropegamente.

A ruptura daquele momento foi muito sentida por Agatha. A garota quase foi ao chão, sentindo-se desamparada. Entretanto, em questão de segundos, seu corpo pareceu retomar a força que estava perdendo. Era tão estranho; se alguém pudesse descrever a sensação de vida sendo influída em sua existência, seria a descrição do que exatamente se passava com Agatha agora.

– É por isso... que eu não deveria... - o homem viu-se também alterado. Notava-se que algo igualmente poderoso havia acontecido com ele - Se... eu fizer... Se eu... - Agatha observou atenta; ele parecia sem fôlego, mais corado, como se estivesse mais... vivo.

– Se fizer o quê? - ela perguntou, ansiosa.

– Se eu me aproximar mais de você... Como agora... Isso não será bom.

– Por quê...?

– Você sabe; você também sentiu. Eu não sou como você e essa proximidade... Ela faria com que eu absorvesse tudo o que você é. É como se... eu fosse feito de vazios e você, por ser tão cheia de vida, se perdesse dentro de mim.

– Isso faria você ser mais humano?

– Não. Eu sou como um buraco-negro; apenas sugaria tudo o que você é, mas isso não me faria humano

– E o que aconteceria comigo...? Deixaria de existir?

– Da maneira como você se conhece, sim. Digamos que você passaria a viver em mim.

A chuva continuava caindo, sem piedade. Agatha voltava a senti-la. E começava a compreender o que o homem à sua frente dizia. Durante aquele beijo, experimentou a sensação de quase não existir. Foi um torpor diferente de tudo o que já havia sentido. E agora regressava à vida, de certa forma. Voltava a sentir as gotas d'água sobre sua pele e isso lhe fazia sentir viva como nunca.

Entretanto, a atração por aqueles olhos azuis era forte, maior que ela mesma:

– E se eu quiser desaparecer em você?

Os olhos densos de escuridão e mistério demonstraram surpresa.

– E se eu quiser ir embora, desaparecer com você, em você?... - ela repetiu.

– Você não sabe o que está dizendo. Você fala em abrir mão de coisas que nem imagina...

– Eu não me importo.

– Deveria. Seu mundo pode desaparecer, vir abaixo...

– Já disse que não me importo. Se eu estiver com você... E eu quero estar com você. Ver o que você vê... Juntos. Não seria bom? - havia um ar sonhador, um tanto alucinado, nos olhos de Agatha - Eu não faço bem a você?

– Na verdade, faz. Até demais. Eu fico mais forte com você.

– Então... sejamos um, assim... - a jovem proferiu essas palavras em um tom que misturava loucura e paixão - O mundo já está desabando... O céu já está caindo com essa tempestade... Então, deixe tudo desmoronar... E fiquemos juntos...

Os olhos do Destino eram enigmáticos. Fitavam a garota, de forma perscrutadora. Existia um brilho diferenciado naquele azul profundo. Havia tentação ali, definitivamente.

Ele estava tentado. Ela oferecia. Ele queria aceitar...

Agatha tomou a decisão por iniciativa própria. Abraçou-se ao homem, desejando fundir-se a ele.

– Eu quero desaparecer aqui... Eu me sinto segura aqui...

E foram essas palavras que pareceram despertar o Destino:

– Não. - a negativa soou forte - Não. É exatamente por isso que eu não devo. - ele desvencilhou-se dos braços de Agatha e, novamente, afastou-se.

– Como assim? Por que não?

– Você nunca buscou segurança. Essa não é você. Esse é o problema, Agatha. Essa não é você.

A moça riu, tensa:

– É claro que sou eu! Do que está falando?

– Você não pode desaparecer. Preciso que continue existindo, preciso que continue sendo a representação de tudo o que é contrário a mim. Eu já quase não me surpreendo. Mas você é diferente. Não posso arrastá-la para isso.

Agatha não compreendia. Queria falar, mas foi impedida pelo Destino:

– Isso tudo é grande demais para você conceber. Você não sabe o que está dizendo e eu não posso tirar vantagem de uma situação como essa. Não seria... certo.

– Você não sabe disso! Não sabe o que eu sinto!

– Nem você. Está entorpecida, inebriada por sensações novas. Minha presença deturpa seu julgamento. Essa não é você. Não posso levá-la comigo. Eu preciso que fique aqui e que seja... quem sempre foi.

Agatha parecia perdida. Escutava aquelas palavras, sabia que elas faziam sentido, mas não conseguia concebê-las logicamente. Era tão esquisito; sentia como se fosse ela quem estivesse ali, ao mesmo tempo em que não se reconhecia.

– Você sempre foi maior que seu próprio destino. Como poucos, soube comandá-lo, dominá-lo, vencê-lo. Por isso me atraiu. Você é mais forte que eu e por isso quis me aproximar, entendê-la. Eu não posso levá-la comigo, Agatha... - a chuva se debatia com força sobre eles, mas o mundo parecia desabar à parte dos dois, que eram quase insensíveis à tempestade que fazia o céu cair sobre ambos - Porque, se você viver em mim, você estará submetendo sua existência ao destino, algo que nunca fez. - levando a mão ao rosto molhado da jovem, fez-lhe uma carícia com o toque frio de seus dedos - Eu preciso que você exista, livre da força do destino. Para isso, eu preciso me afastar. Perdoe-me. Nunca deveria ter me aproximado tanto. Atraído por você, quase a levei a desaparecer...

– Você... pensa que é simples assim? Depois de entrar na minha vida, de fazer o meu mundo colidir com o seu, acha que pode simplesmente desaparecer? Desde que você sumiu, meus dias foram povoados de escuridão...

– Não será mais assim. Eu lhe prometo. Você não irá se lembrar de nada.

– Vai apagar minha memória?! - indignou-se a moça.

– Será uma consequência natural... e necessária.

– Mas eu não quero me esquecer! E você, quer me esquecer?

– De certo modo. Preciso fazer com que sua existência volte a ser apenas um número para mim, assim como todas as outras vidas nessa terra o são. O afastamento é crucial para isso...

– E é isso mesmo? Minha importância se resumirá a um número para você? Eu não serei mais um nome, deixarei de ser alguém de forma significativa?

O homem sorriu, singelo:

– Você sempre será significativa, Agatha. Mas o que você significa para mim só será possível se eu agir assim. Essa experiência me fez conhecer algo inominável... Despertou-me para novas eras... Foi uma transformação impressionante, à qual devo dar continuidade. E, para tanto, você deve seguir sendo o que é. Não há como me compreender por inteiro, há questões que vão além de sua compreensão. Entenda, apenas, que existe uma luz em você, responsável por me guiar nessa jornada. É essa sua imensa significância. Você me guiará assim.

– Uma luz-guia. É isso o que quer de mim?

O silêncio do homem era uma resposta afirmativa.

– Você prefere que eu o guie, em vez de ser seu coração?

– O Destino não foi feito para ter um coração, Agatha. O Destino é um grande vazio, um vácuo que começa a ser verdadeiramente preenchido quando o coração fala mais alto e o guia na direção do caminho que deve ser trilhado. Destino e coração se complementam, mas não devem se fundir. Um precisará estar sempre à frente do outro, guiando o outro...

– O coração deve guiar o Destino...?

– O coração deve existir e ser da mais plena forma que puder, para que o Destino possa, guiado por ele, encontrar seu caminho.

– Separados...?

– Separados, mas eternamente ligados assim.

As palavras iam fazendo cada vez mais sentido. Entranhavam-se no coração de Agatha, que finalmente as compreendia, embora dolorosamente.

– Para sempre? Ou haverá um momento em que eles poderão se encontrar novamente? Ao fim da jornada, o guia não poderá enfim se reencontrar com aquele que lhe seguia?...

– Talvez... - os olhos azuis, que prendiam os castanhos aos seus, de um jeito que o resto do mundo parecia não existir para a garota, tornaram-se doces e gentis - Feche os olhos, Agatha.

Como se estivesse hipnotizada, a moça apenas obedeceu. O contato visual se desfez, diluindo-se em um beijo cálido, sereno, tranquilo. O beijo era anestesiante; Agatha foi vagarosamente deixando de sentir o mundo ao seu redor.

– Talvez...? - sua voz, fraca e lânguida, fez-se ouvir uma última vez.

– Sim. Um dia, quem sabe... Talvez.

E tudo se tornou escuridão.

***************************************************************************

Despertou em sua cama. Os olhos doíam e eram ainda mais feridos pela luminosidade de uma manhã estonteante, que inundava o pequeno apartamento, adentrando pela janela do local.

Acostumou-se à claridade aos poucos, sentindo-se um pouco zonza.

Percebeu que usava roupas bastante amarrotadas.

Lembrou-se da chuva. Havia pego uma tempestade. E, pelo visto, dormira com as roupas molhadas.

– Preciso ser mais responsável. Ainda fico doente, se continuar desse jeito. - repreendeu-se e levantou-se da cama. Foi tomar um banho; depois, seu café da manhã.

Deixou o apartamento e cumprimentou o vizinho, que lhe acenou alegremente enquanto saía do prédio, junto do namorado.

Nada do que foi parecia ter sido.

Por um instante, Agatha teve a impressão de que algo era esquecido.

Mas nem ela, nem seu vizinho, pareciam realmente se aperceber disso. E a garota não deu maior atenção a essa mera impressão.

Agatha achou que estava um dia muito bonito. Saiu com seu violão, tomada por uma grande vontade de tocar, cantar e deixar a música coroar aquela manhã tão clara e luminosa.

Inicialmente, tinha pensado em ir à praia. Porém, algo dentro de si fez com que mudasse sua rota e terminasse encaminhando-se ao parque.

Sentou-se próxima à fonte.

Sentia-se bem.

Posicionou o violão.

Olhou para o céu.
Tão resplandecente quanto aquela manhã, o rosto da garota se iluminou.

Os olhos castanhos brilharam intensamente, parecendo investigar a vastidão atraente do firmamento...
E Agatha sorriu.

O infinito é a promessa da incerteza de todas as coisas.

Tudo pode ser.

Até mesmo o impossível pode, um dia, acontecer.

Um dia, quem sabe...

Talvez.

******

Skyfall

Adele

This is the end
Hold your breath and count to ten
Feel the earth move and then
Hear my heart burst again

For this is the end
I've drowned and dreamt this moment
So overdue, I owe them
Swept away I'm stolen

Let the sky fall
When it crumbles
We will stand tall
Face it all together
Let the sky fall
When it crumbles
We will stand tall
Face it all together
At skyfall
At skyfall

Skyfall is where we start
A thousand miles and poles apart
Where worlds collide and days are dark
You may have my number
You can take my name
But you'll never have my heart

Let the sky fall (let the sky fall)
When it crumbles (when it crumbles)
We will stand tall (we will stand tall)
Face it all together
Let the sky fall (let the sky fall)
When it crumbles (when it crumbles)
We will stand tall (we will stand tall)
Face it all together
At skyfall (at skyfall)

(When it crumbles)
(We will stand tall)
(Let the sky fall)
(When it crumbles)
(We will stand tall)

Where you go, I go
What you see, I see
I know I'd never be me
Without the security
Of your loving arms
Keeping me from harm
Put your hand in my hand
And we'll stand

Let the sky fall (let the sky fall)
When it crumbles (when it crumbles)
We will stand tall (we will stand tall)
Face it all together
Let the sky fall (let the sky fall)
When it crumbles (when it crumbles)
We will stand tall (we will stand tall)
Face it all together
At skyfall

Let the sky fall

We will stand tall
At skyfall

[TRADUÇÃO:]

Queda do Céu

Este é o fim
Segure sua respiração e conte até dez
Sinta a terra se mover e então
Ouça meu coração explodir novamente

Pois este é o fim
Eu me afoguei e sonhei este momento
Tão esperado, eu devo a eles
Emocionada, fui arrastada

Deixe o céu cair
Quando desmoronar
Estaremos de pé, orgulhosos
E iremos encarar a tudo juntos
Deixe o céu cair
Quando desmoronar
Estaremos de pé, orgulhosos
E iremos encarar a tudo juntos
Na queda do céu
Na queda do céu

Na queda do céu é onde começamos
Separados por mil milhas e polos
Onde mundos colidem e dias são escuros
Você pode possuir meu número
Você pode tirar meu nome
Mas você nunca terá meu coração

Deixe o céu cair (deixe o céu cair)
Quando desmoronar (quando desmoronar)
Estaremos de pé (estaremos de pé)
E iremos encarar tudo isso juntos
Deixe o céu cair (deixe o céu cair)
Quando desmoronar (quando desmoronar)
Estaremos de pé (estaremos de pé)
E iremos encarar tudo isso juntos
Na queda do céu (na queda do céu)

Quando desmoronar
Estaremos de pé
Deixe o céu cair
Quando desmoronar
Estaremos de pé

Aonde você vai, eu vou
O que você vê, eu vejo
Sei que nunca serei eu
Sem a segurança
De seus braços amorosos
Me mantendo longe do perigo
Coloque sua mão na minha
E estaremos de pé

Deixe o céu cair (deixe o céu cair)
Quando desmoronar (quando desmoronar)
Estaremos de pé (estaremos de pé)
E iremos encarar tudo isso juntos
Deixe o céu cair (deixe o céu cair)
Quando desmoronar (quando desmoronar)
Estaremos de pé (estaremos de pé)
E iremos encarar tudo isso juntos
Na queda do céu

Deixe o céu cair

Estaremos de pé
Na queda do céu

******


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