A Última Rosa escrita por Estressada Além da Conta


Capítulo 1
Única Rosa


Notas iniciais do capítulo

Não me responsabilizo por possíveis lágrimas. Mas leia, eu gostei, talvez você também goste.



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- Quer ver?

Foi a última coisa que ouvi antes de Mary empurrar eu e Garry para dentro da caixa de brinquedos. Mary... Ela só não queria continuar sozinha nesse mundo louco. Era só uma garotinha de cinco anos condenada a ficar num mundo insano por toda a sua existência. Triste existência. Sozinha. Cercada por pinturas e esculturas frias. Vendo as pessoas indo e vindo, sem poder possuir o mesmo direito. O de ir e vir. O de ir. Tão solitária, em seu vasto pequeno mundo. Com suas rosas falsas de espinhos verdadeiros. Sorrindo a cada dia. Definhando a cada sorriso. Sofrendo só. Só sofrendo.

Abri meus olhos, fitando o chão rabiscado daquela sala estranha. A rosa amarela, que eu pegara sem Garry ver, logo após saber da verdadeira natureza da loira, queria sair do bolso de minha saia. Não permiti. Eu a mantive ali. Onde a minha também deveria estar. Onde estava? Levantei-me. Bonecas azuis sorridentes. Manequins sem cabeça, cabeças sem manequins. Um trem quebrado, fim da linha. Encontrei Garry Corri até ele. Sua rosa, tão azul, tão Garry, também queria sair do bolso de seu casaco. Não deixei. Era a vida dele, era o espírito dele em forma de flor. Era minha certeza de que ele estava bem. Balancei seus ombros levemente. Garry acordou.

- Off... Eu bati a cabeça. Você está bem, Ib? – Sempre gentil. Garry parecia se preocupar mais comigo do que com si mesmo. Era loucura da parte dele, mas onde estávamos se não num lugar de loucos?

- Estou bem. – Respondi.

- Que bom! – Ele sorriu, mas o sorriso logo se apagou ao me analisar – Ib, você está pálida. O que houve?

- Minha rosa. – Respondi simplesmente.

- Você perdeu sua rosa? Não se preocupe, vamos achá-la.

Sempre tão otimista. Depois de papai, Garry era o homem mais incrível que eu já conhecera. Gentil e educado, se preocupava muito por mim, e também por Mary. Mesmo sendo medroso, fazia de tudo por nós. Uma pessoa tão boa... Que talvez eu nunca mais veja, mesmo saindo os dois dali... Pois sim, num dos livros que encontrei, onde não havia nada de importante, achei um pequeno aviso no rodapé da última página:

"Um só pode existir quando o outro deixar de existir. Num grupo de três, dois saem. Um sempre fica triste. A solidão sempre traga o que consegue alcançar".

Nunca comentei isso com ninguém. No começo, nem mesmo entendi. Mas agora eu entendo. Um deve ficar para que dois possam sair. Uma alma em troca de duas. Um por todos. Nenhum por um. Não importa o quanto tentassem, um sempre ficaria para trás. Um sempre ficaria triste. Sempre. Final feliz só existe para números pares.

- O que é isso? Um presente pra mim?

- Mary! – Ele exclamou. Nós corremos até ela, que pegava minha rosa das mãos de uma das bonecas.

- Ib! Garry! – Ela parecia surpresa em nos ver.

- Mary, essa rosa... – Garry começou.

- Ah, é a rosa da Ib? Bem que eu pensei já tê-la visto antes...

- Devolva-a, por favor. – Ele pediu.

- Você a quer de volta, Ib? – Meneei a cabeça, confirmando – Então que tal uma troca? A rosa de Ib pela rosa do Garry. Eu sempre gostei mais de azul... Por causa de Cherry e suas irmãs... – Ela se referia à boneca azul de vestido amarelo que lhe entregara minha rosa vermelha.

Olhei para Garry, preocupada. Ele sorriu para mim e disse que ficaria bem. Mentiroso. Mentiroso. Nada ficaria bem. Ele não ficaria bem. Mentiroso. As mulheres daqui gostam de "Bem-me-quer, mal-me-quer". Mentiroso. Nada ficaria bem. Nada! Mentiroso!

- Certo, Mary, vamos trocar.

- Sério? Eba! Azul é bem melhor! – Ela comemorava.

Eu os amava. Amava tanto quanto amava meus pais, talvez até mais. Eu queria que eles fossem felizes Mas, se eu saísse, um deles deveria ficar. Para sempre. Sozinho para sempre. Eu os amava. Queria que fossem felizes. Esse amor, esse desejo. Eles me consumiam. Eles me deram força para fazer o que fiz. Para fazer algo por eles. No momento em que as duas pessoas que eu amava iam trocar as rosas, eu as tirei de suas mãos. Rápida, porém com cuidado para que não se machucassem.

- Ib?! – Eles exclamaram juntos – O que está fazendo?!

- Uma escolha. – Respondi, correndo para fora daquele lugar. Duas grandes bonecas impediam a passagem, mas quando me viram correndo para elas, saíram do caminho – Obrigada! – Agradeci, virando-me um pouco e vendo Garry correndo atrás de mim, com Mary um pouco mais atrás.

- Ib! IB!

Continuei correndo. Passei por um lugar fechado por grandes rosas amarelas. O quarto de Mary, eu supus. Mesmo assim, continuei correndo. Todos os momentos que tive com eles passando por meus olhos como um filme. Saí da casa e fui para o prédio rosa. Havia esquecido a chave e não tinha como voltar. Garry gritava meu nome. A porta se abriu sozinha. A galeria parecia saber de meus planos. Ou pelo menos suspeitava. Ela realmente não se importava com quem ficasse. Desde que alguém ficasse. E meu plano era bem simples: Ser esse alguém. Um ficaria sozinho. Dois sairiam. Eu disse à Mary que me sacrificaria. Eu não estava mentindo. Lágrimas começaram a sair depois que entrei numa parte da galeria igual a real. Mas eu sabia que não era real. Corri até aquela enorme pintura. Mundo... Eu não conhecia a palavra. Mas algo sussurrava em meu ouvido. "Aqui, Ib. Aqui, Ib. Aqui começa, aqui termina.", sussurrava. Parei em frente ao quadro, e a moldura sumiu.

- I... Ib... – Garry estava sem fôlego quando parou a meio metro de mim – P... Por que você...?

- Garry. Dois saem. Um fica. É a regra.

- Então vamos juntos...

- Não. Eu amo os dois. Quero que sejam felizes. Um sempre fica. Sozinho. Triste.

- Ib! Garry! – A voz de Mary estava cada vez mais perto. Meu tempo estava acabando.

- A galeria precisa que alguém fique. Não importa quem.

- Ib, não! Você não pode! – Ele avançou, porém fui mais rápida e me esquivei. Garry tropeçou e caiu dentro da pintura. Não tinha mais volta. O primeiro havia ido – Ib! Ib! IB! – Ele pôs-se a gritar, mas uma parede invisível o impedia de voltar. O direito de ir e vir. O direito de ir.

Sorri para ele e me escondi nas sombras. Mary veio logo depois, e ficou assustada ao ver Garry ali. Aproximou-se com cuidado, ficou nas pontas dos pés e tocou a mão direita dele. A parede que o impedia de voltar não a impedia de ir. A segunda ia pelo mesmo caminho.

- Garry? O que...? Como...? Cadê Ib?

- Mary, a Ib...! – Garry começou, mas fui mais rápida. Saí das sombras, ficando atrás de Mary.

- Aqui. – Disse e a empurrei. Mary perdeu o equilíbrio e caiu nos braços de Garry – Sejam felizes... – Dei um último sorriso e joguei as duas flores para eles, que gritavam meu nome.

A moldura do quadro apareceu novamente, e eles sumiram. Estavam bem. Voltei-me. Estava sozinha. Como Mary estava antes. Mas, diferente dela, fora escolha minha. Quando amamos as pessoas, queremos vê-las felizes, não? Voltei até o quarto bloqueado por rosas amarelas. Tudo ao meu redor parecia estar desmanchando. Foi tudo criado por Mary. Sem ela, aquele lugar não tinha motivos para existir. Ouvi alguém se aproximar. Olhei para trás. Cherry.

- Ela se foi, não foi? – Ela me perguntou, com uma voz fininha carregada de pesar.

- Foi.

- E... Agora?

- Você é a boneca de Mary. O que ela faria?

- Desenharia. Conversaria sobre o mundo lá fora. Faria histórias dela com muitos amigos. Todas envolvendo doces, luzes, alegrias e... Eu. Mas ela foi embora.

- É, ela se foi.

- Estou sozinha. Eu, minhas irmãs e...

- Todos os outros... – Alguém completou. A Dama de Vermelho.

- É... Eu também... – Comentei, analisando as rosas. Elas pareciam ainda mais sem vida que antes. Como se alguém estivesse raspando o giz de cera.

- Acha que fez uma boa escolha, menina? – A Dama perguntou.

- Quem sabe...

- Vai ficar presa por toda a eternidade. Ou até alguém trocar de lugar com você.

- Então eu sou daqui agora... – Um sorriso surgiu em meus lábios. Não era feliz. Não era triste. Nem sarcástico. Tampouco resignado. Era apenas um sorriso –... Por toda uma eternidade.

Ainda sorrindo, toquei uma das rosas que impediam minha passagem. Ela lentamente se tornou rubra. As outras ficaram com a mesma coloração. As flores e seus espinhos recuaram. Subi as escadas, entrando no quarto de Mary. As duas me seguiram. Fui até o final da sala, e lá, na parede, estava uma moldura vazia com uma placa embaixo. "Mary". Era a pintura dela. O lugar que ficava dia após dia. Por toda uma pequena eternidade. O lugar onde não queria estar. Sua prisão. Um sempre fica.

Toquei a moldura. Ela se tingiu de carmim. Carmim reluzente. A placa alterou-se. "Rosa Carmesim". Aquele era meu nome ali? Elegante. Combinava. Mary ficava ali, sozinha. Um só pode existir quando o outro deixa de existir... Ou até alguém trocar de lugar com você... A galeria apenas precisa de alguém... Pois foi alguém que a criou... Um fica, dois vão. Um fica, outros vão. O um sempre fica. O um é solitário. O um é apenas... Um.

- O nome... Está errado... – Murmurei, tocando a placa, que logo se reescreveu. "Última Rosa" – Esse combina melhor... Já que... Esse é meu lar... – Virei-me para as duas figuras que me olhavam assombradas –... Por toda eternidade... A Galeria de Guertena... É única... Assim como eu... A única rosa... A última rosa... Uma rosa sempre fica... Sempre... – Comecei a andar, me preparando para sair dali.

- Aonde vai? – A Dama questionou. Parei, mas não me virei.

- Para onde? Para o único lugar em que eu posso ir... Lugar Nenhum... Não vou sair daqui, certo? – Concluí, recomeçando a andar. Eu ia apenas andar. Sem nunca chegar a algum lugar.

Foi a sina que escolhi para mim.

Foi a maldição que lancei em mim mesma.

O0o0o0o0o0o0o0oo0o0o0o0o0o0o0O

Eu não me lembro do que estava fazendo. Voltei-me para a pintura. Mundo... Não conheço essa palavra... Vi uma rosa azul jogada no chão e a peguei. Algo nela me deixava inquieta. Resolvi sair dali e continuar olhando a galeria. Vi papai e mamãe olhando um grande quadro de uma criança levando bronca da mãe. Peguei um corredor. Lá no fim dele, vi um homem alto usando roupas estranhas. Olhava uma escultura de rosa. Aquilo me dava saudade. Saudade de quê? Sei lá. Aproximei-me.

- O que você está olhando? – Perguntei.

- Ah, olá. – Ele sorriu. Senti que já conhecia esse sorriso – É uma escultura de rosa, eu acho... Quando olho para ela... Sinto-me um pouco triste... – Olhei para ele confusa – Não... Não é nada... Esqueça isso, Mary... Espera! Quem é Mary?

- Eu sou Mary!

- Você? Olhando bem... A gente não se conhece? – Ele parou por um momento e sorriu – Desculpe-me. Dizendo coisas estranhas tão de repente... Bom... Adeus... – Virou-se para ir embora, e vi a rosa amarela em seu bolso. Segurei seu braço – Sim?

- Garry... – Balbuciei.

- Sim... Meu nome é Garry... – Então Garry viu a rosa que eu segurava com a outra mão – Essa rosa...

- Seu bolso...

- Hã? – Ele tirou a rosa amarela, que agora era real, do bolso – Essa rosa... É a de... Mary... Sim, a menina loira que conheci na galeria de Guertena... Mary... Nós conseguimos! – Do que esse louco estava falando?

-...

- Você não se lembra? Aquela vez que me recusei a ler aquele livro... E quando nos separamos... E quando me ameaçou com a faca de paleta... Foi assustador... – Arregalei os olhos. Garry!

- Garry... Então nós... Saímos?

- Sim, nós saímos, Mary! Aliás, seja bem vinda ao nosso mundo! – Garry sorriu e eu me joguei em seus braços. Ele me girou. Eu estava livre! Finalmente! – Finalmente! Estou no mundo de Ib e Garry!

- Sim, não é ótimo, Ib? – Ele parou de me girar e nos olhamos. Ib! – Mary, a Ib não saiu com você?

- Não... – Garry me colocou lentamente no chão – Eu me sinto estranha... Como se estivesse esquecendo algo... Garry, vamos procurar Ib!

- Certo!

Começamos a procurar. Procuramos por cada maldito cantinho daquele lugar. Evitamos os pais de Ib, que eu sentia que eram meus pais. E não sentia ter uma irmã. Isso estava me preocupando. Algo importante estava sendo cada vez mais empurrado para o fundo de minha mente. Em algum momento, me separei de Garry, e quando o encontrei, estava parado feito uma estátua, olhando para um quadro. Corri alcançá-lo.

- Garry! Por que está aí parado?! Temos que achar Ib!

- Não precisa mais procurar, Mary.

- Como assim não precisa?!

- É inútil. Você não lembra? – Então apontou para o quadro – Sejam felizes...

Eu o visualizei melhor. Era a imagem de uma garota de cabelo castanho. Estava com os olhos fechados, mas eu sabia que eram vermelhos. Pois ela era Ib. Estava sentada em um trono feito de roseiras e espinhos. O trono encontrava-se entre duas roseiras. Uma de rosas azuis e outra de rosas amarelas. Mas a única rosa vermelha estava entre as mãos pequenas dela, com as pétalas logo abaixo do queixo, deixando à mostra o pequeno sorriso nos lábios dela.

- Ela... Ficou lá? – Indaguei, com um pouco de medo da resposta. Mesmo já sabendo qual era.

- Sim... Antes de você chegar, ela me disse que um sempre fica... A galeria precisa que alguém fique... Um fica, dois saem.

- Sejam felizes... Ela havia me dito que, se só dois pudessem sair, ela se sacrificaria... E foi o que fez...

- Abriu mão de tudo por nós...

- Não pode ser... Não pode ser! – Gritei e saí correndo. Precisava encontrar o quadro. O grande quadro do Mundo Seja-O-Que-For. Ele me levaria de volta. Eu não deixaria Ib sozinha lá!

- Mary!

Sabia que Garry corria atrás de mim, mas ignorei. Virei o corredor onde deveria estar o quadro, mas... Não havia nada lá. Apenas a parede em branco. A pintura tinha sumido, sem deixar marca, como seu nunca tivesse existido. Mas eu sabia que existia. Ajoelhei-me. Comecei a esmurrar a parede branca. Lágrimas escorriam de meus olhos. Por quê? Por quê?! Prometemos que ficaríamos juntas! Então... Por quê?

- Mary... É impossível... – Ouvi a voz de Garry atrás de mim.

- Ela está sozinha... – Disse, ainda soluçando.

- Sim...

- E nós estamos aqui... – Enxuguei as lágrimas.

- Sim...

- Por quê?

- Não sei...

- Ela disse para sermos felizes...

- Sim...

- Felizes sem ela...

- Sim... – Eu me levantei.

- E agora?

- Vamos viver por ela. Realizar seu último desejo. E, sempre que possível, vir aqui visitá-la.

- Ela está...?

- Não! Não, está viva! Você mesma a viu.

- Sim, eu vi.

- É... A Última Rosa...

- Uma rosa sempre fica...

Aproximei-me de Garry e ele me abraçou. Começamos a chorar. Ib havia aberto mão de tudo por nós. Estava decidido. Íamos realizar o último desejo de Ib. Viveríamos por Ib. Eu daria aos pais dela amor e carinho por mim e por ela. Eu e Garry visitaríamos a galeria sempre. Não a deixaríamos sozinha nesse mundo. Mas, no fundo, sabíamos que estava sozinha. Sabíamos que, quando ninguém estava olhando, ela abria os olhos vermelhos cheios de saudade e tristeza. E então ela nos veria chegar, conversando, e continuaria sorrindo, para nos confortar. Um sorriso cheio de amor e vazio de arrependimento. Porque ela era Ib. Nossa Ib.

Em um buque de mil rosas coloridas, a vermelha sempre é a primeira a ser pega. E a última a ser deixada. Sempre... A Última Rosa.


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Notas finais do capítulo

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