O Legado escrita por The Evil Queen


Capítulo 4
Infância




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Um ano depois...

Will estava deitado em um canto escuro da cela onde as luzes fracas das chamas não o alcançavam, o chão de pedras frias e ásperas abaixo de seu corpo arranhava sua pele causando-lhe desconforto.

Ele abriu os olhos, despertando lentamente, e olhou o ambiente ao redor tentando se situar, sua visão estava embaçada e a iluminação do local não era favorável, sua cabeça doía e a respiração estava descompassada.

Aos poucos seus olhos foram se acostumando a pouca iluminação do espaço em que se encontrava, mas sua visão demorou até se alinhar para que ele pudesse perceber que ainda estava trancado no porão.

Ele sentiu o corpo todo pesar e jogou-se para frente com dificuldade tentando se sentar. Tateou a parede buscando apoio para se levantar, encontrou uma pedra saliente e agarrou-se a ela para colocar o corpo de pé. Arriscou dar um passo pra frente e cambaleou voltando a apoiar-se na parede de pedras antes que fosse jogado ao chão. Balançou a cabeça de um lado para o outro na tentativa de afastar a sonolência. Procurou regular a respiração e organizar os pensamentos confusos, conseguiu firmar-se de pé e caminhar sem o auxilio da parede em que se apoiava.

Reparou que do outro lado da cela havia uma mesa de madeira e sobre ela um jarro de barro com água, uma tigela também de barro e um pano. Ele forçou seus pés a caminharem em direção á mesa e se apoiou nela quando a alcançou, as tábuas de madeira rangeram ao serem pressionadas pelo peso de seu corpo, mas ele ignorou o ruído tentando concentrar-se para despejar parte da água do jarro dentro da tigela.

Juntou as duas mãos formando uma concha e as imergiu na água gelada agrupando um pouco do líquido e jogando-o contra a face para se refrescar, lavou o rosto e a nuca e encharcou acidentalmente a camisa apertada no corpo fazendo com que a água se misturasse ao suor salgado impregnado nas roupas e na pele morena. Apanhou o pano e usou para enxugar o excesso de água no rosto e nas mãos, depois o deixou de lado e estudou cautelosamente o ambiente.

Uma das paredes de pedra chamou sua atenção. Sete quadrados, cada um com um círculo dentro, estavam rabiscados na parede de forma improvisada.

Subitamente sua mente foi preenchida com a informação de que cada um dos quadrados rabiscados na parede representava um dia da semana de lua cheia, cada um deles representava uma noite em que Will deveria permanecer preso em sua cela no porão da casa dos Santtori, para que não causasse nenhum dano ao assumir sua forma de lobo.

Virou-se para o interior da cela e correu os olhos por ela observando as marcas de arranhões nas paredes, os destroços do que um dia fora um banco de madeira e as barras da grade levemente torcidas em alguns pontos, depois olhou para si mesmo notando as roupas muito apertadas ao corpo, a massa muscular triplicada e o cabelo maior do que de costume, virou as mãos para cima exibindo as palmas queimadas já começando a cicatrizar. Concluiu que deveria ter sofrido com um de seus ataques que antecediam a transformação completa modificando seu corpo e fazendo com que perdesse temporariamente a consciência sobre seus atos e se tornasse agressivo, tentando escapar desesperadamente da prisão para seguir seu instinto de predador.

Deixou-se cair ao chão e ali ficou por algum tempo, sentado, imerso em pensamentos. Sentiu que lágrimas quentes escorriam de seus olhos amendoados. Não conseguiu decidir se eram lágrimas de tristeza ou ódio daquele lugar horrível.

Há um ano quando foi trazido para o casarão dos Santtori sem qualquer lembrança concordou em ser trancado no porão durante as noites de lua cheia, na verdade pedira por isso quando Lilith, a caçula da família, se opôs a ideia do pai.

Não era a primeira vez que se encontrava naquelas condições e não podia queixar-se, era o mínimo que poderia fazer pela família de vampiros que o recebera em sua casa, justo a ele, um lobisomem.

Tratou de enxugar as lágrimas dos olhos e procurou pensar que estava fazendo aquilo pelo bem da família que o acolhera, para mantê-los em segurança enquanto sua forma de lobo o dominasse.

Lá embaixo era muito quente e abafado, Will não parava de suar e sentir cede. Ele respirou fundo novamente, mas o ar era pesado e parecia não chegar até seus pulmões causando uma sensação de claustrofobia que era agravada pelas paredes estreitas e o teto baixo.

O jovem bebeu um pouco da água do jarro, o barro mantinha a água em uma temperatura agradável.

Ele desejou ter algo para fazer e lembrou-se que nas primeiras vezes em que ficou trancado no porão levara livros ou papel e tinta para desenhar, mas pela manhã tudo estava destruído, então com o passar do tempo deixou de levar qualquer coisa que pudesse usar como distração.

Olhou para o corredor do lado de fora da cela, era sustentado por colunas de pedra e iluminado por algumas tochas. Estendia-se por vários metros e depois mergulhava na completa escuridão e silêncio.

Tudo naquele lugar parecia muito escuro e silencioso transmitindo um horrível sentimento de solidão.

Will sentou-se de frente para uma das paredes de pedra e começou a fazer rabiscos com pedras menores. De repente pegou-se sorrindo ao pensar no quão patético deveria ser sua imagem naquele momento. Se sua irmã Lilith estivesse ali diria que ele parecia um homem das cavernas e os dois ririam dessa situação deprimente.

Lilith...

Como sua companhia lhe fazia falta. Conheciam-se há apenas um ano e ela era provavelmente a única capaz de alegra-lo um pouco em um momento como aquele. Will era um ano mais velho do que ela, mas isso não fazia nenhuma diferença quando estavam juntos. Os dois sempre se entenderam, e nos piores momentos um sempre procurou pela companhia do outro.

Mas Will tinha plena convicção de que não veria a jovem, não naquela noite. Albert não permitiria que ela lhe fizesse companhia, mesmo estando preso, o que era compreensível, ele mesmo não assumiria uma postura diferente se tivesse que optar sobre essa questão.

Havia muito pouca probabilidade de que Will escapasse da cela, pois a grade era formada por barras de prata e um único toque era suficiente para queimar sua pele, mas não era saudável arriscar permitindo que Lilith ficasse lá embaixo com ele.

Por mais improvável que fosse sua fuga ela não era impossível, pois mesmo estando separado do mundo exterior por grossas barras de prata ele sempre as forçava quando perdia a consciência, o que explicava as deformidades em alguns pontos da grade e as queimaduras nas palmas das mãos todas as manhãs. Por sorte seu corpo era capaz de se regenerar rapidamente, mas não de evitar algumas cicatrizes, principalmente se fossem causadas pela prata.

Pode parecer cruel, mas ele mesmo concordara com todas aquelas condições. Quanto menores as chances de que escapasse melhor! Todos sabiam que se ele se soltasse durante a transformação poderia ferir seriamente alguém.

Não de propósito.

Nunca de propósito!

Mas por ser completamente dominado pelo instinto de lobisomem. Aquele instinto que o fazia buscar insaciavelmente por destruição. Aquele instinto que tornava tudo que se movia um alvo de sua ambição como caçador. Aquele instinto que fazia seu corpo ignorar até mesmo a dor das queimaduras provocadas pela prata e tentar, desesperadamente, se libertar para correr pela cidade sem conseguir distinguir amigo de inimigo, certo de errado. Aquele instinto que ele não podia controlar por mais que tentasse como todos da sua raça jamais puderam, e que era o completo oposto de sua personalidade.

Will sentiu um calor brotar em seu peito com aqueles pensamentos, fechou o punho ao redor da pequena pedra que usava para rabiscar a parede e a apertou com força sentindo-a virar migalhas entre seus dedos. O calor começou a espalhar-se por todo seu corpo, ele conhecia aquela sensação horrível.

Estava acontecendo de novo.

Outro daqueles ataques que só serviam para tortura-lo dando uma prévia do que estaria por vir.

Cerrou os dentes procurando afastar a dor na gengiva enquanto seus caninos tornavam-se mais grossos e afiados destacando-se dos outros dentes. A musculatura aumentou rasgando partes da roupa. Os dedos ficaram cumpridos e levemente tortos, as unhas cresceram, as pupilas ficaram dilatadas e o mundo ao redor tornou-se preto e branco.

O ambiente de repente parecia absurdamente quente. Em um impulso incontrolável ele rasgou a parte de cima da roupa exibindo o tórax coberto por pelos que cresciam aos poucos.

Segurou agressivamente o jarro de água despejando todo o liquido sobre si e sacudindo a cabeça para os lados fazendo os pingos saltarem do cabelo e prenderem-se as paredes e a mesa de madeira. Arremessou o jarro contra a parede de pedra e fez o mesmo com a mesa de madeira que ficou estraçalhada no canto da cela.

Apertou os lados da cabeça com as duas mãos tentando reprimir o ataque, lutando consigo mesmo pelo domínio de suas ações.

Uma gota de suor escorreu por suas costas e o fez concentrar-se novamente no calor que sentia. Sem pensar atirou-se sobre as barras da grade e tentou força-las, sua carne queimou com o toque, mas ele permaneceu agarrado às barras por mais algum tempo antes da dor tornar-se insuportável a ponto de fazer com que ele recuasse e se encolhesse no canto da cela intocado pela luz fraca das chamas.

Aos poucos retomou o controle de sua mente voltando a si.

As mudanças físicas permaneceram e por elas ele calculou que deveria estar próximo das dez da noite, o que significava que ele em breve teria outro ataque ainda mais violento antes da transformação final à meia noite.

Os músculos rígidos pelo corpo doíam com a mudança e o esforço repentino.

Deitou-se no chão frio sentindo a temperatura do corpo baixar, o suor encharcava o restante de suas roupas, seus cabelos e parte do lugar onde deitara.

Estava exausto.

E o pior de tudo era saber que ele ainda não havia passado do primeiro dia do ciclo da lua cheia e que ainda teria de enfrentar mais seis dias iguais aquele. E sozinho.

Foi quando ouviu passos distantes se aproximarem lentamente pelo corredor. Sem forças para se levantar ele apenas fechou os olhos e concentrou a audição apurada tentando identificar, por meio dos passos, a pessoa que se aproximava.

“Leves.”

Ele cerrou os olhos esforçando-se para se concentrar.

“Pequenos.”

Os passos ficaram mais próximos.

“Delicados. Com certeza uma mulher.”

Pensou ele.

“Não... Não poderia ser!”

Seus olhos se abriram abruptamente e o coração assumiu um ritmo acelerado.

Cada vez mais perto, cada vez mais perto, cada vez mais perto, cada vez mais perto, cada vez mais perto.

“Cessaram.”

Houve um momento de silêncio.

— Will?

Do outro lado da grade a voz afável chamou seu nome.

Will levantou-se e caminhou com dificuldade até a luz fraca ficando a poucos centímetros da grade.

Fora da cela o rosto pálido de Lilith abriu um largo sorriso ao vê-lo. Ela carregava uma cesta em um dos braços, e no outro um jarro com água que ele sentiu grande alívio em ver.

Ele retribuiu o sorriso da jovem de forma um pouco menos animada e percebeu que ela estudava suas feições discretamente. Ficou esperando por alguma piadinha ou comentário inconveniente sobre seu aspecto físico, mas esse não veio.

“Ela deve estar sensibilizada pela minha situação.”. Pensou ele.

— Como você está? — A jovem perguntou finalmente enquanto ajeitava a saia do vestido acomodando-se no chão.

Will deu de ombros e sentou-se de frente para ela mantendo uma distancia segura das barras de prata.

— Já estive pior. — Respondeu desanimado.

— Não consigo imagina-lo pior do que isso.

“Ela voltou!”

Lilith colocou a cesta e o jarro com água de lado, ela olhou para o interior da cela e viu a mesa destruída assim como os utensílios de barro; viu marcas nas paredes, algumas formavam gravuras e outras eram apenas linhas tortas e desformes que deveriam ter sido causadas pelas garras do jovem; por último, viu as grades levemente torcidas e depois as palmas das mãos de Will queimadas.

— Parece-me que está tendo uma noite agitada.

Will olhou para ela e abriu um meio sorriso, mas não respondeu.

— Estão todos preocupados com você lá em cima. — Continuou Lilith.

— Até mesmo Arthur? — Ele arqueou a sobrancelha direita.

— Todos que importam estão preocupados com você. — Corrigiu-se a menina provocando uma rápida risada no jovem.

— O que tem na cesta? — Perguntou Will curioso.

— Laranjas. Achei que pudesse estar com fome.

— Você acertou.

A jovem retirou uma laranja de dentro da cesta e começou a descasca-la com uma faca que retirara mais cedo da prataria da casa, prataria que quase nunca era utilizada.

— Eu pensei que Albert não a deixaria vir.

— Ele não deixaria se eu não tivesse insistido muito, e mesmo assim não posso ficar a noite toda.

Ela passou a laranja descascada por uma fresta da grade e a entregou para Will.

— Eu não iria querer que ficasse a noite toda. — Will deu uma mordida na laranja.

Aquele comentário fez Lilith cruzar os braços e assumir uma postura mais séria.

— Então é assim que me agradece? — A jovem esticou o braço — Devolva-me a laranja.

Will limpou a boca desajeitadamente com as costas da mão.

— Você entendeu errado, não precisa ficar irritada. Eu só não quero que esteja aqui quando eu me transformar por completo... não quero que me veja desse jeito.

— Como se eu me importasse. — Ela ainda parecia um pouco zangada, mas o tom de voz demonstrava mais indiferença do que irritação.

— Mas eu me importo. — Insistiu ele.

— Dane-se! Quer saber? Agora eu é que não iria querer ficar, mesmo se pudesse.

— Algumas vezes seu comportamento infantil condiz com sua aparência.

Ela mostrou a língua e ambos deram risada.

— Trouxe mais uma coisa pra você.

As mãos de Lilith examinaram o interior da cesta e retiraram de lá algo embrulhado em um pano cinza que ela entregou ao jovem.

Will examinou o embrulho improvisado por um momento, depois desenrolou o pano e encontrou um toco de madeira de aproximadamente dez centímetros e uma lâmina afiada. Ele sorriu segurando aquele estranho tesouro nas mãos e olhou para a Lilith.

— Eu tentei achar alguma coisa pra você fazer enquanto ficasse aqui, mas foi uma tarefa difícil, considerando que você costuma destruir tudo. Então pensei nas esculturas de madeira que você tanto gosta de fazer. — ela disse enquanto esperava alguma reação.

— Eu nem sei o que dizer... Eu mesmo não teria pensado em algo melhor.

— Claro que não teria. Inteligência é uma característica típica feminina.

— E é por ter esse tipo de pensamento que você nunca vai se casar. — Will provocou a jovem.

— Que tipo de imortal é louco o suficiente para se casar? — Will e Lilith foram surpreendidos por uma terceira voz e olharam para o corredor ao mesmo tempo.

Um jovem loiro, com aparentemente a mesma idade dos dois se aproximava pelo corredor.

— Elliot! — Exclamou Lilith.

Elliot era o filho mais novo de Alphonse, tinha a mesma idade de Lilith e estava quase sempre no casarão dos Santtori fazendo companhia para a prima e para Will.

— Sabe aquela história de “até que a morte nos separe”? Se você é imortal isso nunca vai acontecer. — Continuou o jovem de belos olhos azuis. — Quem seria louco de se casar e ficar preso a uma pessoa até que a morte, que nunca virá, os separe?

Will e Lilith se entreolharam e depois fitaram o rapaz que já se acomodava no chão ao lado da prima.

— Elliot seus pais são casados. — Will tentou argumentar.

— Exatamente! É por isso que eu não os respeito. Um imortal que se casa não merece respeito.

Elliot olhou para a cesta de forma interessada.

— O que são aquilo, laranjas? — Ele esticou um braço para alcançar a cesta e foi surpreendido com um leve tapa de Lilith em sua mão.

— Sim, são laranjas e são para Will.

— Que história é essa de não respeitar seus pais? Você faz tudo o que eles mandam. — Disse Will.

— Acompanhe meu raciocínio, meu bom amigo mamífero descendente dos canídeos: Eu faço aquilo que eles mandam para que me deixem fazer aquilo que eu quero. Dessa forma eu manipulo o subconsciente para que conscientemente eles pensem que eu os respeito quando na verdade subconscientemente eles é que respeitam o meu consciente. Acompanhou?

Will e Lilith mantinham um olhar confuso fixados em Elliot.

O loiro abriu um sorriso de satisfação acreditando que ele era o único naquele porão inteligente o bastante para compreender o próprio raciocino.

— Não se desespere meu amigo roedor de ossos...

— Mais uma piada referente à minha espécie e faço você engolir sua língua, sanguessuga. — Interrompeu Will.

— O termo correto seria suga-sangue. — Prosseguiu Elliot fingindo ignorar a ameaça. — E como eu estava dizendo, não se desespere Will, é pouco provável que alguma mulher quisesse se casar com você. Quem suportaria ficar limpando pelos do sofá?

— Quantas vezes por dia eu preciso ameaçar a sua vida Elliot? — Respondeu Will com um ar impassível.

— Que falta de senso de humor Will.

Antes que a discussão sobre o assunto pudesse continuar os três ouviram novos passos se aproximando e em pouco tempo a figura de Arthur revelou-se.

— Boa noite a todos. — Disse Arthur de forma cortês.

Os três usaram o silêncio como resposta.

— As crianças vão me perdoar, mas é quase meia noite. — Continuou Arthur. — O que significa que é hora de subir.

Lilith olhou para Will com um semblante triste, esticou o braço para tocar o rosto do rapaz e despediu-se dele sussurrando um “fique bem”. Will forçou um sorriso e gesticulou com a cabeça para que a jovem fosse embora com Arthur.

Elliot e Lilith levantaram-se do chão e começaram a se afastar pelo corredor, distanciando-se cada vez mais da cela. Arthur observou enquanto a irmã e o primo desapareciam na escuridão ao fim do corredor e quando ambos haviam saído do alcance de sua visão ele virou-se de frente para a cela, onde Will permanecia sentado no chão, olhou para o rapaz e abriu um sorriso sádico.

— Eu andei pesquisando sobre a sua raça Will. — Ele esperou por uma resposta do jovem, porém Will permaneceu em silêncio e Arthur sentiu-se a vontade para continuar sua provocação. — Encontrei um livro muito interessante na biblioteca da sede da Ordem, uma biografia escrita por um lobisomem. Pelo que eu entendi ele é um ex-integrante da organização. — Arthur fez mais uma pausa para observar a expressão no rosto de Will, este último tentava manter um ar impassível, porém Arthur conhecia o temperamento explosivo do jovem lobisomem e percebeu sua irritação. — Em sua biografia, esse lobisomem relatava algumas de suas transformações, e lendo seus relatos eu notei que a primeira noite do ciclo é sempre a mais difícil. Estou certo? Aparentemente a dor é insuportável. — Ele terminou de falar com seu sorriso sádico se alargando em seu rosto pálido e fantasmagórico a luz das chamas.

Desde que Arthur começara a falar em tom desinteressado Will sabia que ele terminaria com uma provocação cruel e estava disposto a não dar-lhe o gosto de tortura-lo.

— Você não deveria subir com eles Arthur? — Disse Will finalmente. — Ficar aqui comigo depois da meia-noite é arriscado, você pode acabar se machucando. — O tom que Will usara quase transmitia uma ameaçava.

Arthur soltou uma risada seca sem nenhum humor e subitamente a expressão de seu rosto tornou-se sombria. Ele agachou-se até ficar da altura do rapaz e o olhou nos olhos.

— Acha mesmo que conseguiria me ferir? — Seu tom de voz era inquestionavelmente desdenhoso.

Arthur passou os dois braços por entre as frestas da grade tão rápido que Will não teve tempo para reagir, ele segurou os ombros do outro com firmeza, puxou o corpo do rapaz para frente e o prendeu contra as barras de prata. Will soltou um gemido de dor ao ter a pele pressionada contra a prata que fez sua carne queimar.

— Não ouse ameaçar-me novamente vira-lata! — Disse Arthur mantendo Will preso contra a grade. — Por mim você poderia apodrecer aqui.

— Eu realmente te incomodo tanto assim, Arth? — Apesar da dor Will não deixou-se intimidar pelo vampiro a sua frente e decidiu entrar de vez em seu jogo.

— Sua presença não me incomoda irmãozinho, ela não significa nada para mim!

— Engraçado. — Disse Will entre dentes tentando suportar a dor das queimaduras. — Você parece dedicar várias horas do seu dia planejando uma forma de me atingir.

Arthur soltou outra risada seca.

— É divertido brincar com você Will, é como ter um cachorrinho. Eu te cutuco e você rosna e me morde, mas no final eu decido se você dorme dentro ou fora de casa. — Arthur mantinha um controle inacreditável sobre o tom de voz e suas expressões que não denunciavam sinais de verdadeira irritação ou diversão. — Acha que alguém suspeitaria se você acordasse morto na cela depois de uma noite de lua cheia? Provavelmente pensariam que forçou tanto as barras quando estava descontrolado que seu corpo não pôde resistir às queimaduras. Mas porque eu o mataria quando é tão mais divertido brincar com você?!

Arthur levantou-se, ainda segurava Will pelos ombros fazendo o corpo do rapaz mover-se involuntariamente junto ao seu e devido à diferença de tamanho entre os dois os pés de Will ergueram-se do chão quando o vampiro ficou assumiu postura ereta.

— Da próxima vez que meu pai resolver fazer caridade eu pedirei a ele que adote um cachorro menos barulhento. — Finalizou Arthur soltando os ombros de Will fazendo com que o corpo do jovem desabasse no chão.

Will respirava com dificuldade por causa das queimaduras espalhadas por seu peito. Arthur olhou para ele de cima com superioridade.

— Você tem que aprender o seu lugar nessa família. Tenha uma boa noite Will. — Arthur acenou brevemente com a cabeça e virou-se se afastando a passos apressados da cela e desaparecendo pela escuridão.

Durante a noite gritos de dor e uivos guturais ecoaram pelo casarão tornando-se cada vez mais intensos. Do porão vinham os sons de estrondos e ruídos abafados pela distancia que separava a cela do restante da casa.

Albert e Arthur foram para a sede da Ordem enquanto Lilith, Elliot e Eleanor permaneceram no casarão.

Em dado momento da noite Lilith, que estava sentada no tapete persa da sala de estar, levantou-se em um salto e olhou aflita para Elliot.

— Não aguento. — Disse a menina. — Preciso ir até lá. Preciso ver como ele está!

— Se for ele poderá machuca-la. — Respondeu Elliot.

— Ele não me machucaria.

— Will jamais machucaria nenhum de nós. — Disse Eleanor entrando na sala onde as crianças brincavam. — Mas nesse momento não é Will que está lá embaixo querida. — Eleanor pousou a mão sobre o ombro da filha.

— Como isso pode ser possível?

— Essa é a natureza dele. Assim como nós, Will tem instinto de caçador, porém nós somos capazes de controlar nosso instinto, escolhemos nossas vítimas e paramos quando ficamos satisfeitos. Will também é capaz de controlar seu instinto na maioria das vezes, mas durante a lua cheia esse instinto reprimido torna-se incontrolável e o caçador torna-se insaciável.

— Não podemos fazer nada para ajuda-lo tia Elle? — Perguntou Elliot pondo-se de pé.

— Já fizemos tudo o que podíamos.

— Como o quê? Prende-lo em uma jaula no nosso porão? — Disse Lilith em tom desafiador. — Que grande gentileza.

— Estou certa de que se lembra de que a ideia do aprisionamento partiu do próprio Will.

— Foi papai quem sugeriu que ele ficasse trancado no porão.

— Will disse que poderíamos deixa-lo trancado, seu pai apenas sugeriu que o deixássemos trancado no porão.

— Eu ainda não entendo como vocês foram capazes de concordar com essa ideia que Will teve de ficar trancado. — Lilith cruzou os braços.

— E você tem alguma outra ideia? Um ano se passou e eu não vi você apresentar outra solução viável, mocinha! — Eleanor agora parecia repreender a filha com uma voz firme.

— Pois tenho uma: eu vou até lá e fico com ele. — Retrucou a pequena.

— Como acha que Will se sentiria se acordasse amanhã e descobrisse que a machucou? — Essa última frase de Eleanor fez com que Lilith se calasse.

— Sua mãe está certa. — Intrometeu-se Elliot. — Aposto que Will prefere passar sete noites seguidas trancado em uma cela do que ver qualquer um de nós machucados por suas mãos.

— O que é isso? — Perguntou a jovem. — De que lado você está afinal Elliot?

— Do lado do Will, Lilith, e é onde você deveria estar também.

A jovem soltou um longo suspiro e descruzou os braços, lançou um olhar irritado para o primo e sentou-se novamente no tapete persa.

— Eu odeio quando você resolve ser sensato, Lio. — Disse Lilith chamando o primo pelo apelido que lhe dera, um apelido que combinava tão pouco com o nome de Elliot que apenas a jovem o usava para se referir a ele. — Você normalmente só fala coisas sem sentido, mas quando quer sabe fazer a gente se sentir um lixo.

Elliot deu de ombros e sentou-se de frente para a prima ficando a puxar um fio solto no tapete.

As horas continuaram a se arrastar pela madrugada e os ruídos vindos do porão cessaram lentamente conforme a lua cheia deixava o céu noturno. Faltava pouco mais de uma hora para o amanhecer quando a casa retornou ao seu silencio habitual e Lilith concluiu que a primeira noite da transformação finalmente havia chegado ao fim.

Ela e Elliot esperaram ansiosamente até Albert retornar da sede com Arthur para que pudessem abrir a cela e cuidar de Will antes do amanhecer.

Assim que Albert retorno, a pequena Lilith e seu primo Elliot foram rapidamente ao seu encontro.

— Pai — Chamou a jovem — É quase de manhã.

— Sim, eu sei. — Respondeu Albert.

A menina e o pai desceram os degraus de pedra seguidos por Elliot e Arthur até chegarem ao porão.

Will estava deitado inconsciente no chão da cela, seu corpo havia voltado ao normal assumindo a aparência de uma criança de seis anos, a pele parda estava coberta por arranhões esbranquiçados que já começavam a se fechar sozinhos, no peito marcas de queimaduras que todos provavelmente pensariam que ele conseguira tentando livrar-se das barras de prata, os cabelos negros e despenteados estavam molhados de suor e ele parecia respirar com dificuldade.

Albert retirou um molho de chaves do bolso interior do casaco e destrancou a jaula que se abriu com um rangido agudo. Lilith foi a primeira a entrar, a pequena mal conseguia conter a própria ansiedade. Ela ajoelhou-se ao lado do corpo de Will e segurou a cabeça do rapaz colocando-a sobre seu colo.

— Ele precisa de cuidados. — Disse ela olhando aflita para o pai.

— Pena não termos um veterinário na família. — Comentou Arthur em tom debochado.

Lilith e Albert ignoraram o comentário, mas Elliot olhou para o primo com desaprovação.

— Você consegue ser extremamente inconveniente quando quer Arthur. — Disse o loiro.

Arthur abriu um sorriso seco sem se preocupar com a repreensão do jovem.

— O que eu posso dizer? — Disse Arthur em tom sínico. — É quase um dom!

— Você é incorrigível. — Foi a última coisa que Elliot disse antes de voltar sua atenção para Will.

Agora Albert, que tinha formação em medicina, apesar de nunca ter exercido a profissão, estava agachado próximo ao corpo de Will e examinava o jovem com cautela.

— Ele vai ficar bem. — Constatou. — A pressão arterial está baixa, por isso ele respira com dificuldade. As feridas, como sempre, estão cicatrizando rapidamente e ele quase não perdeu sangue. — Fez uma pausa e virou-se para os dois jovens do lado de fora da cela. — Elliot traga um copo de água com sal.

Elliot balançou a cabeça afirmativamente e retirou-se pelo corredor.

Lilith passou a acariciar os cabelos do jovem sem se importar com o suor que deles escorria.

— Espero que ele fique bom logo. — Desejou a pequena.

Elliot retornou poucos minutos depois trazendo um copo com água e sal dissolvido dentro. Ele entregou o copo para Albert.

Lilith ergueu com cuidado a cabeça de Will e Albert levou o copo até os lábios do jovem fazendo com que ele bebesse um pouco da água com sal, uma parte do líquido escorreu pelos cantos da boca de Will que tossiu e movimentou a cabeça para os lados, porém continuou desacordado.

— Ele ficará bem, só precisa descansar. — Albert dirigiu seu olhar para Arthur. — Arth ajude-me a carrega-lo para o quarto.

Arthur estava encostado a um pilar de pedra do corredor com os braços cruzados sobre o peito e assistia a cena com um olhar indiferente.

— Peça para Elliot. — Ele disse enquanto afastava-se da coluna de pedras.

Ao virar-se para o corredor Arthur deparou-se com a figura do pai que o fitava seriamente. O rapaz notou que o reflexo da chama de uma tocha refletido nos olhos de Albert lhe dava uma aparência sinistra.

— Eu mandei você! — Disse Albert com uma voz que não abria espaço para questionamentos.

Arthur continuou parado encarando o pai com uma expressão imutável.

— Obedeça. — Ordenou Albert com a voz firme.

— Esqueça tio. — Intrometeu-se Elliot. — Eu o ajudo.

Albert olhou de soslaio para Elliot e assentiu com um aceno de cabeça.

— Não se preocupe Elliot. — Disse ele.

Voltou o olhar para Arthur.

— Mais tarde conversamos. — Disse em tom baixo.

Albert voltou para dentro da cela, estendeu a mão sobre o corpo de Will e fez com que este se elevasse no ar e o seguisse pelo corredor.

— Seria melhor se ele tomasse um banho primeiro. — Disse Lilith.

A menina ajeitou as mãos de Will, que pendiam soltas no ar, sobre o peito do rapaz, percebeu que ele mantinha um punho cerrado e tentou abri-lo. Quando finalmente conseguiu encontrou o toco de madeira que dera para o rapaz transformado nafigura de um crucifixo de madeira irregular por ter sido talhado à mão. A jovem lembrava-sede ter visto aquela imagem antes em algum lugar, talvez um livro, mas lhe parecia algo muito pouco familiar.

Depois de limpo Will foi levado para o quarto e Lilith, que o acompanhava, sentou-se ao seu lado quando o rapaz foi posto na cama para descansar. Ele ainda estava inconsciente, mas a pequena insistia em lhe fazer companhia até que ele despertasse.

— Venha querida, hora de se recolher! — Disse Eleanor. — Já está quase de manhã, até mesmo Elliot e Arthur já foram dormir.

— Deixe-me ficar mais um pouquinho mamãe. — A pequena usava um tom de suplica. — Só até ele acordar.

Eleanor foi até a filha e passou a mão pelos cabelos da jovem, mantinha um sorriso doce nos lábios e o tom de voz afável como de costume.

— Ele pode demorar horas para acordar. De noite você conversa com ele.

— Não. — Disse Will com a voz rouca esforçando-se para se sentar na cama. — Me sinto melhor Elle, e seria ótimo um pouco de companhia.

— Está bem, mas não demore Lilith. — Disse Eleanor saindo do quarto.

Lilith olhou para Will e não pôde conter um sorriso de alívio por ver o irmão acordado e disposto o suficiente para se sentar e conversar.

— Como se sente? — Perguntou ao jovem.

— Um pouco cansado, músculos doloridos o mesmo de sempre. Vou sobreviver, eu prometo.

— Ótimo! — Disse a jovem e deu um leve soco no braço do rapaz, que soltou um fraco gemido de dor e esfregou o local onde recebera o golpe. — Isso é por me deixar preocupada.

— Que amor. — Disse Will em tom irônico. — Quem precisa receber um abraço depois de longas horas de sofrimento quando pode acordar com um carinhoso soco de “bom dia”?

— Deixe de ser dramático Will.

Lilith segurava um pano embrulhado nas mãos e aquilo chamou a atenção de Will.

— O que é isso? — Perguntou o rapaz gesticulando na direção do embrulho.

A pequena desembrulhou o pano revelando o crucifixo de madeira.

— Você estava segurando isso quando te tiramos do porão. Eu o guardei enquanto você tomava banho. — Ela respondeu enquanto entregava para o jovem o colar de barbante improvisado com o crucifixo pendendo. — Parecia ser algo importante, então eu amarrei um pedaço de barbante nele para que você pudesse levar no pescoço. —

Will segurou o crucifixo com as duas mãos e o observou por alguns segundos, esticou o barbante e passou o colar por cima da cabeça.

— O que esse símbolo significa Will? — Perguntou a jovem curiosa.

— Eu não sei direito. — Will fez uma pausa e ficou examinando o colar.

— Talvez seja o símbolo da sua família, do seu clã. — Arriscou Lilith.

Will balançou a cabeça para os lados e apertou o crucifixo na mão enquanto voltava a olhar para Lilith.

— Eu tenho o pressentimento de que é algo muito maior do que um clã. Mas tenho certeza que foi minha família que me ensinou a respeitar esse símbolo, e tudo o que ele representa.

— Se lembrou de alguma coisa, sobre a sua família?

— Ainda não, mas quando eu estava no porão eu tive um daqueles ataques e em seguida eu desmaiei e me lembro de ter sonhado com uma mulher. — Ele fechou os olhos como se tentasse lembrar-se do sonho e procurar uma maneira simples de explica-lo. — Eu não via o rosto dela, mas eu acho que era minha mãe, e ela me dizia que enquanto eu acreditasse e tivesse fé, esse símbolo, ou o que ele representa, poderia me proteger e eu nunca estaria sozinho. — Ele olhou para Lilith. — Acha que eu imaginei o símbolo e a mulher?

— Acho que não, estou quase certa de que já vi essa forma em algum lugar. Mas Will, seja lá o que for você não se lembra do significado, então como pode acreditar?

— Eu sei que parece estranho, mas eu apenas sinto que é algo forte e que pode me proteger.

— Como diria Elliot: Deve ser coisa de lobo.

Antes que Will pudesse responder as duas crianças ouviram novamente a doce voz de Eleanor que bateu na porta entreaberta com os nós dos dedos.

— Eu sinto muito meus queridos, mas todos nós precisamos descansar.

— Claro Elle. — Concordou Will. — Nós já terminamos.

— Bom descanso para você Will. — Disse Lilith enquanto descia da cama.

— Para vocês também.

Eleanor apagou a vela que estava sobre a cômoda ao lado da cama e deu um beijo na testa de Will.

— Bom descanso querido.

Ela saiu do quarto fechando a porta atrás de si.

Durante a semana da lua cheia Lilith e Elliot dedicaram seu tempo a planejar atividades divertidas para os três, atividades que eles pretendiam realizar assim que o ciclo da lua cheia terminasse e Will pudesse retornar para a sua vida normal ao lado de sua família.

Infelizmente a chuva era o maior fenômeno da natureza responsável por estragar os planos das crianças e ela mais uma vez estava fazendo seu trabalho. Assim sendo, os três pequenos encontravam-se parados de frente para a janela, inconformados com o temporal que começara de tarde e ainda não dera, ou parecia pretender dar, uma única trégua.

A pequena Lilith, que era sem dúvida a mais ansiosa dos três, cruzou os braços emburrada.

— O que faremos agora? — Disse a pequena.

— Por que não brincamos aqui dentro? Podemos fazer tudo o que pretendíamos fazer lá fora. — Respondeu Elliot.

— Não Lio, nós não podemos.

— O que nos impede? — Disse Elliot virando as palmas das mãos para cima.

— Arthur! — Lilith e Will responderam em uníssono.

— Esperem um pouco vocês dois! O Arthur não manda aqui. Ou manda?

— Não diretamente. — Disse Will. — Mas ele é o responsável por fazer valer as “regras da casa”.

— Regras da casa? — Elliot parecia confuso.

— Um monte de regras estúpidas que meus pais determinaram que nós devemos seguir quando eles não estiverem por perto.

— Que tipo de regras?

— Nada de correr dentro de casa. — Disse Will.

— Nada de gritar dentro de casa. — Continuou Lilith.

— Sem quebrar nada dentro de casa.

— Nada de pular nos móveis.

— Nada de usar qualquer tipo de habilidade especial dentro de casa.

— Nada de brincar com os objetos antigos de decoração.

— Nada de usar as cortinas como tendas.

— Usar as cortinas como tendas? — Disse Elliot interrompendo a lista que Will e Lilith citavam em conjunto. — Que regra estúpida.

Elle e Albert gostam de prever qualquer situação. — Respondeu Will. — Continuando: Nada de usar as cadeiras como lenha.

— Nada de entrar no escritório, no salão de dança ou na biblioteca. — Disse Lilith dando sequencia a lista.

— Nada de brigas.

— Resumindo. — Disse Lilith finalmente. — Nada de fazer outra coisa que não seja ficar lá fora ou ficar aqui dentro sentados e comportados.

— Isso é uma afronta à liberdade de expressão nós devemos protestar! — Disse Elliot batendo a mão no peito.

— Nada de protestos. — Respondeu Will.

— Então o que vamos fazer? — Perguntou Elliot.

— Só temos uma opção, eu estava guardando como último recurso. — Lilith alternava o olhar entre os dois rapazes.

— Você não pode estar falando... — Will arregalou os olhos. — Não ouse sugerir isso Lilith!

— Eu sinto muito Will.

— O que é? — Perguntou Elliot em uma mistura de ansiedade e nervosismo.

Lilith e Will se entreolharam, Elliot fitava os dois com apreensão. Lilith permaneceu em silêncio e Will agitava a cabeça para os dois lados como se aquilo pudesse impedir a jovem de comunicar em voz alta o que tinha em mente.

— Esconde-esconde. — Disse Lilith finalmente.

— O quê? — Elliot parecia frustrado. — Tudo isso por causa de uma brincadeira de esconde-esconde? Qual o problema de vocês?

— Eu tenho sérios problemas com esconde-esconde. — Disse Will.

— Traduzindo: ele é uma negação para esse jogo. — Lilith pareceu se divertir.

Elliot caiu em uma profunda gargalhada, seguido por Lilith enquanto Will olhava seriamente para os dois.

— Agora eu com certeza quero brincar disso! — Elliot ainda recuperava o fôlego quando fez a provocação.

— Nem pensar. — Will cruzou os braços. — Joguem você dois sozinhos.

— Assim não tem graça. — Respondeu Lilith. — Para ser divertido, precisa ter mais de dois, você sabe.

— Não seja tão rabugento Will. — Elliot apoiava Lilith tentando convencer Will a participar do jogo.

Will jogou a cabeça para trás e suspirou longamente.

— Não tem graça brincar de um jogo que eu sempre perco. — Disse ele enquanto fitava o teto.

— Por favor Will! — A jovem arriscou um olhar triste que ameaçava choro.

— Está certo. — Concordou o rapaz finalmente.

Lilith comemorou dando um salto e batendo as mãos.

— Então eu começo procurando. — Disse a pequena enquanto exibia um largo sorriso de satisfação e ansiedade. — Não vale o escritório, o salão de dança e nem a biblioteca e quem for encontrado primeiro ajuda o outro a procurar.

Os dois meninos concordaram com um aceno de cabeça.

— Prontos? — A jovem apoiou um braço na parede e começou a contar. — 1,2,3...

Os dois rapazes correram para fora da sala de estar e se separaram. Elliot pensou rapidamente nos cômodos da casa procurando o melhor lugar para se esconder, desceu as escadas até o hall e ficou escondido debaixo delas.

Will chegou a cozinha e se escondeu debaixo da mesa, depois pensou que o esconderijo era muito obvio e tentou ficar atrás da porta, mas lembrou-se que eram os primeiros lugares onde Lilith procurava. Avistou o armário de vassouras e se trancou dentro dele as pressas, bateu a cabeça na prateleira em que ficavam os utensílios de costura, o que fez com que uma caixa de novelos de lã caísse sobre ele. Na pressa ele acabou ficando enrolado nos fios e sem tempo para se livrar deles continuou a procurar pelo esconderijo ideal.

Ao longe podia ouvir a voz de Lilith, ela já estava no número “7”, ele saiu da cozinha pela porta dos fundos e chegou à varanda onde deixou de ouvir a contagem de Lilith por causa do som forte das gotas de chuva e do vento. Esgueirando-se pela parede, tentando ficar sobre o telhado e evitando se molhar, o rapaz deu a volta na casa e pulou a janela do quarto de hospedes onde se escondeu no vão entre o guarda-roupa e a parede.

“Ela nunca pensará em me procurar aqui.” Pensou Will satisfeito com seu esconderijo.

Will ficou imóvel em seu esconderijo, tentava não fazer qualquer tipo de som por menor que fosse. Algumas vezes pegou-se prendendo a respiração com medo que a jovem pudesse ouvi-la.

Não se passaram nem cinco minutos e Will pôde ouvir o baque que ecoou pelo cômodo quando alguém pulou a janela.

Lilith estava um pouco ofegante, mas exibia um largo sorriso de satisfação. Na mão direita segurava a ponta de um fio do novelo de lã e na mão esquerda o restante do fio que juntara pelo caminho.

Will olhou incrédulo para a jovem, sabia que havia tido problemas com a lã, mas não pensou nem por um momento que os fios enrolados em seu corpo tivessem deixado um caminho atrás de si.

Ele segurou a outra ponta do novelo que ainda estava enrolada em seu cabelo e os dois jovens ficaram se encarando em silêncio por algum tempo.

Lilith não conseguia parar de imaginar os pensamentos que passavam naquele momento pela cabeça do jovem, porque sabia que eram pensamentos de inconformismo. Will era péssimo naquele jogo e sabia que era péssimo, seus esconderijos eram sempre os mais óbvios, mas mesmo assim ele sempre se esforçara na brincadeira e tinha confiança em si mesmo o que tornava sua expressão de surpresa impagável quando ela o achava com mais facilidade do que ele poderia prever.

— Parece que eu deixei algumas pistas. — Disse ele finalmente.

— Pistas? Deixou-me o mapa inteiro!

— Como sabia que a trilha levava até mim?

A jovem deu de ombros.

— É sempre você na outra ponta.

Lilith retirou uma pequena tesourinha do bolso do vestido e cortou dois pequenos pedaços da lã, fez um laço com cada um dos pedaços.

— Segura. — Disse ela enquanto estendia a mão e entregava um dos pequenos lacinhos para Will.

O rapaz examinou o laço de lã e o guardou no bolso do colete. A jovem também guardou seu lacinho.

Elle vai ficar furiosa por ter estragado o novelo de lã dela. — Observou Will depois de alguns segundos.

— Então faça valer a pena, guarde bem o laço. E nunca se esqueça de estar na outra ponta.


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