Rede de Mentiras escrita por Gaby Molina


Capítulo 11
Capítulo 11 - Obsessão não muito saudável


Notas iniciais do capítulo

Estava lendo umas fics aleatórias esses dias, e tenho um recado para vocês escritores que escrevem "f*da-se" e não classificam a fic como Linguagem Imprópria: vocês são patéticos. Obrigada.

E Little Princess... Promessa é dívida, aqui está o capítulo ;)

Sobre capítulos enormes em uma semana: me amem. E chorem de emoção, porque tem POV da Elena com foco na Clarke. ~sentindo o brilho nos olhos de vocês



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You're staring out the window

And I'm out here in the street

You stand there like a scarecrow

And I'm begging you to speak

You used to be my solid ground

Now I'm drowning in the sea

And I just want to believe in you and me.

— Scarecrow, Alex & Sierra

Fletcher

Clarissa estava prestes a me esganar com um cachecol.

— Sério, esse vestido não tem nada a ver com você — murmurei

— Pela vigésima vez, eu não pedi a sua maldita opinião, Kingston.

— Está bem.

O silêncio pairou por um minuto. Ela bateu a porta do armário e se voltou para mim, que estava jogado na minha cama.

— Qual o problema do vestido?

Ergui os olhos, tentando não transparecer a satisfação. Era um vestido rodado, com flores discretas na parte da saia. Ia até um pouco acima do joelho. Conseguia ser mais menininha feliz do que as roupas da Elena.

Dei de ombros.

— Não é muito a sua cara.

Ela me fuzilou com os olhos castanhos.

— O quê? Porque ele é verde? Eu não posso usar verde? — Era claro que ela descontava todo o seu nervosismo em mim. — Quer que eu use o preto, é isso? Porque eu sou uma louca depressiva? Está bem! Que seja!

E então ela tirou o vestido, porque ela ligava o foda-se de um jeito muito encantador quando queria provar que estava certa. Pegou o vestido preto no armário e o vestiu.

— Feliz? — ela ergueu uma sobrancelha.

— Na verdade, eu tinha gostado do vestido vermelho que você colocou mais cedo — falei, sincero.

Clarissa franziu o cenho, tentando esconder sem sucesso a surpresa.

— O vermelho? Mesmo?

— É — falei. — Achei que, hum, ele te caiu bem.

Seus olhos se cravaram nos meus por um minuto.

— Ok — seu tom se suavizou e ela pegou o vestido vermelho no armário.

* * *

Clarissa pegou a maleta de maquiagem da Elena, daquelas que você aperta um botão e ela abre tantas gavetas que até brota uma mini Barbie no meio dizendo "Posso ajudar?".

A garota pegou um tubinho preto comprido que eu já vira Elena usar. Acho que era um delineador. Parecia complicado.

— Você sabe usar isso? — perguntei.

Clarissa revirou os olhos.

— Fletcher, você não tem nada para fazer? — Eu apenas dei de ombros e ergui uma sobrancelha. Ela suspirou. — Está certo, eu não sei passar isso.

Ela jogou o delineador de volta na maleta e resolveu se contentar com aquele negócio preto para cílios e lápis de olho. Depois pegou um batom vermelho suave e contornou os lábios, tornando-os milagrosamente mais cheios.

Por fim, ela calçou os saltos baixos e se voltou para mim.

— Vou até perguntar sua opinião, para que você não pareça tão rude quando a conceder mesmo assim.

O batom destacara seu rosto, assim como o lápis deixava os olhos bem mais marcados. Clarissa parecia mais... marcante.

Veja bem, não estou falando de beleza aqui. É que há pessoas com rostos interessantes, complexos, diferentes, ou que são simplesmente vivos e chamam atenção — como o de Elena —, mas Clarissa não era uma dessas pessoas. Ela tinha um rosto comum, consideravelmente simétrico, o nariz fino um pouco arrebitado, os olhos arredondados. Mas de algum jeito aquela pouca maquiagem demandava um pouco mais de atenção. Além do mais, ela resolvera soltar o cabelo e penteá-lo, em vez de fazer o coque mal-feito de sempre.

— Você vai acabar cortando os pulsos por causa desse sapato — comentei.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Sério, Fletcher? Sério?

— Vai se lembrar de mim quando a primeira bolha estourar.

— Vou te dar mais uma chance de dizer algo que presta.

— É um desperdício.

— O quê?

— Você se produzir toda para um cara que não faz ideia de quem você é, um cara que você nem quer que saiba quem você é.

— E você acha que me conhece pra caralho, não é?

— Acho, na verdade.

— Chance esgotada— ela revirou os olhos e pegou a bolsa, prestes a sair do quarto, quando eu disse:

— Gostei do batom.

Ela se virou, com um leve sorriso nos lábios.

— Valeu.

— Se cuida.

O comentário pareceu surpreendê-la.

— Pode deixar.

* * *

Ele tinha um carro. É claro que tinha um carro. Abriu um sorriso largo, ajeitando a própria jaqueta idiota, e estendeu a mão para mim.

— E aí, cara? Como é que cê tá?

— Eu estou ótimo,... cara. — respondi, apertando a mão dele. — Ela já vai descer, perdeu o livro.

— Livro? Ela tá levando livro? — ele ergueu uma sobrancelha.

Ele era incapaz de dizer todas as sílabas de uma palavra?

— Ela leva essa coisa para tudo o que é lugar, não deve significar nada — Apesar de uma parte de mim estar rindo internamente.

— Mas e aí, cara? Cê é amigo dela?

— Eu sou... Hmm... Eu sou. Na verdade...

— Cheguei! — ela tropeçou em si mesma, e então sorriu para o "cara". — Oi, Kevin!

— Oi, Clary — ele beijou a bochecha dela. — Vamo indo?

— Claro. Tchau, Fletcher — ela acenou para mim.

— Tchau... Divirta-se.

Kevin a acompanhou até o carro e eu me joguei no sofá. Alguns minutos se passaram antes que Elena descesse as escadas.

— Ei! — ela sorriu. — Karaokê hoje?

Senti-me meio mal, porque queria voltar a passar tempo com Elena, mas tinha outra coisa ocupando meu dia.

— Não posso — ergui meu corpo, sentando-me. — Tenho planos hoje.

Ela me encarou.

— Se não quer ir ao karaokê, podemos...

— Não, nada disso. Você por acaso teria um marcador permanente e algum papel grosso?

Elena ergueu uma sobrancelha.

— Por que eu sinto que isso vai acabar muito mal?

Esbocei um sorriso.

— Porque vai.

Clarissa

Caminhávamos pelas ruas de Londres de mãos dadas. Era uma sensação estranha. Percebi que me acostumara bem mais com Carmen Hallow do que havia me permitido reconhecer. Eu observava Kevin de relance, às vezes. Era bem mais alto que eu, pelo menos uns vinte centímetros. Corpo atlético, que às vezes era visível pela camiseta branca. Os olhos esverdeados fitavam a avenida, e às vezes me fitavam também. Ele tinha um sorriso leve, confortável, sincero. E gostava de arrancar sorrisos assim de mim. Às vezes conseguia.

— Com fome? — ele perguntou.

Morrendo, pensei, mas não queria soar gorda, então dei de ombros e murmurei:

— É, um pouco.

Entramos num restaurante. Kevin abriu a porta para mim e eu agradeci a Deus por ter me vestido bem. O lugar era bonito. Eu conhecia Kevin e sua família há muitos anos, sabia que dinheiro nunca lhe fora um problema.

O garçom nos encaminhou para uma mesa pequena, de dois lugares, perto da janela. Peguei o cardápio, fingindo entender alguma coisa de Francês.

— Gosta de escargot, certo? — Kevin me perguntou.

Que porra é escargot?, eu quis perguntar. Sabia que era coisa chique, mas não fazia ideia de que diabos tinha naquilo.

— Claro — sorri.

— Eles têm Escargot à la Bourguignonne aqui...

Bour o quê?!

— Ótimo!

Kevin se voltou para o garçom:

Deux Escargot à la Bourguignonne, s'il vous plaît.

À votre service, monsieur — respondeu o garçom, se afastando.

— Você estudou Francês por um tempo, não estudou? — Assenti. — Curtia?

Língua do demônio, pra que tanto acento?, pensei, mas minha cabeça assentiu novamente, quase por vontade própria.

Ficamos em silêncio por um minuto.

— Amo essa música. A letra é brilhante — Kevin comentou, e começou a cantarolar junto com a canção que tocava baixo nos auto-falantes. — Et il m'aime encore, et moi je t'aime un peu plus fort...

— Muito boa — A mulher poderia estar falando sobre matar coalas com uma faca de manteiga como sacrifício para trazer de volta as almas nazistas que morreram no Dia D e eu jamais saberia.

O garçom voltou depois de alguns minutos.

Et de boire?

Fiz que sim com a cabeça, mas a expressão no rosto do cara revelou que não era uma pergunta de sim ou não.

— Quer refri? Muito cedo para algo mais forte, certo? — Kevin me fitou.

— É. Uma Coca está ótimo.

Ele pediu ao garçom, que voltou à cozinha. Notei um pedaço de papel sobre a bandeja na mesa. Três palavras em letras capitais estavam escritas nele, sem muito capricho:

ELA ESTÁ MENTINDO

Ele tinha que estar brincando comigo. Amassei o papel e o escondi antes que Kevin notasse. Quando o garçom voltou, murmurei para ele:

— De onde o bilhete veio?

Ele me fitou por um minuto, e imaginei que fosse disparar a falar em Francês comigo, mas sussurrou de volta em Inglês perfeito:

— Fui instruído a não dizer. Sinto muito — mas ele apontou com os olhos para a janela antes de se afastar.

Parado do outro lado da rua estava Fletcher.

— Clary? — Kevin me chamou. — Não vai comer?

— Ah. Claro — voltei-me para o prato.

Quando olhei para a janela novamente, não havia mais ninguém. Convenci-me de que estava ficando louca.

Encarei meu prato. Espere, por que havia cascas...? Aquilo era um caracol?

Pensando melhor, essa frase não expressou direito meus sentimentos. AQUILO ERA UM CARACOL?!

Bem melhor. Havia algo verde dentro, como uma espécie de manteiga. Eu não fazia ideia de como comer aquilo, mas me esforcei. Enfiei um punhado na boca, esperando um sabor amargo, mas... não. Na verdade, mal tinha gosto, exceto pelo tempero leve da manteiga. Era bem macio, também. Dava até para comer, se eu ignorasse a aparência e engolisse um monte de Coca junto.

Do outro lado da rua, Fletcher ria. Novamente. Não era possível que ele fosse tão cuzão assim.

— Kevin — chamei.

Ele ergueu os olhos.

— Sim?

— Sobre aquela bebida mais forte...

* * *

Kevin não era idiota, ele podia notar que eu estava desconfortável. Fletcher havia sumido de vez.

— Ok, acho que isso — ele apontou para o restaurante. — pode ter sido um pouquinho demais. Tem uma feirinha não muito longe daqui, quer ir?

Meus olhos brilharam.

— Claro!

Ele chamou o garçom para pedir a conta. Como eu e o garçom éramos BFFs agora, ele colocou um pouco de bebida na minha squeezer sem que ninguém visse e eu a enfiei na bolsa. Afinal, nunca se sabe quando pode ser útil.

Subimos a avenida e entramos no carro de Kevin. Ele ligou o rádio, e logo alguma música pop estava tocando.

Because I'm happy...

Clap along if you feel like a room without a roof

Clap along if you feel...

— Gosta dessa música? Ou já enjoou? — ele me perguntou.

Minha mente estava longe dali.

— Não a conheço.

Ele arregalou os olhos.

— Sério?

Dei de ombros.

— Não tenho exatamente acompanhado as notícias.

Ele esboçou um sorriso, sem tirar os olhos da rua.

— Bem, deixa eu resumir procê — disse ele. — Cheryl fodeu o time dela no The X Factor, eliminando todas as pessoas erradas; a Nicki Minaj conseguiu atingir um novo nível de letras podres; Avril vai se divorciar do Chad. E tals. Tudo notícia importante, é claro. Ah, e as pessoas tão meio alucinadas com o Ebola.

— Bem, acho que não preciso me preocupar com isso. Em Carmen Hallow mal chega um mega de internet, que dirá um vírus africano.

Consegui arrancar um riso deles.

— Acho que tudo tem suas vantagens. Ei, que é aquilo? Esquisito.

No muro havia um cartaz enorme de papelão, com três palavras escritas nele:

ELA ESTÁ MENTINDO

E não era só isso. Havia cartazes em todos os lugares. Pendurados em postes, muros, colados no chão, e até um tampando o outdoor. Três palavras, sempre, em marcadores vermelhos ou pretos.

Minha cabeça girava, e eu me sentia prestes a vomitar. De repente ficar perto de Kevin ficou muito difícil, mas ao mesmo tempo eu queria fugir com ele. Fugir de tudo aquilo, das acusações, dos lembretes constantes de meu fracasso como ser humano decente. Mas em vez disso me encolhi no banco, como uma criança que foi pega fazendo coisa errada. Parecia tão patético que Fletcher pudesse me fazer sentir tão forte, mas ao mesmo tempo tão minúscula.

Elena

— É legal que seus pais venham todo ano — Ethan comentou.

Ergui uma sobrancelha.

— Espere, por que estou falando disso com você, mesmo?

— Porque Clarissa saiu e Fletcher está ocupado com o esquema sociopata dele.

— Verdade. É, suponho que sim. Quero dizer, Fletcher mataria para ter pais que o visitassem. Não acho que os Kingston façam por mal, na verdade.

— Você conhece os pais de Fletcher?

Merda, eu falara demais.

— Conheci-os uma vez. Quando... Hum...

— Quando Fletcher quase foi expulso? Lembro-me disso.

Fazia tempo que eu não falava sobre aquilo.

— É — olhei para mim mesma. — Esse vestido ficou bom? Não está curto, está?

Ethan abriu um sorriso gentil.

— Você está linda.

— Pare. Já falamos sobre isso.

— Só não quer admitir que estou te conhecendo melhor e continuo gostando de você.

— Você está obcecado.

— Não estou obcecado. Não pode me fazer parar de gostar de você.

— Ambos sabemos como você lida com sentimentos.

Ele ergueu uma sobrancelha. Eu sabia que tocara num assunto delicado, mas ele não me dera escolha.

— Não é como se eu fosse socar seu nariz ou algo do tipo.

— Não é com isso que estou preocupada.

Ele suspirou.

— Eu estou com tudo sob controle.

— Eu achava que sim também, mas aí você quase enfiou o Fletcher numa ambulância.

— Você não ouviu as coisas que ele disse.

— Eu sei como Fletcher funciona, Ethan. Ele é um provocador, e você também sabe disso. Mas ele não sabe e nem faz questão de se defender. Nada que não venha de sua própria cabeça o atinge. Não é o tipo de pessoa com quem você deveria arrumar briga, porque ele também não entende a hora de parar. Além de ele ser meu melhor amigo. Agora me dê licença porque eu preciso falar com a minha irmã.

* * *

— Já sabe a resposta, Ellie — Clarke não olhava para mim, só penteava o cabelo roxo com os dedos.

— Clarke, vai ter que falar com eles, eventualmente. Estão com saudade de você.

— Eles não me tratam como te tratam. Ainda me julgam.

— Não julgam, não.

Seus olhos azuis finalmente se cravaram em mim.

— Qual é. Não sou como você. Sou egoísta.

— Eles não te culpam por você estar aqui.

— Então são burros, porque deveriam. Talvez você não se lembre da história — eu não sabia de onde ela tirara a ironia ácida, mas me lembrava Fletcher. — Mas eu roubei um shopping para ser mandada para cá porque não queria ficar em casa sem você.

Suspirei.

— Eles continuam querendo falar contigo.

* * *

Acabei convencendo-a. Descemos as escadas, e encontrei Ethan rindo com meus pais. Eu odiava aquele cara. Odiava demais.

Clarke bufou ao meu lado. Não é que ela não gostasse de Ethan... Ela o desprezava.

— Ah, olá, queridas! — minha mãe sorriu. Tinha a mania de tentar fazer tudo parecer normal, apesar de não estar. — Como vão? Estão bonitas. Tão crescidas.

— Nhé — Clarke resmungou ao meu lado.

Meu pai se voltou para mim.

— Seu amigo Ethan estava me contando que a psiquiatra achou que era hora de diminuir a frequência das consultas.

Ergui uma sobrancelha para Ethan.

— Sério? Fofocando sobre mim com o meu pai?

Ele apenas deu de ombros.

Clarissa

Eu estava obcecada. Olhava freneticamente para cada canto, procurando por mais sinais dele. O céu já começava a ficar alaranjado, preparando-se para o por-do-sol, mas os feiristas não pareciam notar. Eu esmagava a mão de Kevin, mas ele não parecia se importar.

— Gosta de lírios, certo? — ele sorriu. Fiquei surpresa por ele se lembrar de algo assim sobre mim. Assenti.

Kevin tentou comprar um lírio de um florista, mas o homem insistiu que se a garota fosse bonita, não era preciso pagar. Eu sabia que ele estava apenas sendo gentil, mas agradeci. Kevin dobrou o cabo da flor e a pôs em meu cabelo.

Ele torceu o nariz.

— É, não ficou bom — admitiu.

Eu sorri.

— Sem problemas — e pus o lírio em minha bolsa, deixando o zíper entreaberto para que as pétalas ficassem do lado de fora.

Eu ouvia Fletcher gritando em minha cabeça. Deus, estava ficando louca. Completamente pirada. Mas era como se ele estivesse ali, e eu pudesse ouvir seus comentários sarcásticos. O riso debochado. E por algum motivo isso consumia meus pensamentos completamente.

Disse que estava com fome, então nos sentamos num café para comer um pão de mel. Kevin franziu o cenho depois de alguns minutos.

— Tá tudo bem?

Eu sabia que deveria calar a boca, pois estava parecendo uma maníaca, mas não consegui.

— Olha — não consegui encará-lo, então falei para o pão de mel. — Você é legal. Sério. E gentil. Mas tem que entender que Carmen Hallow é coisa séria. Digo... — apertei os lábios, frustrada. Se eu tentasse eufemizar, mentiria. Sabia disso. — Eu tenho indícios de depressão, está bem? E problemas de comportamento social. Eu não consigo me abrir com as pessoas, e não digo isso daquele jeito de menininha adolescente de "tenho medo de me machucar" e blá blá blá. Eu não consigo ser uma pessoa de verdade perto de ninguém, então ninguém nunca vai me amar de verdade. É simples assim. E me enfiaram naquela casa para que o transtorno não aumente, mas a verdade é que... ninguém sabe se realmente tem uma cura. — forcei-me a olhar para ele. — Achei que você deveria saber.

Ele ficou em silêncio por cinco segundos. Eu contei. Mas o que ele fez depois foi o que mais me surpreendeu: ele esticou a mão na mesa e segurou a minha.

— Cresci contigo, Clary. Eu entendo. Quero dizer... — ele corou um pouco. — Não exatamente entendo, mas... quero entender. Eu não teria te ligado se não soubesse no que estava me metendo. E não quero voltar atrás — ele me fitou. — Você quer?

Mas eu não olhava mais para ele. Porque parado perto de uma barraca estava Fletcher.

— Eu já volto — disse a Kevin, me levantando.

Fletcher saiu andando, e eu saí atrás. Foi como se todo mundo na rua tivesse resolvido andar ao mesmo tempo para a mesma direção, e Fletcher não era alto, então foi fácil perdê-lo. Mas não desisti. Percorri toda aquela feira duas vezes, no mínimo, antes de desistir. Sentei-me num banco atrás de um restaurante, meio isolada numa rua sem saída, e peguei minha squeezer na bolsa.

Logo o líquido amargo descia pela minha garganta. Talvez isso me fizesse esquecer tudo e dar a Kevin a garota feliz que ele queria.

— Isso aí parece bom — disse uma voz atrás de mim. — Uísque?

Fletcher sentou-me ao meu lado, e eu usei toda a minha força de vontade para não jogá-lo no chão.

— Não sei, na verdade — confessei.

— Contou as mentiras? Porque, quero dizer, para você ter acabado comendo escargot... — ele sorriu. — Deve ter sido bem feio.

— Está achando isso engraçado? Sério, Fletcher? — resmunguei.

— Não é engraçado, é um desperdício, como eu disse de manhã.

— Desperdício é o que você fez com o seu dia e com tudo aquilo de papelão.

— Não é um desperdício se fez você pensar no assunto.

Não respondi. Depois de alguns segundos, arrotei.

— Auê — falei, e dei um tapa na testa de Fletcher. E sim, foi só uma desculpa para dar um tapa em Fletcher.

Mas ele não ficou irritado, o que foi meio que uma pena.

— Viu, é disso que estou falando — ele se levantou, como que para tornar a coisa toda mais oficial. — Tem tantas pessoas que fazem propaganda de si mesmas, tentando parecer melhores do que realmente são... Mas você não. Você tem tanta coisa em si que ninguém sabe. E, sem perceber, você deixou que eu conhecesse um pouco dessas coisas. Um pouco de você. Por isso sei que é um desperdício, e por isso estou aqui, tentando fazer com que tudo pelo que você trabalhou nos últimos meses não vá para o saco por causa de um cara que apareceu do nada.

Ergui uma sobrancelha.

— Você fez do meu dia um inferno.

— Seu dia seria um inferno de qualquer jeito, você já estava de saco cheio antes mesmo de eu aparecer.

— Cuzão.

— Sinto muito se você não gosta da minha honestidade, mas, para ser justo, eu não gosto das suas mentiras.

— Como colocou o cartaz no outdoor?

— Contei minha história e um cara que estava arrumando a fiação elétrica usou a escada enorme dele para me ajudar.

— Então é isso? Você fez tudo isso para que eu não mentisse?

— Exatamente.

Não teve nada a ver com você não querer que eu esquecesse de você?, pensei, mas não disse em voz alta, pois sabia que ele recuaria.

— Bem, então está no lucro, porque eu contei a Kevin tudo sobre o meu problema, e Carmen Hallow, e ele aceitou e me apoiou.

— É mesmo? — não reconheci seu tom. Ele se sentou ao meu lado novamente e roubou minha squeezer, tomando um gole longo. — Merda. E é uísque, com certeza.

— Merda?

— Eu continuo não querendo que você volte para lá.

— E pretende me dar algum motivo?

Minha voz estava tão carregada de intenção involuntária, se é que aquilo existia. As palavras pularam para fora de minha boca, e eu encarei Fletcher sem recuar. Ele me encarou de volta, os orbes negros focados como dois imãs. E então ele se inclinou e me beijou. Eu não o afastei. E assim foi.

Foi diferente do primeiro beijo, talvez porque no primeiro ele quisesse estar certo, e agora só queria que eu ficasse. Mais intenso, mais rápido, mais voraz. Senti suas mãos em minha cintura, me puxando para perto, cada vez mais, mesmo quando não era mais fisicamente possível. Então nos levantamos, de olhos fechados, e ele me empurrou contra a parede, subindo a mão pela minha coxa.

Alguma parte da minha mente processou que o que mais estraga a vida é a imagem mental que temos de como ela deve ser.

Separamos nossos lábios depois de algum tempo, mas Fletcher não me soltou. Ele encostou seu nariz no meu, e ali ficamos por vários minutos. Acho que aquela foi a primeira vez que a palavra belo apareceu em minha mente quando pensei em Fletcher, mas isso pode ter sido o uísque falando. O caso é que naquele momento foi como se eu visse uma pessoa totalmente diferente, como se fosse encontrar uma balaclava caída no chão caso olhasse. Sabia que não duraria, e que era um daqueles momentos inexplicáveis de contato visual que são imediatamente superanalisados, e inevitavelmente mal-interpretados.

Mas vi o jeito que o cabelo ameaçava cair no rosto, que os olhos observavam o mundo, que o nariz levemente torcido esboçava um toque de humor, que os lábios ameaçavam formar um sorriso. E vi uma beleza curiosa, do tipo que passa despercebida tão facilmente que se torna ainda mais preciosa. E, merda, definitivamente o uísque estava começando a falar.

Mas percebi que eu realmente tinha um carinho enorme por aquele garoto, e que conhecíamos bem um ao outro. Era patético fingir que não. Tentei registrar isso para a próxima vez que discutíssemos.

— Você deveria ir — ele disse, por fim, e eu o odiei por isso.

— É isso que acha?

Antes que Fletcher pudesse responder, ouvimos um pigarreio.

Parado na rua, a alguns metros de nós, estava Kevin.

Elena

O silêncio se sustentava na mesa de jantar. Clarke se recusava a falar e eu também estava com cara de poucos amigos, então meu pai se voltou para Ethan:

— O que você fazia, antes de vir para cá?

Ethan pareceu surpreso com a pergunta.

— Ah. Instrutor de taekwondo.

— É mesmo?!

— É. Dizem que ajuda na disciplina e tal — ele enfiou mais alface na boca.

— E ajuda?

— Hum, suponho que sim.

— Talvez fosse bom para Clarke — minha mãe opinou.

Clarke não aguentou mais. Ela soltou o garfo.

— Isso, ensine uma arte marcial à sua filha rebelde violenta. Parece um plano excelente.

Minha mãe baixou o tom, fazendo sua expressão condescente usual.

— Querida...

— E o garoto Fletcher, Elena? — meu pai indagou. — Não o vi hoje.

— Ah. Ele saiu.

— Quando volta?

Não sei se volta, pensei. Pelo menos, não inteiro.

— Ainda hoje, espero.

— Seu cabelo está bonito, Clarke — minha mãe tentou, mas a garota a ignorou.

O silêncio pairou sobre a mesa novamente, até Ethan o quebrar:

— "Eles não dizem nada. Tempos atrás, entre outras mentiras, eles foram ensinados que o silêncio era bravura."

Meu pai franziu o cenho.

— Perdão?

— É Bukowski — expliquei. Não conhecia a citação, mas sempre era Bukowski.

Ethan apenas assentiu e lá estava o silêncio novamente. Até que ouvimos a porta da casa se abrir.

— Deve ser Fletcher — falei, e usei tal fato como desculpa para sair da mesa.

Encontrei, realmente, na sala, Fletcher e Clarissa. Os dois com a pior cara possível, de cabelos bagunçados, olhos cansados. Clarissa carregava os sapatos nas mãos, e Fletcher segurava uma squeezer azul como se fosse oxigênio.

— Devo perguntar? — murmurei.

Fletcher deu de ombros.

— O quê?

Ergui uma sobrancelha.

— Tem batom vermelho na sua cara.

Ele soltou um palavrão e esfregou o cotovelo nos lábios, o que apenas espalhou mais o batom.

—... E estão fedendo a uísque.

Clarissa apenas suspirou e subiu as escadas rapidamente. Quando Fletcher foi segui-la, ouvimos:

— Fletcher, querido! — minha mãe aparecera na sala, animada.

Ouvi-o suspirar e esfregar mais o cotovelo na cara.

— Sra. Donovan!

— Achei que não teríamos a oportunidade de vê-lo! — disse ela.

— É... Mas, hum, aqui estou.

Clarissa

— Você largou Fletcher com seus pais? — ergui uma sobrancelha.

Elena deu de ombros, penteando o cabelo louro com os dedos.

— Tipo isso. Como vocês voltaram para casa?

Eu contara grande parte da história a Elena, por pura insistência da própria. Mas havia deixado esse detalhe de fora.

— Ah. Kevin nos trouxe.

Ela arregalou os olhos.

— Ele deu carona para vocês dois? Depois de tudo? — Assenti. — Nossa. Ele parece ser um cara legal.

Suspirei.

— Talvez eu não seja feita para caras legais.

As palavras dele retumbavam em minha cabeça. O jeito como eu me desculpara, e ele apenas esboçara um sorriso e dissera:

— Vi o jeito que estava olhando para ele, Clary. Não vai me convencer de que foi um ato impensado. A depressão é um problema de genética, não de caráter.

Meu coração doía um pouco, mas batia forte. Eu encarava a porta, esperando pelo momento inevitável que Fletcher entraria no dormitório e nossos olhares se encontrariam, e...

— Não consigo decidir o que eu quero mais — falei. — Ser amada, ser feliz ou apenas desaparecer.

Ela suspirou.

— Te entendo.

— Sabe quem mais é um cara legal? — mudei de assunto. — Ethan.

— Ah, nem vem, estamos falando de você se pegando com Fletcher numa rua estreita sem saída.

— Mas é verdade. Você...

— Shh.

Ethan

— Por que você ainda está aqui? — Clarke resmungou, apertando o passo.

— Bem, meu dormitório é para esse lado também.

— Eu não ligo, sai.

Ergui uma sobrancelha, andando mais rápido também.

— Sério, o que eu te fiz?

— Não é uma boa noite, Blackery, não force. Não preciso que ninguém me lembre que meu lugar é no reformatório, e que só estou aqui pelo histórico familiar de transtornos psicológicos.

— Quem mais se importa com isso é você, Clarke.

Ela não disse nada. Quando chegou à porta do quarto, coloquei meu braço na frente e encarei seus olhos azuis.

— Se eu pudesse te dizer apenas uma coisa — comecei. — Diria que nunca estamos tão despedaçados quanto achamos que estamos. Claro, temos várias cicatrizes, e machucados... Mas todos os bons têm.

— Boa noite, Blackery.

Desisti num suspiro, liberando a passagem.

— Boa noite, Clarke.


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