Spell: Access (The NEXT) escrita por Jazz Crown, The Next


Capítulo 5
Spell: Memory




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Cidade de Everfrost, dias atuais

O consolo de Patricia, de certa forma havia amenizado minhas preocupações quanto ao homem morto, mas suas palavras acerca da minha personalidade se repetiam na memória a todo momento. Eu, nascido para matar e dominar? Acho que não, mas não deixa de ser questionável, já que ela tem olhos para esse tipo de gente. Apenas havia retornado para meu consultório, após levá-la até a porta e me despedir. Só nos veríamos de novo daqui dois dias.

Fechei a porta e deitei sobre o divã, pegando o pequeno caderno da poltrona e relendo as anotações. Mesmo com o que eu tinha, ainda seria necessário muito mais. Meu Spell ainda era descarado demais. Precisava arrumar um meio de camuflar a palavra de comando em uma frase, por exemplo, ou exprimí-la na forma de um gesto. Passei um bom tempo raciocinado sobre isso, até que, em algum momento, caí no sono. Talvez seria esse outro efeito adverso do uso de Spell, exaustão mental.

Enquanto dormia, pude ouvir vozes familiares da minha infância. Ouvi meu pai Arthur, com sua voz educada e marcante, dizendo à Elenn que o trânsito estava um caos. Também ouvi minha mãe Elenn, cantando de forma terna e suave, uma canção de ninar. Depois ouvi o tom debochado de Angelo, dizendo que meu penteado o fazia pensar que tinha uma irmã. Por fim, ouvi meu irmão mais novo, Gabriel, chorando de castigo por ter aprontado. Aqueles dias eram agradáveis, quando todos estavam juntos e bem. Cantando de frente à uma lareira, soprando velas de aniversário, vestindo beca na formatura, tirando fotos juntos no fim de ano. Tudo dava certo. Até que um dia tudo aquilo mudou. Arthur e Elenn deixaram de se entender e se divorciaram, o pai ficou com Angelo e Gabriel e a mãe ficou comigo. Uma família, cinco vidas interligadas partindo-se ao meio e aconteceu tão rápido. Elenn raramente sorria agora, por não ter aceito com facilidade a separação. Arthur mergulhou em sua vida profissional, como se tivesse esquecido que tinha uma família, Gabriel foi morto em um atropelamento e Angelo e eu quase não nos víamos mais fora da clínica.

Cada um seguiu um caminho, todos diferentes, sem garantia de se cruzarem novamente. A família Demetrius morava agora em duas casas diferentes e eu não estava em nenhuma delas. Apesar de visitar o pai, quando ele estivesse disponível e a mãe quando eu estivesse disponível, me isolei de tal forma que as únicas pessoas que eu confiava agora eram uma secretária que me amava e uma jovem criminosa cega, filha e herdeira do Senhor do Sangue Escarlate.

Meus sonhos haviam sido interrompidos pelo interfone, que significava a chegada de mais um cliente com hora marcada. A julgar pelo horário, era uma mulher de trinta e cinco anos, com problemas familiares. Ela sempre usava um perfume irritante que, possivelmente era a causa de seu desentendimento com o marido e filhos. Mas eu preferia deixar a causa como desconhecida, já que mais consultas gerariam mais dinheiro e me daria mais tempo para praticar e aprimorar o Spell sem precisar matar ninguém.

A mulher não demorou para bater na minha porta e eu não demorei para abri-la. Hoje ela vestia uma saia vermelha, coberta por um casaco de peles cinza e aquele cheiro doce de perfume estava insuportável como sempre.

– Bom dia, Gracia. Como vai? Por favor, sinta-se à vontade. - Pelo menos você.

– Obrigada, doutor. O senhor está bem-vestido como sempre, e também parece alegre hoje, aconteceu algo? - Sua falta de empatia também era um problema grave, eu estava em um dos meus piores dias e ela simplesmente interpretou o oposto.

– Não, Gracia... Só o de sempre. Não se importa se eu abrisse a janela um pouco e ligasse o ar condicionado, não é? Estou com um pouco de calor, mesmo nesse frio. Deve ser a sua beleza sem igual.

– Ah... Doutor. Galante como sempre. Não sei como a secretária não dá em cima de você. - Percepções horríveis... até um cego perceberia a discretíssima sedução da Clarice de longe. - Faça o que achar melhor, esse casaco está bem confortável, então não fará diferença.

Caminhei em direção à janela e a abri. Em seguida liguei o ar condicionado para tirar aquele cheiro insuportável do meu consultório. Voltei à minha poltrona e pedi que Gracia olhasse para mim. Era o procedimento padrão.

– Gracia, olhe para os meus olhos. A partir de agora estaremos nesse local apenas eu e você. Minha mente e a sua mente. Seus problemas e os meus. Sua voz e a minha. - Dizia de forma pausada e suave, prolongando algumas palavras em um tom monocórdio, estável. - Estarei agora abrindo seu coração para que me diga o que te preocupa, para que me diga o que lhe aflige, para que me diga o que é preciso. Estarei a partir de agora sensibilizando-a, moldando-a, como argila úmida, antes de se tornar um belo vaso. Estaremos apenas eu... - Gesticulo - ... E você... Eu e você... Eu e você... Peço que respire lentamente, sentindo o ar refrescando todo o seu corpo. Peço que o prenda por um tempo, deixando-o se unir a tudo que te preocupa. Peço que o solte, junto a suas preocupações, junto aos seus medos, junto de suas dores. Quero que repita esse ciclo até que só lhe reste a minha voz, as minhas ordens, as minhas perguntas.

A mulher repetiu o procedimento, respirando cada vez mais devagar, até que aquele fosse o padrão de sua respiração, seus olhos me encaravam quase fechados e seu corpo se afundava sentado no divã. Aquilo nada mais era que uma sensibilização da mente através da redução de atividade cerebral, pelo ritmo da respiração. Ao atingir aquele estado, ela poderia se tornar a minha marionete.

Spell: Link...

Agora nossa consciencia se tornava uma. Qualquer lugar da mente daquela mulher era agora acessível a mim. Podia erguer seu braço esquerdo, mover a perna direita, assentir com a cabeça e acessar suas memórias. Via as últimas coisas que ela viu, como se fosse um filme, inclusive o que ela sentia naquele momento específico da memória. Se eu quisesse, poderia regredir até seus cinco anos de idade. Além de acessar memórias antigas e novas, eu poderia também facilmente manipulá-las, criando memórias falsas, em qualquer lugar entre as que ali já estavam.

Spell: Rewrite...

Ao encontrar as informações de interesse, as trocaria pelas adequadas. Naquele caso, estaria substituindo seu gosto por perfumes doces insuportáveis por qualquer outro tipo de perfume mais brando, além de também aprimorar suas capacidades perceptivas. Certamente aquela era a solução para seus problemas. Mas para manter a clientela, implantaria em Gracia o interesse pelas minhas consultas, para mantê-la como cliente, isso a faria encontrar milhares de outros problemas só para poder me ouvir novamente.

– Spell: Release...

– Quando contar até cem, a sessão será encerrada. Enquanto isso, você retornará lentamente ao seu estado natural, fluindo de volta a si, como uma cachoeira chegando ao chão. Seus membros voltarão a respondê-la, seu corpo voltará a estar firme, seus ouvidos voltarão a ouvir tudo a seu redor. O ar condicionado chiando, os carros buzinando, os pássaros cantando. Voltará a si e o mundo voltará a ser como era, mas você não. Você voltará sem preocupações, sem dores e sem perguntas. Voltará melhor do que era. Quando contar até cem, abrirá os olhos e me verá sentado, à sua frente e estará tudo acabado.

E o tempo se passou. Gracia abriu os olhos e olhou ao redor, em seguida para mim, que a estava encarando, naturalmente. A mulher começou a farejar algo e então me perguntou:

– É meu esse perfume? Não sei porque escolhi isso. Esse cheiro me enjoa. Desculpe, Doutor. - Ela se levantava e eu a conduzi até a porta. Foi quando ela me observou atentamente. - Me sinto muito melhor, mas o senhor parece doente. Está gripado ou algo?

– Acho que sim. Mas vai melhorar. Espero que tenha gostado da consulta de hoje.

– Foi amável. Adeus, Doutor. Até a próxima. - E desapareceu pelo corredor.


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