Zona B escrita por Bry Inside the Box


Capítulo 27
Capítulo 25


Notas iniciais do capítulo

E ENFIM CHEGAMOS! Bem, esse capítulo mostra um pouco mais da vida do Nick, e eu achei isso legal, espero que achem também.
Tenham uma boa leitura :3



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Bam.

Foi o último barulho que Nícolas ouviu no escuro.

As luzes se acenderam e ele estremeceu debaixo do cobertor, procurando a mão de sua mãe. Mas ela não estava lá, nem a mão, nem a mulher. Sentiu seu estômago revirar-se e as mãos começaram a suar frio, um calafrio subiu de seus pés até as pontas das orelhas, instalando a imagem do homem em sua mente novamente.

Com medo, Nick olhou levemente para cima e viu dois pares de pés. Um com sapatilhas azuis rasgadas na ponta, e um par de chinelos marrons que já haviam sido usados para bater em sua bunda. Ele quis chorar, mas segurou as lágrimas da forma mais forte que pôde. Possuía nove anos, não era uma idade para ficar chorando toda hora.

– Não... Jean... Por favor...

Slap.

Nick assustou-se com o barulho feito pelo tapa e soube que ele havia a atingido. Agora, restava esperar sua vez. Ouviu o passo de algo metálico cair no chão, provavelmente outra latinha de cerveja que ele tomou enquanto estava fora. Os passos ficaram mais audíveis e ele pode diferenciar os arrastados e pesados dele dos desesperados e rápidos de sua mãe.

– Cadê aquele merdinha do seu filho?

– Por favor, ele não.

Então foi descoberto e sentiu uma mão pesada puxar os cachinhos de seu cabelo. Forçadamente, Nick olhou para cima e pôde ver as olheiras profundas e quase pretas dele, os olhos cinza iguais aos seus e o cabelo louro todo encharcado de suor. Um odor de cerveja e whisky entrou por suas narinas e ele não sentiu-se enjoado, já era a quinta ou sexta vez que ele fazia a mesma coisa. Mas, não queria dizer que não dava medo.

Achei você, filho duma putinha.

– Jean, ele é só um menino!

O homem virou-se abruptamente e, com a outra mão, empurrou Louise. Ela tropeçou numa tábua de madeira solta do chão e caiu. Ele riu descaradamente e soltou Nick, fazendo com que o mesmo caísse também. O menino colocou a mão na bunda que estava doída e, com os olhos vermelhos, olhou para ele.

– Levanta daí, moleque!

A camiseta dele estava manchada com marcas de algum líquido que provavelmente era bebida e a bermuda estava rasgada e suja de terra em algumas partes. Fazia três ou quatro dias que ele não aparecia em casa, e Nick nunca esteve mais em paz do que durante esse tempo. Então ele voltou e o tumulto começou novamente.

Apoiando as mãos no chão, Nícolas levantou. Não havia percebido, mas tinha prendido a respiração durante todo aquele tempo. Sem que o homem percebesse, soltou o ar dos pulmões e tentou pensar em momentos positivos para acalmar o coração. Claro que estava sendo em vão, mas o otimismo era uma de suas melhores características. Pensou nos dias que ajudava sua mãe a cozinhar o arroz e, sem que notasse, sorriu.

– Tá achando graça, seu merda? – O homem vociferou e Nick sentiu o hálito forte em seu rosto. – Se eu enfiar esse chinelo na sua bunda vai achar graça também?! – O garoto endureceu a postura e tentou manter-se confiante frente à situação. – RESPONDE CARALHO!

– Nã-não senhor!

– EU PEDI PRA GAGUEJAR? GAGUEJAR É COISA DE GAY! VOCÊ É GAY?

– Não senhor!

O homem estreitou os olhos e aproximou-se, arrastando os chinelos no chão. Agarrou o pescoço de Nick e levantou-o, deixando-o na mesma altura que ele. O ar começou a esvair-se de seu pulmão e Nick prendeu a respiração para reservar o restante de oxigênio. Fechou os olhos por um segundo para se acalmar, mas era tarde demais: uma lágrima escorria de seu rosto.

– Vai chorar, seu viadinho? Nem tomou tapa e quer chorar? – A mão apertou cada vez mais o pescoço e Nícolas começou a tossir. – Isso, tosse mesmo. Assim, quando você morrer, vai enxergar como você é fraco.

– P-pai...

– PAI O MEU PAU! É SENHOR! – A mão dele bateu em seu rosto, deixando um ardor em sua bochecha. Nick segurou as lágrimas. – Pede desculpa, viado.

– De-desculpa, sen...

– SEM GAGUEJAR! – Gritou e socou seu estômago, fazendo Nick tossir e sentir um gosto de sangue. – Depois de dez anos, ainda não acredito que fodi sua mãe pra um pedaço de merda como você nascer. – Murmurou enquanto soltava o garoto e lhe dava um chute na cintura. – Ela devia ter abortado ao invés de um lixo como você nascer.

Rapidamente, Nick olhou para trás e pôde ver sua mãe levantando-se vagarosamente. Provavelmente, não queria fazer nenhum barulho alto demais para que seu pai se virasse e a visse em pé novamente. Se a visse, o estrago seria feito novamente. Voltou seu olhar para o homem e, por um rápido momento, viu-o levemente tonto por conta de muita bebida. Olhou novamente para trás e viu que o que o pai havia derrubado não era uma latinha, e sim uma garrafa de vidro. Acenou levemente para a mãe e, novamente, voltou a fitar o homem a sua frente.

– Levanta daí, porra.

– Sim, senhor.

Num sobressalto, Nick já estava de pé.

– Vai ficar parado aí? Acha que eu to aqui pra ser um palhaço?

– Não, senhor.

– ENTÃO VAI ME PEGAR UMA CERVEJA LOGO, FILHO DUMA PUTA!

– Sim, senhor.

– E vê se não demora...

Não completou a frase, sua mãe havia o empurrado. Como um peso morto, Jean caiu com a cara no chão e soltou um grito de dor ao sentir a cara batendo no solo. De repente, Nick correu até a mulher e empurrou-a para fora do quarto para que ela saísse e deixasse os dois sozinhos. Estava na hora de mostrar que era melhor do que seu pai pensava que fosse.

O pai ainda não havia virado. Não aguentava o próprio peso de tão tonto que estava.

Pegou a garrafa e forçou-a contra o chão, fazendo com que ela quebrasse no meio. Jogou a parte de baixo para longe e empunhou a parte de cima, esperando que o pai se levantasse. Ao vê-lo quase ficar de pé, correu até ele e cravou o vidro em sua panturrilha, assistindo-o cair no chão com sangue escorrendo por sua perna. Agachou quando o pai caiu, ainda segurando o pedaço de garrafa.

– Seu... Merda...

– Não me chame de merda, idiota. – Gritou enquanto virava o pedaço de vidro em sua perna. Ouviu os gritos de dor do homem e riu fraco pelas narinas. – Achava que eu ia apanhar de você pra sempre? Achava que eu era fraco? TENTA LEVANTAR AGORA, SEU RETARDADO.

Soltando o vidro, Nícolas levantou e deixou o pai xingando-o e murmurando coisas inúteis para ele. Fechou a porta e trancou-a, correndo pelo estreito corredor e chegando até sua mãe, que chorava na pequena cozinha. Colocou a mão sobre seu ombro e esperou que ela o olhasse. Assim que o fez, ele abraçou-a apertado. Enxugou as lágrimas dela com sua camiseta suja com sangue e soltou um riso alegre, aliviado.

– Acabou, mamãe. – Lágrimas escorriam de seus olhos. – Acabou...

– Meu querido Nícolas... – Ela passava a mão sobre os cachos de Nick enquanto ele fungava pelo choro. – Você... Matou?

Nick negou. Mesmo que a pergunta fosse sombria demais, ele estava tão eufórico que não conseguia enxergar o lado mau de nada.

– Ele não vai conseguir levantar por um bom tempo. Só.

– Ah, que ótimo. – Maria sorriu alegre e apertou-o no abraço. – Nós vamos ficar livres de tudo, querido.

– Sim...

Um barulho foi ouvido. Uma porta se abriu. Assustado, Nick olhou para o lado, esperando ver o pai com a garrafa na mão, pronto para matar os dois. Mas, não viu nada. A porta continuava fechada e não havia sinal de que seria aberta.

– Devem ser os guardas.

Ela distanciou-se e, em passos rápidos, andou até a porta de entrada. Nick a seguiu, desesperado e alegre ao mesmo tempo.

– Mãe! Você os chamou?

Ela o olhou como se fosse uma pergunta óbvia.

Dois guardas entraram pela porta, vestindo o uniforme da guarda monárquica. Eles olharam para Nícolas e um deles agachou-se para perguntar onde o homem estava e afagou seus cabelos. Surpreendeu-se, nunca pensou que havia guardas tão bondosos assim.

– A-aqui tá a chave. – Nick deu a ele o objeto. – Não o deixem escapar, por favor.

– Nós não vamos, garotinho. – O guarda sorriu calorosamente para ele. Nick, por um momento, sentiu-se fora de toda aquela situação. – Só fique aqui e espere.

Os dois homens sumiram nos corredores e Nick abraçou a cintura de sua mãe, ainda tremendo um pouco. Ela colocou uma mão em seus cabelos e passou a mão sobre eles enquanto olhava esperançosa para o vazio do corredor.

Nick sabia que ela ainda o amava. Sua mãe ainda o amava porque, talvez, ele tenha sido um homem bom e carinhoso no passado. E se sentia culpado por ter nascido e destruído a ótima relação que os dois tinham. Talvez, no final, se ele tivesse morrido na barriga de sua mãe, as coisas seriam melhores para ela.

Levantou os olhos e pôde ver seu pai algemado, mancando e com a perna inchada. Instantaneamente, Louise começou a chorar por seu esposo e, se não fosse pelo abraço do filho, teria caído no chão. Nick a fitou por alguns segundos e viu em seus olhos a dor de ver alguém que você ama abandonar-te.

O guarda gentil apertou a algema de Joseph e acelerou seu passo, empurrando-o. Acenou para Nícolas com um sorriso confortador e despediu-se de Louise formalmente. O outro guarda assentiu para o filho e a mãe e seu pai olhou pela última vez, atravessando a porta. Mexeu a boca em três palavras e, em seguida, sorriu friamente, indo embora.

Louise fechou a porta e trancou-a, com um notável medo de que ele escapasse e abrisse a porta novamente, querendo vingança. Agachou-se para ficar da mesma altura que Nick e colocou a mão sobre seu ombro.

– Acabou, meu querido. Acabou tudo.

Nick assentiu. Um sorriso infantil e mentiroso estava preso em seus lábios.

– Vou fazer nossa janta e um bolo de presente pra você.

Enquanto observava os passos cansados e rápidos da mãe, Nick sentou-se numa das cadeiras da mesa e fitou os próprios pés. Em sua mente, tudo vinha passando como um filme de falsamente feliz. Pairou em sua cabeça o sorriso maldoso de seu pai e a frase murmurada.

Eu vou voltar.”

***

Nícolas acordou suando frio e, levantando o tronco rapidamente, percebeu que teve outro pesadelo relacionado ao pai. Passou a mão pelos cachos e tirou-os da testa, em seguida erguendo a camisa para enxugar o suor. Apertou os olhos e percebeu que estivera chorando durante o sono.

Olhou para Charmin e a expressão passiva da garota o tranquilizou. Os olhos dela estavam fechados de uma maneira calma e os lábios rosados e pequenos formavam um bico. Ela abraçava o corpo, na parte que Nick a rodeou. Ele sorriu e passou a mão pelos cabelos negros dela. No final, tudo havia sido um simples pesadelo.

Mas, mesmo que não fosse real àquela hora, foi real oito anos atrás. Ainda lembrava-se do medo o possuindo e da sensação das mãos dolorosas do bêbado em seu pescoço. Aquilo foi o maior de seus medos durante longos três anos; ver sua mãe sangrando e com hematomas no corpo, olhar-se no espelho e ver o horror em seus olhos, tudo por causa de uma única pessoa.

Uma única memória do pai quando tinha cinco anos era, também, a única feliz. Estava Nick em suas costas, eles brincavam de cavalinho no chão da sala enquanto a mãe ria e batia palmas. De longe, aquele era o melhor dia de sua infância precocemente perdida. Não havia bebidas, surras, drogas ou brigas. Somente um amor puro que cercava uma família miserável.

Mas, então, um dia, Nick estava brincando com um carrinho de garrafa pet que a vizinha fizera quando ouviu os gritos de sua mãe e, logo em seguida, seu pai saindo pela porta da cozinha, visivelmente furioso. Quando olhou para trás, lá estava ela, com o rosto roxo na bochecha e com lágrimas cheias escorrendo pelo rosto. Depois daquele dia, o pai só apareceu em casa uma semana depois, completamente diferente.

E então o caos começou: sua mãe começou a se drogar e beber constantemente, chegando a esquecer por alguns dias o próprio filho, e o pai, que não voltava toda noite e, quando aparecia, era pra bater na esposa e no filho. Assim foi o auge de sua infância: palavrões, chinelos, cheiro de pinga e de maconha e mãos duras e frias.

Em suas memória estava o dia que saiu de casa. Naquela época, ainda possuía seus catorze anos e era só uma criança marrenta que se achava dona do próprio nariz quando nem sabia se curar de um machucado. Havia deixado a bolsa pronta e só faltava despedir-se de sua mãe, que, àquele momento, estava no pequeno quintal, fumando cigarro. Abriu a porta para o lugar e encontrou-a sentada numa cadeira velha, com o cigarro em mãos e chorando. Naqueles dias, ouvia-a chorando quase todas as noites pelo esposo perdido. Agora, ela estava chorando de dia, e isso o impressionava. Aproximou-se e, e simples e curtas palavras, comunicou que estava saindo. Ela olhou-o com mágoa e fúria e, pisando no cigarro, murmurou “Não devia nem ter falado. Era só ir e me deixar em paz”. Aquilo o atingiu tão fortemente que vacilou no passo ao fechar a porta. Depois do curto diálogo, saiu de casa segurando uma lágrima amarga nos olhos.

Nunca soube ao certo o que levou seu pai a mudar. Só soube que, quando ele mudou, nunca mais voltaria a ser quem era antes.

– Nick?

Olhou para o lado e pôde ver Charmin sentada onde dormira. A blusa dela estava amassada e uma das alças havia caído, deixando o ombro nu. O cabelo estava amassado e emaranhado, e a franja caía em seu olho. Ela passou a mão pelos olhos e bocejou, e Nick a achou tão graciosa que, se não estivesse afundado na tristeza da infância, beijaria-a naquele exato momento. Ela engatinhou até seu lado e, com os olhos ainda inchados por causa do sono, fitou-o.

– Ah, te acordei, Char?

A voz dele soava calma. Charmin estranhou, pois, se havia uma coisa que Nick não possuía, essa coisa era calma.

– Está tudo bem? – Perguntou, erguendo a alça da blusa. – Você estava chorando?

– Tá... Tá tudo bem. – Sorriu enquanto coçava a nuca. – Vem, vamos voltar a dormir.

Nick pegou as duas mochilas que trouxeram, juntou-as e fez uma espécie de travesseiro com elas. Deitou-se e colocou a cabeça sobre os objetos, olhando Charmin o inspecionar com o olhar. Ele sorriu e revirou os olhos, estendendo a mão, chamando-a. Ela aceitou e ele a puxou de um jeito a deixá-la abraçada.

Estava tomando coragem pra fechar os olhos, temendo sonhar com aquilo novamente.

– Bons sonhos, minha Charmin.

– Sua?

Ao ouvir a voz fina e falsamente irritada de Charmin, Nícolas parou de temer o sonho. Tudo que importava agora era tê-la em seus braços.

– É. Sempre.

***

James ouviu um barulho na madrugada e despertou imediatamente, olhando para o alçapão com uma esperança que se esvaía a cada segundo que ele olhava e ela não descia por aquelas escadas, com os cabelos negros bagunçados e uma cara de sono que ele simplesmente amava.

Não soube por quanto tempo ficou olhando, mas ao ver num borrão uma sombra de Charmin descendo pelas escadas num ritmo um tanto pausado e apagado, decidiu que era hora de parar de encarar o local e levantou-se para tomar uma água e cessar o estresse.

Preguiçosamente, colocou as pernas para fora da cama e percebeu que sentia falta de pernas finas sobre as suas que não o deixavam levantar até que a outra decidisse sair. Deslizou o corpo para fora da cama e estava de pé, com uma leve náusea e tontura.

Não vinha se alimentando direito desde que soube que Charmin estava no exército. Não se alimentava pelo simples motivo de não haver nenhuma razão para fingir estar bem se ela não estava lá para animá-lo.

Desde os onze anos de idade, a idade que a conheceu, ele nunca teve um motivo tão bom para se alegrar se não fosse ela. O pai saiu de casa muito cedo para trabalhar como guarda do castelo em troca de um salário mínimo para a mãe e o filho. E, sua mãe, depois de alguns anos sem o marido, deixou-se vencer pela saudade e comprou em empréstimos uma passagem para A para trabalhar de cozinheira no castelo e ficar junto do esposo por algumas horas no dia.

Com o surgimento de Charmin, ele tinha alguém a quem se apoiar. Um chão para os pés pesados. Se fosse pensar por um lado, possuía até alguém para colocar os sentimentos dentro. Ela era, de longe, a pessoa de quem mais se uniu durante todos os seus dezoito anos.

A memória preferida dos dois, depois do dia em que a beijou, era uma manhã de domingo que James fez seus dezesseis anos e Charmin comprou frutas, ovos e bolo para um café da manhã especial dos dois. Mas, mais que isso, deu a ele um de seus maiores presentes de todos: Uma carta de sua mãe.

Nunca soube o quanto de saudade sentia daquela mulher até olhar a letra rápida e fina dela. Leu os seis papéis cerca de quatro vezes seguidas até decorar a próxima palavra que vinha depois da que estava lendo. Agora, em dois anos, havia se esquecido de algumas partes da carta e as mais importantes deixou guardado na memória.

Um dos pedaços que mais gostava era o que falava sobre Charmin:

“Cuide desta garota, meu filho. Ela vai valer mais do que todas que você encontrar, eu tenho certeza. Eu sei que você a amava mesmo com tão pouca idade e é muito provável que ainda a ame, seja no sentido afetivo ou fraternal. Seja amando-a como amo seu pai, ou, seja como eu sei que me ama. Sinceramente? Não importa o tipo de amor, importa se há ou não. Então cuide dela, e, principalmente, não a deixe ir”.

Enquanto agachava-se para pegar uma garrafa de água no frigobar, deixava um sorriso bobo e nostálgico no rosto.

A época em que amou Charmin de um modo como um marido ama a mulher foi boa, foi ótima, na verdade. Mesmo que, agora, achasse injusto e totalmente errado, lembrava-se de, quase todas as noites, acordar de madrugada, olhar para o rosto da garota ao seu lado e perder a razão, beijar-lhe os lábios de uma forma leve e calma, mas apaixonada. E, agora, a tratava como uma irmã, aquele tipo de estar junto todo o tempo e dividir o berço.

Mas, de duas coisas ele sabia: Primeira: Amava-a. Segunda: Em qualquer tempo e circunstância, nunca a deixaria ir.

***

– Bem, nós ainda temos uma cachoeira pra seguir, mas, como ela é bem perto do alojamento, se quiser pulá-la para chegarmos logo ao local...

– É, vamos fazer isso. – Charmin juntou as duas palmas e olhou para Nick, determinada. – Eu quero chegar, dormir e deitar num lugar que não seja um Inferno disfarçado de exército ou um chão duro feito de pedra. Meu corpo pede pela cama do alojamento.

– De qualquer forma, vai ser mais rápido mesmo. – Nick passou o braço por seus ombros. – Algumas horas caminhando e nós chegaremos a tempo e...

Repentinamente, Nick lembrou-se de algo. Ela estava lá, com Josh e todos os outros. O que Charmin faria se a visse novamente, depois de tantos anos. Agora que as memórias estavam voltando, ela provavelmente lembrava-se também de algumas coisas com Josh. Isso era óbvio, na verdade. Mas, mais importante, o que ela pensaria se a visse lá, com um de seus amigos e, pior, na cama de um deles.

– E?

Aquilo não podia acontecer. Tinham que atrasar um pouco para ele contar. Havia esquecido completamente. Como foi tão... Tão... Idiota, de se esquecer de um detalhe tão importante como aquele?

– Ah... Nada. Só... Me Lembrei de como o pessoal sente sua falta. Nada que você não saiba.

– Hum...

– É.

– Tá.

***

As árvores começaram a ficar mais densas e maiores, a grama mais verde e Charmin já ouvia o barulho do vento passando por entre os galhos e, se prestasse atenção e ouvisse com mais silêncio, identificaria o som da cachoeira.

Agachou no chão e apalpou o local até sentir uma espécie de maçaneta. Puxou-a e olhou para as escadas que apareceram em sua visão. Olhou para o lado e pôde ver Nick, com um sorriso alegre no rosto.

– Pronta?

Charmin acenou. Estava mais pronta do que nunca.

Colocou os pés sobre o primeiro degrau e começou a descer lentamente. As mãos suavam frias, e os pés estavam doloridos de tanto andar, mas, mesmo assim, ela não pararia. Sentiu o chão desnivelado do alojamento e, devagar, virou o corpo.

E lá estavam eles.

O cabelo de Marc e Kyle havia crescido, estavam mais enrolados nas pontas e havia uma franja diagonal em Kyle e a franja de Marc estava repartida atrás das orelhas deixando-o muito maduro e até atraente. Charmin sorriu para eles e acenou.

James estava maior do que ela se lembrava. O cabelo estava todo desarrumado como sempre, mas ele estava mais esguio. A blusa estava toda arrumada e ela sentia de longe o cheiro da colônia caseira dele. Ele havia se arrumado especialmente para ela. James sorriu docemente para Charmin.

Will... Will estava sem palavras. Ele estava com os cabelos molhados penteados para trás e usava um sobretudo bege que o deixava misterioso e sexy. Por mais que tivesse vinte e poucos anos, aparentava ter a idade de James ou dos gêmeos. Ele estava incrível como sempre e Charmin o ouviu a cumprimentar com o tradicional apelido.

E, finalmente, Josh. Ele parecia envergonhado, mas ao mesmo tempo ansioso, como que, se pudesse, sairia correndo para abraçá-la. Os cabelos loiros agora estavam muito bagunçados e formavam um amontoado que era uma espécie de franja. Ele estava mais forte e as mãos dentro do bolso se agitavam.

Mas, ele não estava sozinho. Havia alguém com o braço enlaçado ao seu lado.

– Tudo bem, Charmin?

Bam.

Foi o último barulho que Nícolas ouviu no escuro.

As luzes se acenderam e ele estremeceu debaixo do cobertor, procurando a mão de sua mãe. Mas ela não estava lá, nem a mão, nem a mulher. Sentiu seu estômago revirar-se e as mãos começaram a suar frio, um calafrio subiu de seus pés até as pontas das orelhas, instalando a imagem do homem em sua mente novamente.

Com medo, Nick olhou levemente para cima e viu dois pares de pés. Um com sapatilhas azuis rasgadas na ponta, e um par de chinelos marrons que já haviam sido usados para bater em sua bunda. Ele quis chorar, mas segurou as lágrimas da forma mais forte que pôde. Possuía nove anos, não era uma idade para ficar chorando toda hora.

– Não... Jean... Por favor...

Slap.

Nick assustou-se com o barulho feito pelo tapa e soube que ele havia a atingido. Agora, restava esperar sua vez. Ouviu o passo de algo metálico cair no chão, provavelmente outra latinha de cerveja que ele tomou enquanto estava fora. Os passos ficaram mais audíveis e ele pode diferenciar os arrastados e pesados dele dos desesperados e rápidos de sua mãe.

– Cadê aquele merdinha do seu filho?

– Por favor, ele não.

Então foi descoberto e sentiu uma mão pesada puxar os cachinhos de seu cabelo. Forçadamente, Nick olhou para cima e pôde ver as olheiras profundas e quase pretas dele, os olhos cinza iguais aos seus e o cabelo louro todo encharcado de suor. Um odor de cerveja e whisky entrou por suas narinas e ele não sentiu-se enjoado, já era a quinta ou sexta vez que ele fazia a mesma coisa. Mas, não queria dizer que não dava medo.

Achei você, filho duma putinha.

– Jean, ele é só um menino!

O homem virou-se abruptamente e, com a outra mão, empurrou Louise. Ela tropeçou numa tábua de madeira solta do chão e caiu. Ele riu descaradamente e soltou Nick, fazendo com que o mesmo caísse também. O menino colocou a mão na bunda que estava doída e, com os olhos vermelhos, olhou para ele.

– Levanta daí, moleque!

A camiseta dele estava manchada com marcas de algum líquido que provavelmente era bebida e a bermuda estava rasgada e suja de terra em algumas partes. Fazia três ou quatro dias que ele não aparecia em casa, e Nick nunca esteve mais em paz do que durante esse tempo. Então ele voltou e o tumulto começou novamente.

Apoiando as mãos no chão, Nícolas levantou. Não havia percebido, mas tinha prendido a respiração durante todo aquele tempo. Sem que o homem percebesse, soltou o ar dos pulmões e tentou pensar em momentos positivos para acalmar o coração. Claro que estava sendo em vão, mas o otimismo era uma de suas melhores características. Pensou nos dias que ajudava sua mãe a cozinhar o arroz e, sem que notasse, sorriu.

– Tá achando graça, seu merda? – O homem vociferou e Nick sentiu o hálito forte em seu rosto. – Se eu enfiar esse chinelo na sua bunda vai achar graça também?! – O garoto endureceu a postura e tentou manter-se confiante frente à situação. – RESPONDE CARALHO!

– Nã-não senhor!

– EU PEDI PRA GAGUEJAR? GAGUEJAR É COISA DE GAY! VOCÊ É GAY?

– Não senhor!

O homem estreitou os olhos e aproximou-se, arrastando os chinelos no chão. Agarrou o pescoço de Nick e levantou-o, deixando-o na mesma altura que ele. O ar começou a esvair-se de seu pulmão e Nick prendeu a respiração para reservar o restante de oxigênio. Fechou os olhos por um segundo para se acalmar, mas era tarde demais: uma lágrima escorria de seu rosto.

– Vai chorar, seu viadinho? Nem tomou tapa e quer chorar? – A mão apertou cada vez mais o pescoço e Nícolas começou a tossir. – Isso, tosse mesmo. Assim, quando você morrer, vai enxergar como você é fraco.

– P-pai...

– PAI O MEU PAU! É SENHOR! – A mão dele bateu em seu rosto, deixando um ardor em sua bochecha. Nick segurou as lágrimas. – Pede desculpa, viado.

– De-desculpa, sen...

– SEM GAGUEJAR! – Gritou e socou seu estômago, fazendo Nick tossir e sentir um gosto de sangue. – Depois de dez anos, ainda não acredito que fodi sua mãe pra um pedaço de merda como você nascer. – Murmurou enquanto soltava o garoto e lhe dava um chute na cintura. – Ela devia ter abortado ao invés de um lixo como você nascer.

Rapidamente, Nick olhou para trás e pôde ver sua mãe levantando-se vagarosamente. Provavelmente, não queria fazer nenhum barulho alto demais para que seu pai se virasse e a visse em pé novamente. Se a visse, o estrago seria feito novamente. Voltou seu olhar para o homem e, por um rápido momento, viu-o levemente tonto por conta de muita bebida. Olhou novamente para trás e viu que o que o pai havia derrubado não era uma latinha, e sim uma garrafa de vidro. Acenou levemente para a mãe e, novamente, voltou a fitar o homem a sua frente.

– Levanta daí, porra.

– Sim, senhor.

Num sobressalto, Nick já estava de pé.

– Vai ficar parado aí? Acha que eu to aqui pra ser um palhaço?

– Não, senhor.

– ENTÃO VAI ME PEGAR UMA CERVEJA LOGO, FILHO DUMA PUTA!

– Sim, senhor.

– E vê se não demora...

Não completou a frase, sua mãe havia o empurrado. Como um peso morto, Jean caiu com a cara no chão e soltou um grito de dor ao sentir a cara batendo no solo. De repente, Nick correu até a mulher e empurrou-a para fora do quarto para que ela saísse e deixasse os dois sozinhos. Estava na hora de mostrar que era melhor do que seu pai pensava que fosse.

O pai ainda não havia virado. Não aguentava o próprio peso de tão tonto que estava.

Pegou a garrafa e forçou-a contra o chão, fazendo com que ela quebrasse no meio. Jogou a parte de baixo para longe e empunhou a parte de cima, esperando que o pai se levantasse. Ao vê-lo quase ficar de pé, correu até ele e cravou o vidro em sua panturrilha, assistindo-o cair no chão com sangue escorrendo por sua perna. Agachou quando o pai caiu, ainda segurando o pedaço de garrafa.

– Seu... Merda...

– Não me chame de merda, idiota. – Gritou enquanto virava o pedaço de vidro em sua perna. Ouviu os gritos de dor do homem e riu fraco pelas narinas. – Achava que eu ia apanhar de você pra sempre? Achava que eu era fraco? TENTA LEVANTAR AGORA, SEU RETARDADO.

Soltando o vidro, Nícolas levantou e deixou o pai xingando-o e murmurando coisas inúteis para ele. Fechou a porta e trancou-a, correndo pelo estreito corredor e chegando até sua mãe, que chorava na pequena cozinha. Colocou a mão sobre seu ombro e esperou que ela o olhasse. Assim que o fez, ele abraçou-a apertado. Enxugou as lágrimas dela com sua camiseta suja com sangue e soltou um riso alegre, aliviado.

– Acabou, mamãe. – Lágrimas escorriam de seus olhos. – Acabou...

– Meu querido Nícolas... – Ela passava a mão sobre os cachos de Nick enquanto ele fungava pelo choro. – Você... Matou?

Nick negou. Mesmo que a pergunta fosse sombria demais, ele estava tão eufórico que não conseguia enxergar o lado mau de nada.

– Ele não vai conseguir levantar por um bom tempo. Só.

– Ah, que ótimo. – Maria sorriu alegre e apertou-o no abraço. – Nós vamos ficar livres de tudo, querido.

– Sim...

Um barulho foi ouvido. Uma porta se abriu. Assustado, Nick olhou para o lado, esperando ver o pai com a garrafa na mão, pronto para matar os dois. Mas, não viu nada. A porta continuava fechada e não havia sinal de que seria aberta.

– Devem ser os guardas.

Ela distanciou-se e, em passos rápidos, andou até a porta de entrada. Nick a seguiu, desesperado e alegre ao mesmo tempo.

– Mãe! Você os chamou?

Ela o olhou como se fosse uma pergunta óbvia.

Dois guardas entraram pela porta, vestindo o uniforme da guarda monárquica. Eles olharam para Nícolas e um deles agachou-se para perguntar onde o homem estava e afagou seus cabelos. Surpreendeu-se, nunca pensou que havia guardas tão bondosos assim.

– A-aqui tá a chave. – Nick deu a ele o objeto. – Não o deixem escapar, por favor.

– Nós não vamos, garotinho. – O guarda sorriu calorosamente para ele. Nick, por um momento, sentiu-se fora de toda aquela situação. – Só fique aqui e espere.

Os dois homens sumiram nos corredores e Nick abraçou a cintura de sua mãe, ainda tremendo um pouco. Ela colocou uma mão em seus cabelos e passou a mão sobre eles enquanto olhava esperançosa para o vazio do corredor.

Nick sabia que ela ainda o amava. Sua mãe ainda o amava porque, talvez, ele tenha sido um homem bom e carinhoso no passado. E se sentia culpado por ter nascido e destruído a ótima relação que os dois tinham. Talvez, no final, se ele tivesse morrido na barriga de sua mãe, as coisas seriam melhores para ela.

Levantou os olhos e pôde ver seu pai algemado, mancando e com a perna inchada. Instantaneamente, Louise começou a chorar por seu esposo e, se não fosse pelo abraço do filho, teria caído no chão. Nick a fitou por alguns segundos e viu em seus olhos a dor de ver alguém que você ama abandonar-te.

O guarda gentil apertou a algema de Joseph e acelerou seu passo, empurrando-o. Acenou para Nícolas com um sorriso confortador e despediu-se de Louise formalmente. O outro guarda assentiu para o filho e a mãe e seu pai olhou pela última vez, atravessando a porta. Mexeu a boca em três palavras e, em seguida, sorriu friamente, indo embora.

Louise fechou a porta e trancou-a, com um notável medo de que ele escapasse e abrisse a porta novamente, querendo vingança. Agachou-se para ficar da mesma altura que Nick e colocou a mão sobre seu ombro.

– Acabou, meu querido. Acabou tudo.

Nick assentiu. Um sorriso infantil e mentiroso estava preso em seus lábios.

– Vou fazer nossa janta e um bolo de presente pra você.

Enquanto observava os passos cansados e rápidos da mãe, Nick sentou-se numa das cadeiras da mesa e fitou os próprios pés. Em sua mente, tudo vinha passando como um filme de falsamente feliz. Pairou em sua cabeça o sorriso maldoso de seu pai e a frase murmurada.

Eu vou voltar.”

***

Nícolas acordou suando frio e, levantando o tronco rapidamente, percebeu que teve outro pesadelo relacionado ao pai. Passou a mão pelos cachos e tirou-os da testa, em seguida erguendo a camisa para enxugar o suor. Apertou os olhos e percebeu que estivera chorando durante o sono.

Olhou para Charmin e a expressão passiva da garota o tranquilizou. Os olhos dela estavam fechados de uma maneira calma e os lábios rosados e pequenos formavam um bico. Ela abraçava o corpo, na parte que Nick a rodeou. Ele sorriu e passou a mão pelos cabelos negros dela. No final, tudo havia sido um simples pesadelo.

Mas, mesmo que não fosse real àquela hora, foi real oito anos atrás. Ainda lembrava-se do medo o possuindo e da sensação das mãos dolorosas do bêbado em seu pescoço. Aquilo foi o maior de seus medos durante longos três anos; ver sua mãe sangrando e com hematomas no corpo, olhar-se no espelho e ver o horror em seus olhos, tudo por causa de uma única pessoa.

Uma única memória do pai quando tinha cinco anos era, também, a única feliz. Estava Nick em suas costas, eles brincavam de cavalinho no chão da sala enquanto a mãe ria e batia palmas. De longe, aquele era o melhor dia de sua infância precocemente perdida. Não havia bebidas, surras, drogas ou brigas. Somente um amor puro que cercava uma família miserável.

Mas, então, um dia, Nick estava brincando com um carrinho de garrafa pet que a vizinha fizera quando ouviu os gritos de sua mãe e, logo em seguida, seu pai saindo pela porta da cozinha, visivelmente furioso. Quando olhou para trás, lá estava ela, com o rosto roxo na bochecha e com lágrimas cheias escorrendo pelo rosto. Depois daquele dia, o pai só apareceu em casa uma semana depois, completamente diferente.

E então o caos começou: sua mãe começou a se drogar e beber constantemente, chegando a esquecer por alguns dias o próprio filho, e o pai, que não voltava toda noite e, quando aparecia, era pra bater na esposa e no filho. Assim foi o auge de sua infância: palavrões, chinelos, cheiro de pinga e de maconha e mãos duras e frias.

Em suas memória estava o dia que saiu de casa. Naquela época, ainda possuía seus catorze anos e era só uma criança marrenta que se achava dona do próprio nariz quando nem sabia se curar de um machucado. Havia deixado a bolsa pronta e só faltava despedir-se de sua mãe, que, àquele momento, estava no pequeno quintal, fumando cigarro. Abriu a porta para o lugar e encontrou-a sentada numa cadeira velha, com o cigarro em mãos e chorando. Naqueles dias, ouvia-a chorando quase todas as noites pelo esposo perdido. Agora, ela estava chorando de dia, e isso o impressionava. Aproximou-se e, e simples e curtas palavras, comunicou que estava saindo. Ela olhou-o com mágoa e fúria e, pisando no cigarro, murmurou “Não devia nem ter falado. Era só ir e me deixar em paz”. Aquilo o atingiu tão fortemente que vacilou no passo ao fechar a porta. Depois do curto diálogo, saiu de casa segurando uma lágrima amarga nos olhos.

Nunca soube ao certo o que levou seu pai a mudar. Só soube que, quando ele mudou, nunca mais voltaria a ser quem era antes.

– Nick?

Olhou para o lado e pôde ver Charmin sentada onde dormira. A blusa dela estava amassada e uma das alças havia caído, deixando o ombro nu. O cabelo estava amassado e emaranhado, e a franja caía em seu olho. Ela passou a mão pelos olhos e bocejou, e Nick a achou tão graciosa que, se não estivesse afundado na tristeza da infância, beijaria-a naquele exato momento. Ela engatinhou até seu lado e, com os olhos ainda inchados por causa do sono, fitou-o.

– Ah, te acordei, Char?

A voz dele soava calma. Charmin estranhou, pois, se havia uma coisa que Nick não possuía, essa coisa era calma.

– Está tudo bem? – Perguntou, erguendo a alça da blusa. – Você estava chorando?

– Tá... Tá tudo bem. – Sorriu enquanto coçava a nuca. – Vem, vamos voltar a dormir.

Nick pegou as duas mochilas que trouxeram, juntou-as e fez uma espécie de travesseiro com elas. Deitou-se e colocou a cabeça sobre os objetos, olhando Charmin o inspecionar com o olhar. Ele sorriu e revirou os olhos, estendendo a mão, chamando-a. Ela aceitou e ele a puxou de um jeito a deixá-la abraçada.

Estava tomando coragem pra fechar os olhos, temendo sonhar com aquilo novamente.

– Bons sonhos, minha Charmin.

– Sua?

Ao ouvir a voz fina e falsamente irritada de Charmin, Nícolas parou de temer o sonho. Tudo que importava agora era tê-la em seus braços.

– É. Sempre.

***

James ouviu um barulho na madrugada e despertou imediatamente, olhando para o alçapão com uma esperança que se esvaía a cada segundo que ele olhava e ela não descia por aquelas escadas, com os cabelos negros bagunçados e uma cara de sono que ele simplesmente amava.

Não soube por quanto tempo ficou olhando, mas ao ver num borrão uma sombra de Charmin descendo pelas escadas num ritmo um tanto pausado e apagado, decidiu que era hora de parar de encarar o local e levantou-se para tomar uma água e cessar o estresse.

Preguiçosamente, colocou as pernas para fora da cama e percebeu que sentia falta de pernas finas sobre as suas que não o deixavam levantar até que a outra decidisse sair. Deslizou o corpo para fora da cama e estava de pé, com uma leve náusea e tontura.

Não vinha se alimentando direito desde que soube que Charmin estava no exército. Não se alimentava pelo simples motivo de não haver nenhuma razão para fingir estar bem se ela não estava lá para animá-lo.

Desde os onze anos de idade, a idade que a conheceu, ele nunca teve um motivo tão bom para se alegrar se não fosse ela. O pai saiu de casa muito cedo para trabalhar como guarda do castelo em troca de um salário mínimo para a mãe e o filho. E, sua mãe, depois de alguns anos sem o marido, deixou-se vencer pela saudade e comprou em empréstimos uma passagem para A para trabalhar de cozinheira no castelo e ficar junto do esposo por algumas horas no dia.

Com o surgimento de Charmin, ele tinha alguém a quem se apoiar. Um chão para os pés pesados. Se fosse pensar por um lado, possuía até alguém para colocar os sentimentos dentro. Ela era, de longe, a pessoa de quem mais se uniu durante todos os seus dezoito anos.

A memória preferida dos dois, depois do dia em que a beijou, era uma manhã de domingo que James fez seus dezesseis anos e Charmin comprou frutas, ovos e bolo para um café da manhã especial dos dois. Mas, mais que isso, deu a ele um de seus maiores presentes de todos: Uma carta de sua mãe.

Nunca soube o quanto de saudade sentia daquela mulher até olhar a letra rápida e fina dela. Leu os seis papéis cerca de quatro vezes seguidas até decorar a próxima palavra que vinha depois da que estava lendo. Agora, em dois anos, havia se esquecido de algumas partes da carta e as mais importantes deixou guardado na memória.

Um dos pedaços que mais gostava era o que falava sobre Charmin:

“Cuide desta garota, meu filho. Ela vai valer mais do que todas que você encontrar, eu tenho certeza. Eu sei que você a amava mesmo com tão pouca idade e é muito provável que ainda a ame, seja no sentido afetivo ou fraternal. Seja amando-a como amo seu pai, ou, seja como eu sei que me ama. Sinceramente? Não importa o tipo de amor, importa se há ou não. Então cuide dela, e, principalmente, não a deixe ir”.

Enquanto agachava-se para pegar uma garrafa de água no frigobar, deixava um sorriso bobo e nostálgico no rosto.

A época em que amou Charmin de um modo como um marido ama a mulher foi boa, foi ótima, na verdade. Mesmo que, agora, achasse injusto e totalmente errado, lembrava-se de, quase todas as noites, acordar de madrugada, olhar para o rosto da garota ao seu lado e perder a razão, beijar-lhe os lábios de uma forma leve e calma, mas apaixonada. E, agora, a tratava como uma irmã, aquele tipo de estar junto todo o tempo e dividir o berço.

Mas, de duas coisas ele sabia: Primeira: Amava-a. Segunda: Em qualquer tempo e circunstância, nunca a deixaria ir.

***

– Bem, nós ainda temos uma cachoeira pra seguir, mas, como ela é bem perto do alojamento, se quiser pulá-la para chegarmos logo ao local...

– É, vamos fazer isso. – Charmin juntou as duas palmas e olhou para Nick, determinada. – Eu quero chegar, dormir e deitar num lugar que não seja um Inferno disfarçado de exército ou um chão duro feito de pedra. Meu corpo pede pela cama do alojamento.

– De qualquer forma, vai ser mais rápido mesmo. – Nick passou o braço por seus ombros. – Algumas horas caminhando e nós chegaremos a tempo e...

Repentinamente, Nick lembrou-se de algo. Ela estava lá, com Josh e todos os outros. O que Charmin faria se a visse novamente, depois de tantos anos. Agora que as memórias estavam voltando, ela provavelmente lembrava-se também de algumas coisas com Josh. Isso era óbvio, na verdade. Mas, mais importante, o que ela pensaria se a visse lá, com um de seus amigos e, pior, na cama de um deles.

– E?

Aquilo não podia acontecer. Tinham que atrasar um pouco para ele contar. Havia esquecido completamente. Como foi tão... Tão... Idiota, de se esquecer de um detalhe tão importante como aquele?

– Ah... Nada. Só... Me Lembrei de como o pessoal sente sua falta. Nada que você não saiba.

– Hum...

– É.

– Tá.

***

As árvores começaram a ficar mais densas e maiores, a grama mais verde e Charmin já ouvia o barulho do vento passando por entre os galhos e, se prestasse atenção e ouvisse com mais silêncio, identificaria o som da cachoeira.

Agachou no chão e apalpou o local até sentir uma espécie de maçaneta. Puxou-a e olhou para as escadas que apareceram em sua visão. Olhou para o lado e pôde ver Nick, com um sorriso alegre no rosto.

– Pronta?

Charmin acenou. Estava mais pronta do que nunca.

Colocou os pés sobre o primeiro degrau e começou a descer lentamente. As mãos suavam frias, e os pés estavam doloridos de tanto andar, mas, mesmo assim, ela não pararia. Sentiu o chão desnivelado do alojamento e, devagar, virou o corpo.

E lá estavam eles.

O cabelo de Marc e Kyle havia crescido, estavam mais enrolados nas pontas e havia uma franja diagonal em Kyle e a franja de Marc estava repartida atrás das orelhas deixando-o muito maduro e até atraente. Charmin sorriu para eles e acenou.

James estava maior do que ela se lembrava. O cabelo estava todo desarrumado como sempre, mas ele estava mais esguio. A blusa estava toda arrumada e ela sentia de longe o cheiro da colônia caseira dele. Ele havia se arrumado especialmente para ela. James sorriu docemente para Charmin.

Will... Will estava sem palavras. Ele estava com os cabelos molhados penteados para trás e usava um sobretudo bege que o deixava misterioso e sexy. Por mais que tivesse vinte e poucos anos, aparentava ter a idade de James ou dos gêmeos. Ele estava incrível como sempre e Charmin o ouviu a cumprimentar com o tradicional apelido.

E, finalmente, Josh. Ele parecia envergonhado, mas ao mesmo tempo ansioso, como que, se pudesse, sairia correndo para abraçá-la. Os cabelos loiros agora estavam muito bagunçados e formavam um amontoado que era uma espécie de franja. Ele estava mais forte e as mãos dentro do bolso se agitavam.

Mas, ele não estava sozinho. Havia alguém com o braço enlaçado ao seu lado.

– Tudo bem, Charmin?


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Notas finais do capítulo

Gostaram? :3 Me digam o que acharam, por favor ;-;
Bye bye S2



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