O despertador berrava nos ouvidos do garoto de olhos espantosamente azuis. Ele suspirou e atirou o pequeno relógio longe, espatifando-o contra a parede. Não queria saber do horário, não queria saber de nada. Escondendo a cabeça com o cobertor, Ace soltou mais um profundo suspiro e abraçou o próprio corpo como se quisesse impedir que se espatifasse e os cacos de sua alma se perdessem no tempo e espaço. O gato risonho, que na época não fazia nem ideia de que ocuparia esse posto, era um rapaz de dezoito anos com cabelos negros que lhe caíam pelos ombros, olhos azuis-céu e uma pele branca de aspecto doentio de quem não via o sol há muito tempo., afinal Ace havia se isolado do mundo desde que um acidente ceifara a vida de seus pais no dia de seu aniversário de dezesseis anos. O rapaz se sustentava vendendo histórias para uma grande editora sob o pseudônimo de Alois Bellventure, e rapidamente conseguiu juntar uma pequena fortuna que o manteria pelo resto da vida. Vida... Para ele isso se resumia a comer, dormir, escrever e tocar seu amado violino negro. Enquanto devaneava sobre sua confusa e indescritível existência, duas batidas na porta o arrancaram de seus pensamentos confusos.

Um sorriso coloriu o rosto triste do rapaz quando ele girou a maçaneta e recebeu o carteiro que vinha entregar os livros que ele havia encomendado. Quando terminou de assinar os papéis e que confirmavam a entrega, o garoto de olhos azuis ligou o aquecedor e se atirou na cama, deliciado com o fato de que poderia ocupar sua mente por algum tempo. Foi então que algo o surpreendeu. No meio dos livros que havia encomendado um deles lhe era estranho. Com uma bela capa de couro e letras garrafais prateadas, o livro se intitulava Alice no País das Maravilhas. Estranho. Seria algum tipo de promoção na qual ele não havia prestado atenção? Não importava agora. Aquele seria o primeiro que ele iria ler. Em poucas horas, o garoto já havia devorado toda a história e um sentimento inquietante se espalhava por seu corpo. Estaria ele ficando doente? Sacudiu a cabeça, fazendo os cabelos já bagunçados parecerem uma volumosa juba.

- Bobagem. Eu só devo estar... Cansado. - Resmungou para si mesmo, cuidadosamente deixando de lado o fato de que ele havia dormido dezessete horas seguidas na noite anterior.

Enrolando-se em um grande cobertor verde e abraçando o próprio corpo pela segunda vez no dia, ele adormeceu.

A noite já ia alta quando ouviu-se um berro vindo do apartamento pequeno e atulhado de Ace. O rapaz olhava para as próprias pernas com espanto, tentando entender onde elas haviam ido parar.

- Eu... Eu ainda estou sonhando. – Os olhos azuis se arregalaram com a (errônea) compreensão. - Então vai ser bem simples me beliscar e...

No momento em que Ace decidiu se beliscar, ele notou que a mão também não estava mais lá. Sem perceber, os pensamentos do garoto imediatamente se voltaram para o personagem que ele mais havia apreciado em Alice, Cheshire. Uma risadinha escapou de seus lábios descorados quando se viu pensando na séria possibilidade de ser o gato risonho da realidade. O riso tornou-se histérico quando o rapaz pensou que com todas aquelas feridas que sua alma carregava ele nunca poderia se tornar o protagonista que tanto chamara sua atenção. O riso histérico cessou quando uma densa névoa pareceu rodopiar no lugar onde suas pernas deveriam estar, e elas lentamente voltaram ao seu lugar.

- A... Ah. – A boca do garoto se abriu em um perfeito O quando ele notou que os membros estavam todos em seus devidos lugares, mas que haviam voltado um tanto quanto... errados. Os dedos anular e mínimo haviam trocado de lugar, e uma das pernas possuía uma gigantesca mancha marrom na canela. – O que raios está acontecendo aqui?