(Naquele verão)

Se realmente existe alguma força divina olhando por todos nós sobre o infinito dos céus, ela estava incrivelmente irritada naquela noite estrelada de verão. O ar estava abafado e a chuva caía torrencialmente há mais de uma hora, tornando ainda mais difícil a vida daqueles que estavam na estrada tentando voltar para a cidade do Rio de Janeiro.

– Eu não consigo mais dirigir desse jeito, Megan – reclamou Davi, sentado no banco do motorista no luxuoso carro de Jack Parker, coçando com a mão esquerda a barba que já estava por fazer há alguns dias. – Eu não tô enxergando mais nada e essa estrada tá meio deserta. Procura aí no seu celular o hotel mais perto daqui, nós vamos ter que parar.

A loira lhe encarou, surpresa e um pouco ultrajada, e levou as mãos às mechas do cabelo recentemente cortado na altura dos ombros. Davi sabia que ela mexia nos cabelos sempre que estava nervosa.

– Você não vai me obrigar a dormir num motel fuleiro, Davi, no way. Perto de estradas só tem motéis e são todos nojentos – Megan teclava rapidamente no seu MarraPhone e parecia estar, mesmo à contragosto, fazendo o que ele lhe pedira. – Isso é tudo sua culpa. Eu estava muito bem antes de você aparecer e acabar com o meu sossego.

Davi suspirou, contrariado. Parecia que com ela as coisas sempre se sucediam da mesma maneira. Ele realmente não queria brigar, mas Megan Lily fazia aflorar a pior faceta de sua personalidade.

– Se você quer amaldiçoar alguém, Megan, culpe o seu pai – Davi já tinha esgotado a sua cota de paciência com os Marra naquele dia. Jonas, aquela megera da mãe dele, Megan, Pamela, todos pareciam querer tornar sua vida um inferno. – Foi ele que me pediu pra ir buscar você naquele fim de mundo. Eu tinha uma pilha de relatórios de análise de mercado para ler, logicamente não queria passar o dia resgatando mais uma donzela em perigo.

Aparentemente Megan também não estava muito interessada em discutir, já que ela só habilitou o GPS para o endereço do motel mais próximo que o celular lhe indicava e permaneceu em silêncio por algum tempo.

– Quando foi que você passou a seguir todas as ordens de Jonas Marra, hein? – Ótimo. Até que a paz tinha durado consideráveis segundos. Mas Megan Lily nunca conseguia ficar calada. Ele a conhecia bem o suficiente para saber disso.

Davi decidiu ignorar a provocação.

– Você deixou de ser o meu Golias há bastante tempo, Davi – Ele não entendia bem o porquê, mas a voz da garota parecia um pouco trêmula. Ela queria chorar? Por causa dele? – O Herval estava certo. Você perdeu todos os seus ideais. Você se tornou um babaca no momento que assumiu a presidência daquela empresa.

O que mais lhe doía naquela afirmação era que Megan estava, pelo menos daquela vez, correta. Ele sabia que tinha perdido o respeito e a admiração de Herval, seu ex-mentor e, agora, também ex-amigo, enquanto, em compensação, a loira que estava ao seu lado a cada dia conquistava um pequeno lugar no coração do idealizador da Plugar. Os dois estavam desenvolvendo uma relação irritantemente paternalista, e Davi e Jonas pareciam ser os mais afetados por este acontecimento recente.

Davi continuou olhando fixamente para a estrada a sua frente, deixando as dúvidas e acusações de Megan no ar, já que ele sabia que não conseguiria encará-la naquele momento. Não quando ele tinha certeza de que o olhar da garota que ele mais amava odiar estaria tomado por decepção e reprovação, e ele era, novamente, a principal causa disso.

***

You have always worn your flaws upon your sleeve

And I have always buried them deep beneath the ground

Dig them up, let's finish what we've started

Dig them up, so nothing's left unturned

– Já consegui dois quartos separados – Davi encontrou Megan sentada debaixo de um toldo coberto na área detrás do motel. A decoração do ambiente era de um extremo mal-gosto e não combinava em nada com a loira que estava por ali, mas Megan parecia estar estranhamente a vontade. – E não se preocupe, eu avisei a recepcionista duas vezes de que você quer que o seu quarto seja completamente desinfetado. E que se pegar alguma doença, vai colocar esta espelunca na justiça.

Megan soltou uma gargalhada, abrindo espaço para ele se sentar ao seu lado.

– Era pra você ter omitido essa segunda parte, you idiot – ela olhou para o céu. Davi nunca tinha reparado, mas ela era ainda mais bonita de perfil. Insuportavelmente bonita. – Aposto que agora eles vão cuspir na cama onde eu vou deitar, só de raiva.

– Eu pensei que você tinha dito que ia passar a noite toda em pé, só pra não ter que tocar em nada – ele respondeu com um sorriso maroto.

Provocar Megan Lily Parker-Marra. Era seu esporte favorito e ele já podia ser considerado medalhista de ouro. Uma tradição mesmo antes de ele admirá-la e considerá-la uma amiga, que teve seu início quando ele ainda achava que ela era apenas uma patricinha mimada que odiava perder. Megan ainda era mimada (e continuava odiando perder), mas ele aprendera a amar todos esses defeitos.

– O que você tanto olha nesse céu cinzento, Megan? – Ele tentava evitar, mas tinha uma curiosidade assombrosa acerca de tudo que se passava naquele enigma que era a mente dela.

Pensar que há algum tempo considerava a personalidade de Megan extremamente superficial lhe dava vontade de rir naquele momento. Aquela cabeça loira guardava mais mistérios do que o número de combinações possíveis de uma senha de wi-fi.

Qualquer pessoa ama todas as versões da Megan, até as mais cretinas. Tinha ouvido essa frase de Prudence enquanto jantavam com Ernesto há algumas semanas, e era obrigado a concordar com a ruiva mais maluca do universo.

– Eu tô só olhando – Megan lhe deu um sorriso de lado. – Eu acho que a lua crescente me persegue, sabia? Toda noite que eu decido observar o céu, é ela que tá por lá.

Como se os deuses lá em cima estivessem respondendo à afirmação de Megan, a chuva, que tinha se resumido à uma garoa, começou a apertar e o vento a sobrar na direção do toldo que os abrigava.

– A gente devia subir – Ela se levantou e caminhou para a porta de vidro que ficava logo atrás de onde eles se encontravam. – Você não vem?

– Vou ficar um pouco aqui pensando – Davi lhe estendeu o cartão do quarto que havia sido preparado para ela. – Te encontro pro café-da-manhã. Cuidado com os cuspes de funcionários irritados, ok?

– Cretino – ela riu enquanto ia embora. De repente a loira refez o caminho até o banco em que Davi estava sentado e lhe deu um beijo na bochecha. – Boa noite, Davi.

Ele já havia perdido as esperanças de ela voltar a chamá-lo de Golias.

Por vezes tomamos decisões em nossas vidas que nos enredam em uma teia de acontecimentos sem fim, da qual dificilmente nos livraremos.

Davi, por exemplo, se sentia preso numa avalanche de eventos que fugiam do seu controle. Nunca esperou que sua vida fosse mudar tanto em menos de um ano. A vitória no concurso Geração Brasil. A presidência da Marra. A decisão de se mudar para um apartamento junto de Manuela e deixar a Gambiarra. A decepção que via estampada no rosto de Herval, de sua família e agora, também, no de Megan. Em que momento a vida tinha se tornado tão complicada?

Não aguentava mais as cobranças de Jonas e as expectativas que Manuela depositava sobre seus ombros. Como presidente da empresa, ele tinha que estar a par de tudo que ocorria nas diversas distribuidoras da Marra espalhadas pelo mundo, dos próximos lançamentos a serem anunciados, das críticas recebidas pela empresa através dos principais veículos de comunicação. Manu dizia que a vida estava se encaminhando da maneira que ela sempre sonhou, que eles tinham que se focar cada vez mais no trabalho, mas ele nunca tinha se sentido tão desanimado com o mundo da tecnologia. Davi tinha achado que iria controlar a Marra, e no fim, a empresa foi capaz de dominá-lo.

Para complicar ainda mais sua situação, não conseguia evitar essa estúpida sensação no estômago toda vez que se aproximava da herdeira dos Parker-Marra. Ele tentava se convencer de que tinha uma namorada (e repetia para si mesmo o quanto a amava). Repetia o mantra de que Megan já estava envolvida com outro cara, alguém que a merecia muito mais do que ele. Mas seu coração parecia contrariar sua mente.

E agora, não parava de pensar em Megan sozinha no quarto 32, passando aquela noite quente de verão tão perto dele. Ele queria tanto deitar-se, envolvê-la em seus braços e dormir com ela. Não precisavam transar. Nem mesmo fazer amor. Davi só queria adormecer ao lado dela, no sentido mais inocente da palavra. Mas lhe faltava coragem, porque ela tinha Tomás e, no final das contas, Davi era desajeitado e Megan era apaixonante. Ele era irremediavelmente sem graça e ela era infinitamente fascinante.

Então, ele finalmente decidiu ir para o seu quarto e desabar na cama, pensando que, se pessoas fossem medidas de acordo com gotas de chuva, ele seria apenas uma garoa e ela, um furacão.