Impulsive. escrita por Juh


Capítulo 3
Uma ligação do Paraíso pode significar uma Princesa de Gelo desaparecida




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— Capitulo III —

Uma ligação do Paraíso pode significar uma Princesa de Gelo desaparecida

Ou talvez não.

Assim que termino de dizer meu nome, Seth sorri abertamente e pergunta:

— Charnell? Se não me engano tem um garoto no time com esse sobrenome também...

Dou de ombros.

— Nós somos irmãos — digo.

Seth pisca com força. Consigo ver que ele está mais surpreso do que parece.

Irmãos? — repete, parecendo sem jeito. Então, limpa a garganta discretamente — Hã... Quer dizer, vocês não se parecem nem um pouco.

— Bem, depende — respondo, rindo — de qual dos dois você está falando?

— Dos dois? — ele repete — Eu estava falando do Ryou. Você por acaso tem outro irmão no time?

— Tenho sim — dou de ombros, mas não menciono Tresh, porque realmente não acho que vá fazer diferença — mas concordo com você. Ryou e eu realmente não temos nada em comum.

Já passei por essa situação muitas vezes. Na verdade, quando Ryou e eu dizemos que somos irmãos à alguém, é bem comum esse tipo de reação. E isso não nos surpreende. Ryou é moreno, e eu sou branca como neve. O cabelo dele é castanho como chocolate e o meu é preto como tinta. Seus olhos são verdes, e os meus azuis. Ele não é alto, mas também não é tão pequeno como eu. Por isso, quando andamos juntos por aí, é bem comum as pessoas nos confundirem com um casal de namorados, e não de irmãos.

Exatamente quando penso sobre isso, uma mão toca meu ombro:

— Tresh ligou pra Kenny — Ryou diz, sem cerimônias — ele quer que nos encontremos no estacionamento. Agora.

Olho para ele, e tenho certeza que Ryou consegue ver a dúvida estampada na minha cara. Penso em perguntar por que, mas algo na expressão dele me diz para ficar calada. Ryou não está sério — ele nunca está — mas também não está sorrindo. Seus olhos brilham como se houvessem pequenas labaredas dançando atrás de seus íris, e consigo ler nelas o que ele não está dizendo.

— Ok — digo, fazendo que sim com a cabeça. Então, me viro para Seth, e lhe lanço um sorriso sem jeito, dando de ombros — tenho que ir, foi mal.

Ele sorri de volta.

— Tudo bem — responde — eu também tenho. O Johnny deve estar me esperando.

— Ei — Ryou chama, atraindo a atenção de Seth — eu conheço você — conclui, franzindo as sobrancelhas.

— Eu sou o novato do time de basquete. Seth Roayout — responde, ainda sorrindo.

— Ah — Ryou grunhe, voltando seus olhos para mim como se perguntasse “por quê estava falando com ele?”.

Dou de ombros.

— Acho que eu ainda não tive a oportunidade de falar com você — ele continua, examinando cada centímetro do rosto de Seth —, mas agora não dá tempo. Então, até outra hora — ele se vira, de costas, me puxando pela mão, mas antes de começar a andar, diz — ah, e bem-vindo ao time.

Então, sou arrastada até a porta do refeitório sem mais nenhuma palavra.

Quando passamos pela mesa em que estávamos sentados antes, Kenny não está mais lá.

Andamos para fora do prédio, Ryou ainda segurando minha mão, e fazemos nosso caminho para fora do campus, tentando ignorar os alunos que se aproximam para parabenizar Ryou pelo ótimo jogo, ou qualquer coisa desse tipo. Ele sorri, e agradece a todos, mas seus olhos estão inquietos, como se ele não soubesse exatamente para onde olhar. Finalmente, conseguimos sair do meio da multidão de alunos.

E encontramos Tresh assim que colocamos um pé no estacionamento.

Ele está encostado no nosso carro, remexendo alguma coisa nas mãos. Os músculos de seus braços estão tensos, e seus dedos se movem tão rápido não consigo distinguir o que está na mão dele sem focar o olhar.

Kenny está parado ao seu lado, a mão apoiada na maçaneta da porta. Olhando bem para ela, consigo perceber que seus dedos estão tremendo.

— Ei — digo, quando Ryou e eu chegamos perto deles.

Tresh se vira para mim, sem parar de remexer o objeto em suas mãos. Penso em parar um pouco e olhar o que é, mas seus olhos me prendem primeiro.

É extremamente incomum ver Tresh com raiva. Na verdade, é extremamente incomum ver qualquer um dos meus irmãos com raiva. Mas é somente isso que consigo enxergar nos olhos dele. Geralmente, os olhos de Tresh são quase idênticos aos meus. Um pouco escuros, um pouco claros, com um brilho que passa a sensação de eletricidade, e capazes de calar a boca de qualquer um só com um olhar. A diferença é que, na maioria das vezes, os olhos dele estão mais alegres que os meus, como se ele estivesse sempre de bom humor.

Bem, eles não estão assim agora.

Seu olhar me atinge como uma lâmina de gelo, e sinto um calafrio subir pela minha coluna. Suas sobrancelhas estão franzidas com força, e ele não se importou em tirar o cabelo de cima da testa como costuma fazer.

— Tresh...? — chamo, erguendo lentamente as mãos.

— Mei — Kenny chama, suavemente — lembra ontem a tarde, quando eu disse que tínhamos um problema?

— Hm? — pisco, confusa — Sim, por quê?

— Bem, temos dois problemas.

As mãos de Tresh param de remexer o objeto, e consigo distinguir o que é.

Uma faca.

A lâmina é reta, lisa bem afiada, e tem um brilho azulado contra a luz do sol. A guarda é vermelha como sangue, e não há buracos para encaixar os dedos.

— Isso é uma faca do Exército Escarlate Real — digo, correndo a ponta dos meus dedos ao longo da parte cega da lâmina — por que... —

— Estava no meu armário quando fui procurar uma roupa para me trocar — Tresh explica, girando-a no ar — sabe o que isso significa?

— Que o exército está por aqui? — Ryou pergunta, engolindo em seco.

— Não — respondo, ao mesmo tempo em que Tresh a gira no ar novamente. A agarro antes que caia na mão dele.

— Olha para isso — aponto para a guarda. Onde antes deveria estar o brasão do Exército, se encontra um espaço vazio, como se alguém o tivesse simplesmente arrancado dali.

As sobrancelhas de Ryou se erguem, como se ele estivesse começando a entender.

— O exército já está atrás de nós a um tempo — digo — mas essa faca com certeza não pertence à um soldado.

Digo isso porque já convivi muito tempo com soldados do Paraíso, e sei que eles são orgulhosos demais para fazer algo assim com um símbolo do Exército deles. Mas também sei o quão difícil é conseguir uma faca dessas. Se você não for do Exército, o jeito é matar o soldado e roubá-la depois. Muitos ladrões do Paraíso vivem à custa disso, já que elas valem muito mesmo.

— É comum para os ladrões arrancarem o símbolo — continuo — afinal, ninguém compraria se soubessem que é uma faca roubada.

— Então está dizendo que quem está atrás de nós é um ladrão? — Ryou pergunta, tentando reprimir um sorriso.

— Não necessariamente — repondo, girando-a no ar — já ouvi histórias sobre ex-soldados que fugiram com suas armas quando foram exilados ou expulsos. A maioria delas diz que eles queimaram o uniforme e mudaram de nome depois.

— E...? — Kenny gesticula com as mãos, me incentivando a continuar.

— Bem, se eu fosse eles, com certeza arrancaria o símbolo — dou de ombros — não podemos descartar essa possibilidade também.

— E por que um ex-soldado estaria nos caçando? — Tresh pergunta, e sua voz soa menos áspera dessa vez.

— Pelo mesmo motivo que todo mundo está — rio, erguendo uma sobrancelha para ele — imagina só: em um dia você é um Antimortal qualquer e no outro é o herói que trouxe os Aprendizes de volta. Tentador, não?

Kenny dá de ombros.

— Para mim parece idiotice.

— Idem — Ryou diz, cobrindo a boca com a mão para abafar um bocejo.

— De qualquer jeito — digo — não adianta ficar quebrando a cabeça com isso. Vamos apenas ignorar e ver se o dono aparece.

— E se ele aparecer? — Kenny pergunta, arqueando uma sobrancelha.

— Aí nos o matamos — dou de ombros, enfiando as mãos nos bolsos da jaqueta.

Olho para Tresh pelo canto do olho, e vejo que ele parece menos estressado. Apesar de ter uma pose calma e ser muito inteligente, Tresh tende a ficar nervoso em situações assim, por isso, preciso ter certeza que ele está bem, antes de pôr o assunto de lado.

— Acho que podemos ir para casa então — ele diz, seu olhar bem mais suave — ainda precisamos dar um jeito naquele Ogro.

Ah, quanto a isso... Tresh está se referindo ao fato de que nós simplesmente enfiamos o corpo do Ogro no porão e viemos para escola. Eu realmente não me importaria em faltar às aulas hoje, mas Kenny fez tanta questão que nem os protestos de Ryou nem os meus surtiram efeitos.

E, até que encontremos uma bruxa disposta a abrir um Portal sem fazer muitas perguntas, acho que o Ogro vai ficar por lá mesmo.

Quem quer brigadeiro? Kenny pergunta.

Ryou e eu imediatamente levantamos do sofá.

— Calma — ela diz, erguendo a panela acima da própria cabeça — vamos dividir igualm... —

E, em um piscar de olhos, a panela não está mais em suas mãos.

— Os mais velhos primeiro — Tresh provoca, parado no topo da escada. Então, enfia uma mão dentro da panela e a leva até a boca, devorando tudo de uma vez.

— Tresh! — nós três gritamos ao mesmo tempo.

E, antes de Kenny e Ryou tenham tempo para pensar, eu já estou a um degrau dele.

— O q... — tomo a panela de suas mãos, passando por debaixo do braço dele, e começo a correr em direção ao quarto — volta aqui!

Mas eu já fechei a porta atrás de mim.

Coloco a panela sobre a cama, e giro sobre os calcanhares, espalmando as mãos na porta no exato segundo em que sinto os punhos dele baterem contra ela.

— Mei! — Kenny grita do outro lado da porta — isso é trapaça!

— Não é não — rio, ao mesmo tempo em que vejo uma das dobradiças prestes a se desprender — chama-se estratégia, maninha.

Mas abro a porta, porque sei que eles três amam chocolate tanto quanto eu. Ryou se abaixa imediatamente, e não tenho sequer tempo de piscar, antes de ser erguida pela cintura, e jogada por cima de seu ombro, como um saco de batatas.

— Ei! — protesto, socando a costa de com força.

Kenny tira a panela de cima da cama um segundo antes de eu ser jogada nela. Caio com as costas contra o edredom, e me preparo para começar a xingá-los, quando o celular de Tresh toca no bolso dele.

Trocamos um olhar confuso entre nós. Tresh não dá o número dele para muitas pessoas, por isso é extremamente incomum o celular dele — assim como o meu — tocar.

Ele apenas dá de ombros.

— Alô?

Eu, Ryou e Kenny nos inclinamos para ouvir quem está do outro lado da linha.

— Ei, Tresh!

Sinto minha boca se abrir. E então, meus lábios se curvam em um sorriso tão grande que não sei como ele cabe no meu rosto.

— Matt! — nós quatro gritamos ao mesmo tempo, e percebo que os sorrisos de Tresh, Kenny e Ryou não são menores que o meu.

E aí — ele diz, e consigo ouvir o tom de riso em sua voz.

— Matt — Kenny chama — quanto tempo!

Pois é, pois é — Matt responde, parecendo envergonhado — foi mal não ter ligado antes, é que as coisas estão um pouco... bagunçadas por aqui.

— Bagunçadas? — Ryou franze as sobrancelhas — Como assim?

Uma das princesas gêmeas de Palácio de Gelo desapareceu — ele suspira — ninguém faz idéia de onde ela está, nem mesmo as irmãs dela. E o Tribunal Escarlate se recusa a mandar uma tropa de busca.

— O quê? — Kenny pergunta, parecendo inconformada — por quê?

Sabe como é a velha história sobre Feiticeiras sem uma escória e blá, blá, blá — Matt suspira, parecendo cansado — sem uma tropa de busca Real, elas estão meio que sem opção. Se a Segunda e a Terceira Ordem não se odiassem tanto, eu não me importaria em ajudá-las, mas se eu me meter nisso, acho que vão cortar minha cabeça fora.

— Então quer dizer que o Tribunal vai deixar por isso mesmo? — Tresh pergunta, indignado — Isso é injusto!

Tente dizer isso pra eles. Eu acabei de voltar de lá, e recebi uma advertência dizendo que se eu continuar insistindo, vão me enfiar no calabouço do Palácio de Gelo.

Sinto um calafrio percorrer minha coluna vertebral. O próprio nome do Palácio descreve bem ele. E posso garantir por experiência própria que as celas de lá são bem mais frias que os corredores.

— Então... Ninguém vai fazer nada? — pergunto, mordendo a parte de dentro da bochecha.

Bem... — ouço Matt limpar a garganta — não é como se pudéssemos fazer algo. Desafiar uma lei do Tribunal Escarlate significa execução pública, vocês sabem.

— Mas, mesmo assim... — Kenny murmura.

Ninguém no Paraíso está se importando muito com isso. É como se eles não percebessem que, sem uma das três gêmeas a Ordem vai ser quebrada.

— Espere um pouco, você disse que eles te deram uma advertência? — Ryou pergunta um pouco atrasado.

Aham.

— Eles te deram uma advertência? — repito, incrédula — mas você é um dos Aprendizes!

Matt ri.

Ah, mas eu meio que fui disfarçado — diz — quer dizer, se eu aparecesse por lá, eles provavelmente me forçariam a chamar de vocês de volta.

Às vezes, acho que Matt se sente solitário, sendo o único que ficou no Paraíso. Mas foi ele quem escolheu ficar, e não é como se pudéssemos simplesmente arrastá-lo com a gente.

— Então, quer dizer que, a menos que a princesa apareça por si mesma, ninguém vai buscá-la? — pergunto, correndo minhas unhas sob o lençol da cama.

Basicamente — Matt responde, parecendo igualmente inconformado — mas eu não liguei para falar sobre isso —continua com a voz mais leve dessa vez — estou pensando em dar uma passadinha por aí, o que acham?

— Tá falando sério? — Ryou pergunta animado, pulando para fora da cama e tomando o celular das mãos de Tresh.

Aham.

— Vou arrumar o quarto reserva! — Kenny diz, quase gritando de felicidade — Ou você prefere dormir com o Tresh e o Ryou?

Eu me sentiria um hospede no quarto reserva — Matt ri.

— Então vamos pôr um colchão no chão pra você — Tresh responde, rindo também — se você não se importar.

Pra quem divide um dormitório com três Assassinos novatos que roncam mais alto do que um trator — ele começa — um colchão no chão parece ótimo.

Então, começamos a conversar sobre coisas tão aleatórias, que em certo momento, esqueço sobre o que estamos falando, e deixo Matt conversar com Kenny, Tresh e Ryou, e deito de costas na cama, sentindo o cheiro de baunilha que exala dos edredons.

Meu olhar voa para a faca que Tresh encontrou hoje de manhã, cuidadosamente colocada sobre o criado mudo, e franzo as sobrancelhas. Algo nela me parece familiar, mas não sei dizer o quê ao certo.

E então, imagens começam a surgir em minha mente como se alguém tivesse apertado o play de repente. Mas a maioria delas são apenas vultos ou sombras, se mexendo de um jeito aleatório, e gritos de dor que parecem ecoar em meus ouvidos.

Tapa as orelhas com as mãos, e percebo que, em algum momento do qual não consigo me lembrar, fechei os olhos com força.

Assim que os abro, volto a encarar a lâmina.

E, de repente, ela se mexe. Apenas alguns centímetros, mas se mexe. Em direção a beirada do criado-mudo, como se estivesse tentado pular para o chão.

Ou talvez, pular em mim.

Um calafrio sobe pela minha espinha.

Ei Ultima Aprendiz” uma voz chama. Não levo muito tempo para perceber que apenas eu estou a estou escutando.

Engulo em seco.

Sim?” penso.

Não quer bater um papo?” pergunta, e quase consigo sentir o sarcasmo na voz “sabe, como bons e velhos inimigos?”.

Atualmente, eu não tenho o costume de bater papos com vozes misteriosas que invadem minha mente no meio da noite” ergo uma sobrancelha.

A voz ri.

Mesmo que essa voz misteriosa pertença a alguém que você adoraria matar?” pergunta “Ou melhor, alguém que vocêdeveria ter matado?

Eu estou no prédio abandonado à três quadras da sua escola, Aprendiz. Se ainda quiser minha cabeça, me encontre aqui em três minutos.

Só existe um ser vivo que eu deveria ter matado, mas não o fiz. Eu imaginei que vinte anos em uma cela do Palácio de Gelo seriam suficientes para terminar o trabalho.

Eu só não imaginei que ele poderia fugir. Alguns bons dezoito anos antes do fim da sentença.

Bem, imprevistos acontecem.

“Eu chego em um minuto” respondo.

Lembro das palavras de Kenny — “Você precisa aprender a aceitar o seu passado, mas não deixar que ele lhe diga o que fazer agora” — mas não consigo impedir a mim mesma de levantar da cama, deixar o quarto com a desculpa de ir buscar alguma coisa para comer, e correr porta afora, em direção ao prédio abandonado.

Porque há certas partes do passado, que precisam ser mortas e enterradas antes que possamos seguir em frente.

E, um ex-soldado que mais parece uma pedra no meu sapato, está incluído nessa lista.

___

Eu não faço mais parte da Terceira Ordem. Não sou mais uma Assassina, e também não tenho mais o dever de caçar os criminosos do Paraíso. Mas esta não é uma questão de dever. É uma questão de querer.


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Notas finais do capítulo

Eu sei que o título do capítulo ficou longo mas... eu não consegui pensar em mais nada XD