Impulsive. escrita por Juh


Capítulo 2
Ter irmãos é a coisa mais maneira do mundo.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/509518/chapter/2


— Capitulo II —

— Ter irmãos é a coisa mais maneira do mundo —

Sou acordada com o barulho de algo se quebrando no térreo.

Pulo para fora da cama, sem me importar com o fato de que estou vestida apenas com uma camisa do Tresh e uma calça de moletom, e chuto a porta do quarto que divido com Kenny. Não me preocupo em descer as escadas, apenas deslizo sobre o corrimão e caio com os joelhos dobrados no piso escorregadio.

Levo um segundo para interpretar a cena à minha frente.

— Mei! — Kenny repreende — Eu te disse para ficar lá em cima! Você precisa descansar, sua idiota.

Levanto uma sobrancelha para ela, mas logo volto a fitar a figura parada na porta.

Bem, parada onde costumava ser a porta. Procuro os restos dela em algum lugar, mas tudo o que consigo achar são lascas soltas de madeira espalhadas pelo chão da sala. Tiro o cabelo de cima dos olhos, e levanto a cabeça para encarar o que julgo ser quem fez isso.

Ou melhor, o que fez isso.

— Mas que mer...— não consigo terminar a frase, pois seja lá o que for isso se inclina na minha direção e bufa duas vezes na frente no meu nariz.

Alguém aqui está precisando escovar o dentes.

Fecho os olhos enquanto a lufada de ar — ou bafo, sei lá — joga meus cabelos para todas as direções, e tento não me concentrar no cheiro.

Pulo para trás quando percebo que ele está movendo o braço para me acertar. Mas infelizmente, sou agarrada no ar, e minhas costelas começam a ser esmagadas por uma mão extremamente sólida. Tento me soltar deslizando para fora, mas seu aperto é forte demais.

Bem, pelo menos eu tentei.

Como não tenho outra escolha à não ser machucá-lo, dou de ombros e subo meus joelhos em direção à mão dele, acertando sua carne com força. A mão que me segura vacila, mas não é suficiente para me soltar, então acerto meu cotovelo no osso do dedo mindinho dele. Algo entre um gemido e um grito de dor escapa de sua boca, mas eu não consigo distinguir. Por fim, consigo encaixar minha perna junto ao meu corpo e levo meu joelho direito até meu peito.

Ponto.

Estico minha perna com força e pressiono a sola do meu pé descalço contra a palma da mão dele, e enfim consigo me soltar. Estou prestes a cair de costas no chão, quando giro meu corpo no ar e apoio minhas mãos no piso, usando-as de apoio para me jogar no ar novamente e cair, dessa vez em pé.

Agora que estou à certa distância, consigo observá-lo melhor.

Eca.

Ele deve ter pelo menos uns três metros, disso eu tenho certeza, mas todas as partes do corpo dele são totalmente desproporcionais umas às outras. As mãos, por exemplo, são pelo menos duas vezes maiores do que o rosto, que, por sua vez, é formado quase totalmente pelo nariz, sendo quase impossível achar seus olhos. Consigo reconhecer um porque há uma enorme bolha na pálpebra, tornando-o ainda mais grotesco.

Bem, agora eu sei que merda é essa.

— Ok, algum de vocês poderia me explicar por que diabos tem um ogro na nossa sala-de-estar? — eu questiono, girando sobre os calcanhares para encarar meus irmãos.

Kenny sorri sem jeito:

— Nós adoraríamos saber — ela responde, colocando uma mexa do cabelo atrás da orelha.

Ryou apoia os cotovelos no sofá, um resto de molho de nachos ainda grudado no canto da boca, e diz:

— Ele simplesmente entrou quebrando tudo — então gesticula para os restos do que uma vez foi nossa porta — eu quase morri engasgado, sabia? — não tenho certeza se ele está dizendo isso para mim ou para o ogro.

Se foi para o ogro, ele não parece se importar, pois tudo o que faz é grunhir algo que para mim não faz o menor sentido.

— Tá... E o que nós fazemos? — pergunto — Quero dizer, antes que ele destrua a casa toda?

— Boa pergunta — Tresh responde — O que mais me intriga é como ele chegou aqui — continua, mexendo na manga do moletom.

Eu pisco.

— Pela porta?

Tresh me lança um olhar entre eu vou te bater e você não tem jeito, mas eu interpreto como um não me faça rir, estou tentando parecer legal.

Antes que eu possa dizer mais alguma coisa, o ogro se vira para mim novamente e sua boca se abre, revelando uma série de dentes tortos e — ou — podres.

Sinceramente, escovas de dentes não são tão caras assim, são?

Última... Apren... — ele grunhe.

— Última o que, filho?

Última... Apren... Apren.... — ele tenta de novo. Eu gesticulo com as mãos, incentivando-o a continuar — Aprendiz.

— Ah — bato com a palma da mão na testa, e deslizo-a pelo resto da minha cara — isso.

Kenny tenta sufocar um riso, cobrindo a boca com a mão, mas Ryou joga a cabeça para trás, e cai no chão, apertando a barriga de tanto rir.

— Olha cara — eu tento — eu sei que você ter ouvido boatos sobre isso e tudo o mais... — Tresh engasga com a própria risada — mas assim, você não vai conseguir nada aqui, ok? Eu não sei quanto está a recompensa atual, mas não importa quantos zeros tenha nisso, é impossível, entendeu?

Ele grunhe de novo, coçando a a nuca.

— Eu estou dizendo que é melhor você ir pra casa — digo — deve ter alguma Feiticeira ou Bruxa por aqui, eu posso dar um jeito de abrir um Portal pra você.

Ele pisca. Isso vai ser mais difícil do que eu imaginei.

— Eu não quero te matar, entende? — continuo, mas ouço Kenny tossir dramaticamente atrás de mim — quer dizer, talvez eu queira um pouquinho, mas eu estou tetando não fazer isso. Então, eu agradeceria se nós pudéssemos fechar um acor...—

GAHR! — ele grita, e então começa a balançar as mãos monstruosamente deformadas em todas as direções.

Aparentemente, não temos um acordo.

Estalo o pescoço rapidamente, e inclino a perna direita, apoiando uma mão no joelho. Inspiro uma vez, guardando bastante ar no pulmão, e então pulo. Meu pé acerta o peito disforme dele, e eu pulo mais uma vez, usando-o de apoio, e chutando seu corpo com os dois pés. Consigo ouvir o som de sua caixa torácica quebrando e giro o corpo do no ar, caindo com os dois joelhos dobrados, e uma mão no chão. Derrapo um pouco antes de conseguir ficar estável novamente. Me ponho de pé à tempo de ver o corpo dele perder o equilíbrio e começar a tombar para trás. Mas antes que suas costas atinjam o chão, eu deslizo um pé para frente e giro ao redor do corpo dele. Suas costas estão à dois segundos de atingir meu crânio e muito possivelmente quebrá-lo, quando levanto uma das pernas e atinjo sua coluna vertebral com a sola do pé.

Ele começa a cair para o lado oposto, então pulo novamente, usando as costas dele de apoio e faço uma volta completa no ar, ficando de frente para sua nuca.

Estico meus braços o máximo que posso e agarro suas orelhas com as mãos.

Quando tenho certeza que estou segurando-as firme o suficiente, giro novamente, usando meus braços como alavancas, e jogo o peso do meu corpo em direção ao chão.

Ponto.

Salto para frente assim que a cara dele atinge o chão. Seu rosto espirra sangue em todas as direções e os braços dele param de se mexer, sendo seguidos pelas pernas, e por fim todo o corpo fica imóvel.

— Eu disse que não queria te matar... — suspiro.

— Mentir é feio — Kenny cantarola, sorrindo — vamos logo nanica, temos que achar uma Bruxa antes que esse cheiro infeste a casa toda.

___

Como eu disse antes, estou sendo procurada por todas as criaturas do Paraíso. E isso inclui desde os Anjos do Exército Real aos seres mais fedorentos da Floresta.

Não há necessariamente um motivo para isso. Falando em termos políticos, eu não infringi nenhuma lei do Paraíso nem nada do gênero. A questão é que os velhos do Tribunal não conseguem lidar com o fato de que uma das maiores figuras públicas decidiu por si mesma abandonar o lugar para morar em um planeta mortal. E, para falar a verdade, eu nunca fui necessariamente uma figura pública louvável, então nem sei porque eles fazem tanta questão de me ter volta.

De acordo com as Leges Aurum nenhum Antimortal pode deixar o Paraíso permanentemente. É contra o funcionamento natural do universo. Mas nenhuma das leis do Tribunal — nem mesmo as Leges Aurum, aquelas que tecnicamente estão no sangue de todo habitante do Paraíso — se aplicam aos Aprendizes.

Mas isso não significa que eles vão parar de me caçar.

— Eu não consigo acreditar que não há nenhuma Bruxa na vizinhança! — Kenny exclama, desabando no sofá.

— Bem, não é como se todas as velhinhas exóticas do mundo fossem Bruxas —Tresh ri, sentando ao lado dela.

— Mas elas com certeza parecem — por sua vez, Ryou se acomoda no chão.

Kenny conseguiu desinfetar a sala-de-estar, que está cheirando como lavanda novamente, mas ainda há algumas marcas de sangue no piso, porque ela ficou com muita preguiça de tirar.

— Você não poderia tentar abrir um Portal por si mesma? — pergunto.

— Mei — ela rola os olhos — há uma enorme diferença entre Magas e Bruxas. Ou Feiticeiras. Magas não podem conjurar feitiços que...—

— Mexam com a Ordem Natural. É, é, tô ligada — corto-a — mas só porque você não quer.

— Porque é contra as regras — ela corrige.

— Quem liga? — dou de ombros.

Kenny apenas suspira, exasperada.

— Temos escola daqui a uma hora e olhe o nosso estado — ela lamenta, olhando para as próprias roupas.

Procurar uma Bruxa às quatro horas da manhã de uma quarta-feira não é a coisa mais relaxante do mundo, eu posso garantir.

— Não podemos faltar? Só hoje? — tento.

— Não — Kenny e Tresh respondem ao mesmo tempo.

Dou de ombros, bocejando.

— Se esse é o caso, eu vou dormir um pouco. Quando o último sair do banheiro me avisem — digo, começando a subir as escadas.

— Ok — eles respondem juntos.

___

Meu sonho começa em preto e branco.

Ou talvez seja só porque minhas luvas são pretas, e minha pele é extremamente branca. Termino de calçá-las, apertando o fecho o mais forte que consigo. Depois passo para as botas. Amarro nó após nó até sentir que apenas um marinheiro conseguiria desamarrá-las. Desinclino-me, suspirando, e sentindo a dor que passeia pelas minhas costas. A lona preta da barraca não me deixa ver nada lá fora, mas sei que não estou perdendo muita coisa. É apenas um show.

Teste de iniciação. É como chamam.

Todos aqueles que pretendem entrar em alguma Ordem precisam passar por isso.

Cada uma possui um teste diferente, mas nunca é fácil. No caso da Segunda Ordem — Assassinos que trabalham em nome do Reino — tudo o que você tem que fazer é acertar a garganta de trinta bonecos, dispostos aleatoriamente num percurso de cinquenta metros. E quando eu digo aleatoriamente, quero dizer aleatoriamente mesmo. O detalhe principal, é que você precisa acertar todos eles enquanto é assistido por uma plateia de mais de quinhentos Antimortais, incluindo os líderes da Ordem. Ah, e claro: fazer isso sem ser visto.

— Mei? — alguém chama às minhas costas.

Olho por cima do ombro.

— M...—

— Mei!

Abro os olhos rapidamente. Kenny está parada na minha frente, apenas uma toalha cobrindo seu corpo.

— Sua vez de usar o banheiro — ela diz, me entregando uma toalha limpa.

—... Obrigada — murmuro.

Kenny franze as sobrancelhas. Assim que começo a me levantar, ela põe a mão em um dos meus ombros.

— O que houve?

Penso em mentir e dizer que não há nada. Mas sei que Kenny nunca vai acreditar.

— Foi apenas um sonho — digo.

— Que sonho?

Desvio o olhar.

— O teste.

Ela parece pensar por um momento.

— O teste de iniciação? — pergunta.

— Sim — coço a nuca.

— Você ainda pensa nisso? Mei, você deixou isso para trás, ok? Não é mais um deles.

— Me sinto como se fosse — solto — eu não faço parte da Terceira Ordem, mas ela inda faz parte de mim.

Claro que faz — Kenny sorri suavemente, se sentando ao meu lado na cama — Mei, nós não simplesmente apagamos o passado. Pra falar a verdade, o que seria de nós sem nossa própria história? Você precisa aprender a aceitar o seu passado, mas não deixar que ele lhe diga o que fazer agora — ela segura minha mão entre as dela.

— É difícil — eu digo.

— Quando foi que algo foi fácil para você? — ela ri — Aliás, para qualquer uma de nós?

Acabo rindo também, porque ela tem razão. Porque Kenny sempre tem razão.

— Agora vai tomar banho porque você tá fedendo — ela diz, me empurrando de leve.

Saio da cama, andando descalça pelo chão frio do quarto, mas paro na porta.

— Kenny? — chamo.

— O que? — ela responde, desviando atenção da gaveta que está remexendo.

— Valeu.

Kenny sorri.

— De nada, fedorenta.

___

Com licença, professor?

Prof. Gilbert se vira para mim, interrompendo sua leitura — que provavelmente está fazendo a sala toda se controlar para não dormir — e sua testa se contrai em uma série de rugas.

— Atrasada novamente, srta. Charnell? — ele pergunta, azedo.

— Me desculpe senhor — os olhos do prof. Gilbert se arregalam ao ouvir a voz de Kenny, então abro um pouco mais a porta para que ela entre no campo de visão dele — tivemos um pequeno problema com a porta de casa mais cedo, e acabamos ficando presos. A culpa foi totalmente minha, eu deveria ter chamado alguém semana passada para dar uma olhada na fechadura, mas acabei me atrapalhando. Enfim, espero que o senhor possa perdoar eles só essa vez, prometo que não irá mais acontecer.

Enquanto Kenny fala, encaro a turma com o canto dos olhos.

Hilário. Absolutamente todas as cabeças estão viradas para elas. Preciso me controlar para não mandá-los pararem de babar.

O prof. Gilbert gagueja um pouco antes de conseguir dizer.

— Bem, certamente não há problema se for apenas essa vez — ele limpa a garganta, e seus olhos voam para os peitos de Kenny, mesmo que a blusa dela esteja abotoada até o colarinho — mas que não se repita, certo?

Kenny força um sorriso.

— Sim senhor. Obrigada pela compreensão, sr. Gilbert — ninguém chama o prof. Gilbert de senhor. O último aluno que fez isso levou dois capítulos de exercício extra para casa.

— Desculpe a intromissão, srta. Charnell — ele diz — mas a srta. também não está atrasada para sua aula?

— Ah, eu passei na minha classe primeiro e perguntei da prof. Emily se eu não poderia acompanhar a Mei e o Ryou, porque eles provavelmente seriam mantidos fora de classe.

Prof. Gilbert limpa a garganta de novo.

— Certo, então vocês dois já podem entrar — ele diz — e obrigada pela visita, srta. Charnell.

— O prazer é todo meu — Kenny responde, então, se vira para a gente — vejo vocês no almoço.

Ela beija minha bochecha e bagunça o cabelo de Ryou, antes de girar sobre os calcanhares e começar a andar de volta para a ala do Ensino Médio. Inevitavelmente, constato que os olhares dos garotos estão presos na bunda dela.

Mas todos eles voltam à se concentrar em seus livros quando Ryou lhes lança seu pior olhar de irmão ciumento.

— Vocês dois têm muita sorte em ter uma irmã como a srta. Charnell — prof. Gilbert diz, e seu olhar parecer querer dizer que não somos bons o suficiente para ela — seria bom se seguissem seu exemplo.

— Sim senhor — dizemos em uníssono, abrindo nossos livros.

Mas, quando ele começa a ler novamente, tombo a cabeça na parede e durmo.

___

— Aquele ruivo é um gato!

— Eu sei! Mas você já olhou pro irmão dele?

— Ainda não, qual deles é?

— Aquele ali de camisa azul.

— De cabelo onduladinho?

— Esse mesmo! Ele é tão fofo!

— O que eu não daria para apertar essas bochechas! Mas eles são mesmo irmãos?

— A-ham. Charnells, já ouviu falar?

— Você tá brincando! Aqueles ali são os Charnells? Eu escuto esse nome em todo lugar da escola!

— Eles são bem famosos por aq...—

Reprimo um grunhido que está preso na minha garganta, e tento me afastar das duas meninas sentadas do meu lado. Mas infelizmente, a arquibancada está lotada e não há mais lugares vazios.

— Está vendo aquela garota na primeira fileira? De cabelo preto?

— Qual?

— Uma que só falta cuspir os pulmões? De camisa social?

— Ah, sim, encontrei. O que tem ela?

— É irmã deles também — ela ri, como se fosse uma piada extremamente engraçada.

— A mãe deles é uma modelo ou o quê? — a outra responde, arregalando os olhos para Kenny.

— Na verdade eu ouvi dizer que eles não têm pais... — há algo na voz dela, como se fôssemos um bando de órfãos famintos.

— Sério? Coitados...

— Ei — eu interrompo — pena é um sentimento muito feio, sabia?

A mais perto de mim se vira dramaticamente, parecendo pronta para me responder à altura, quando seus olhos encontram os meus.

— Oh...

— A mãe de vocês não ensinou que fofocar é feio? — sorrio, apoiando o rosto em uma mão — Eu vou tirar uma estrelinha do nome de vocês.

— Quem é você? — a outra pergunta, franzindo o nariz.

Como não a reconheço, nem muito menos lembro de ter ouvido alguém falando sobre ela, assumo que é uma novata. Seu cabelo é preto-azulado, e seus olhos são castanhos-escuros-quase-pretos. Ela até seria bonita se não estivesse com uma careta dessas estampada no rosto.

— Ah, você é nova aqui, certo? — digo, ao que ela concorda com a cabeça — eu sou Mei Charnell, prazer em conhecê-la.

Eu não estendo a mão, nem muito menos sorrio, mas sei que ela conseguiu captar o sarcasmo na minha frase.

— Eu agradeceria muito de você parasse de comentar o quão gatos e gostosos meus irmãos são — continuo — se quiser fazer isso, monte um daqueles fã-clubes idiotas e seja feliz, mas se eu ouvir algo assim novamente, vou fazer questão de...—

Mei. A voz de Kenny repreende na minha mente. Nada de assustar as pessoas.

Rolo os olhos para mim mesma, e dou de ombros:

— Bem, acho que você pegou o recado. Agora se me dão licença...— me levanto e começo a descer os degraus da arquibancada, em direção à porta de saída do ginásio.

Quando chego ao pátio de trás, Kenny está me esperando com as mãos na cintura.

— Mei...

— Ei, elas estavam me enchendo! — protesto — Eu até aguentei alguns minutos.

Ela suspira.

— Certo, mas não é sobre isso que eu quero falar.

Franzo as sobrancelhas.

— Não?

— Não — ela repete.

— Então sobre o que é? — pergunto, me sentando na base de uma das colunas do ginásio.

— Sabe o Roayout? — ela pergunta, se sentando ao meu lado.

— Sim — na verdade, acho meio impossível que alguém não saiba quem é Johnny Roayout, afinal, ele é o badboy pelo qual todas as meninas correm atrás — o que tem ele?

— Você sabe que ele tem uma espécie de... eu não sei como chamar... gang? — concordo com a cabeça — Bem, eu estava passando pelo refeitório com o Ryou algumas semanas atrás. E de repente ele começou a ficar nervoso e farejar o ar de uma hora pra outra. Eu tive que afastá-lo para fora de lá.

Pisco.

— E você acha que ele farejou algo importante? — pergunto.

— Tenho quase certeza — ela diz — o comportamento do Ryou me deixou um pouco desconfiada, então, na aula de química da semana passada eu pedi para fazer dupla com o Roayout. Eu tentei ler mente dele para descobrir alguma coisa... — ela amassa a barra da camisa, como se estivesse tentando descontar a raiva — e simplesmente não consegui. Era como se... houvesse algum tipo de bloqueio na mente dele.

— Bloqueio? — repito, tetando assimilar as coisas.

— É — Kenny diz — então eu tentei com os outros e não tive absolutamente nenhum problema.

— Então você está me dizendo que suspeita do Roayout?

— Por aí. Mas... tem mais uma coisa que eu quero dizer.

— O que? — me aproximo mais, e tiro sua mão da barra da camisa.

— Eu quero dizer isso quanto estivermos todos juntos. Não podemos simplesmente excluir o Tresh e o Ryou assim.

— Ok — dou de ombros — o jogo já vai acabar, quer voltar lá para dentro?

Kenny olha para o céu, e o vento joga uma mexa de cabelo encima do olho direito dela.

— Eu estou morrendo de fome, e você?

Concordo, e começamos a andar em direção ao refeitório. Nossos últimos três períodos foram cancelados porque nossa escola está tendo um amistoso com a escola rival, então todos os alunos foram liberados para assistir e dar "apoio moral" ao time — como se já não soubéssemos que, com Ryou e Tresh jogando, derrota não está entre as opções.

Chegamos na cantina assim que o jogo acaba, então nos apressamos em comprar nossos lanches rápido antes que o lugar seja invadido por adolescentes famintos.

Escolhemos uma mesa no fundo do refeitório, onde sabemos que Tresh e Ryou vão nos achar, e comemos nossos hambúrgueres, de vez em quando comentando sobre as suspeitas de Kenny.

Acabo meu double cheddar mas ainda estou com fome, então me levanto para tentar a sorte do aglomerado de alunos que se acotovelam na frente do balcão. Sento em cima da ponta de uma das mesas e espero enquanto a multidão se dissipa. Não tenho tanta pressa assim, e, por cima do ombro, consigo ver que Ryou já chegou na nossa mesa.

Alguém esbarra em mim em seu caminho de volta para sua própria mesa, e seu lanche cai no chão. O cheiro acerta meu rosto, e sinto vontade de juntar o hambúrguer e comer.

— Você gosta de Double Cheddar? — pergunto, antes mesmo de pedir desculpas.

— Hã? — ele está de costas para mim, juntando os restos do chão .

— Quero dizer, foi mal por ter derrubado o seu lanche...—

— Não tem problema — tanto o hambúrguer como o copo amassado de refrigerante estão devidamente postos dentro de um saco plástico, e o chão está tão limpo quanto se é possível limpar sem um pano. Ele ainda está de costas procurando a lixeira mais próxima — eu não estou com tanta fome assim.

O estômago dele ronca.

— Não? — pergunto, arqueando uma sobrancelha.

— Bem, talvez eu esteja — ele gira sobre os calcanhares, e consigo ver seu rosto pela primeira vez.

O que me chama mais atenção, a primeira vista, é o cabelo. Meio liso, meio ondulado, daquele que forma cachos aqui e ali, mas está bagunçado demais para que eu possa procurar onde esses tal cachos estão. Depois os olhos. Verdes. Não como os de Ryou ou Kenny, mas um verde um pouco mais diferente. Não sei que tom de verde é esse, mas é bonito de qualquer jeito. Então meus olhos voam para uma pequena cicatriz branca na bochecha dele, quase imperceptível. E por fim, meus olhos voltam para o cabelo. Um detalhe que deixei escapar: eles são brancos. Brancos como osso.

— Você descoloriu o cabelo?

Ele pisca.

— O que? Não! — e então começa a rir — eles já nasceram assim, acredite. Eu já pensei em pintar, mas... acho que prefiro assim mesmo. Quer dizer, deve dar um trabalho muito grande manter um cabelo sempre pintado e... Isso são mexas no seu cabelo? Dá muito trabalho? É você quem pinta?
Registro suas perguntas uma de cada vez, antes de começar a responder.

— Sim, são mexas. Não, elas não dão muito trabalho, porque não sou eu quem pinto e sim minha irmã.

— Irmã?

— É, ela está sentada ali atrás, eu... Ai caralho, eu esqueci da comida!

— Comida? — ele pisca.

— Sim, eu vim comprar outro hambúrguer mas eu acabei derrubando o seu e... Ah, é verdade, eu derrubei o seu hambúrguer!

— Já disse que não tem problema — ele ri — aliás, ele não estava com uma cara muito boa mesmo — posso ver que ele está mentindo, mas mesmo assim, acabo rindo também — mas acho que vou comprar outro, só para saber se estava ruim mesmo.

Andamos até o balcão, e ele me deixa passar na frente e fazer o pedido primeiro.

Enquanto esperamos nossos hambúrgueres, conversamos sobre coisas totalmente aleatórias, até que eu pergunto:

— Você é novo aqui?

— Ah, sim, eu me transferi terça-feira.

— Então você não conhece ninguém?

— Não necessariamente — ele ri, girando sobre os calcanhares e ficando de costas para o balcão — eu fui aceito no time de basquete, e tem uns caras bem legais lá.

— Time de basquete? — não me lembro de ter o visto jogando, mas antes que eu possa perguntar, ele diz:

— Bem, eu fiquei no banco o jogo todo, mas acho que foi divertido mesmo assim

— e então ri de novo — além do time de basquete, eu tenho o meu irmão. Ele estuda aqui também.

— Sério? — pergunto — Quem é o seu irmão?

Ele abre a boca para responder, mas a garçonete nos interrompe, colocando nossos pedidos em nossas bandejas. Ele segura a dele com apenas uma mão, e então espalma a outra na própria cara.

— O que foi? — pergunto, apanhando minha bandeja também.

— Eu esqueci completamente de me apresentar! — ele diz, como se fosse a pior coisa do mundo.

— Ah — sorrio — bem, eu também não me apresentei, aliás.

Ele sorri, e seus dentes são perfeitamente brancos e seus lábios parecem extremamente cor-de-rosa quando se esticam.

Mas então ele diz:

— Eu sou Seth Roayout, e você?

Quase deixo minha bandeja cair. Olho por cima do ombro para Kenny, mas ela está distraída com a própria comida. Então, olho de volta para Seth:

— Seu irmão... por acaso... seria o Johnny Roayout?

Ele pende a cabeça um pouco para o lado:

— Sim, por que? — sua mão esticada hesita, e há uma clara imagem de confusão em seu rosto.

Engulo em seco, e seguro sua mão. A pele dele é macia e quente, quase aconchegante, mas os nós de seus dedos são firmes.

— Por nada — digo — eu sou Mei Charnell.

Vai ser um longo dia.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

"Leges Aurum" significa "Leis de Ouro" ~~ou algo do gênero.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Impulsive." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.