Impulsive. escrita por Juh


Capítulo 1
Você não pode fugir de quem você é.




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– Capitulo I –

– Você não pode fugir de quem você é –

Não estou cansada, mas mesmo assim, paro de correr.

Giro sobre os calcanhares e minhas botas deslizam no chão bem encerado. Inclino meu corpo para não perder o equilíbrio, e minha mão quase o toca o piso. As vozes dos alunos vão ficando mais altas a cada segundo, até que vejo o primeiro dobrar o corredor em minha direção. E depois outro, e outro, e outro, até que metade das turmas do segundo e primeiro ano estejam aqui.

Evan! Evan!

Um garoto corta caminho entre a multidão. Ele é alto, mas seus ombros são estreitos e seus braços parecem musculosos demais. O cabelo loiro é liso é está bagunçado tão artificialmente que parece que ele o desarrumou usando um pente.

– Aposto que ele não aguenta três minutos – um garoto do primeiro ano cochicha para alguém que não consigo ver.

Três minutos? Eu aposto três segundos – uma voz responde, acompanhada de uma risada debochada.

Minhas sobrancelhas se erguem. Mas não posso impedir que um pequeno sorriso se forme em meus lábios.

– Vocês são dois idiotas – Blake, um dos alunos do segundo ano grunhe para os dois calouros – a Charnell pode até ser fortinha, mas o Evan é foda.

– E ele pode até ser foda – Chris, a latina da minha sala retruca – mas a ela é mais.

–Podem continuar sonhando – Blake rosna – mas eu aposto que ele acaba com ela em menos de dois minutos.

– E nós apostamos que ela acaba com ele em um – Chris ergue uma sobrancelha, colocando as mãos na cintura.

– Apostado – ele sorri – preparem-se para ver a sua querida Charnell sendo espancada – e então se vira de volta para mim.

Pisco. O quê?

– Ei, Charnell – o garoto, que aparentemente se chama Evan, chama.

– Oi? – respondo.

– Pronta para apanhar? – ele estala os dedos das mãos, fechando-as em punhos.

– Pronta para quebrar tua cara – digo, sem pensar – não, espera. Por quê?

Mas ele não responde, apenas desliza um dos pés para frente – o suficiente para se aproximar de mim – e acerta um soco no meu queixo.

A multidão explode em gritos. Minha cabeça voa para trás, e sei que minha boca está sangrando.

Ótimo.

Jogo o peso do corpo para frente, e acerto minha testa na dele. Sinto suas têmporas pulsarem, e ele cai para trás, cobrindo cabeça.

Posso ouvir Chris trocando um high-five com um dos calouros que apostou em mim.

Teoricamente, eu deveria esperá-lo se levantar, para que pudéssemos ter uma luta justa. Em minha mente, posso vê-lo se levantando e tentando me acertar. Posso me ver segurando seu pulso e quebrando-o, posso vê-lo recuar de dor, e posso me ver acertando um ultimo chute no meio do nariz dele. Mas, como eu disse isso é apenas teoricamente.

E, como sou mais fã da prática do que da teoria, desço meu pé no estomago dele. Ele cospe um pouco de sangue. Depois, miro em sua coxa, e ele rola pelo chão, gemendo de dor.

Agarro a gola da camisa dele, e o ergo de pé novamente.

– Sua vaca... – ele murmura.

– Antes vaca do que um covarde que nem você – sorrio, erguendo uma sobrancelha, e então agarro a parte detrás do cabelo dele e desço sua cabeça...

Em cheio no meu joelho.

As pernas dele tremem uma vez. Depois seus braços caiem moles ao lado do corpo, e, por fim, seus joelhos cedem, e a cara dele escorrega do meu jeans e cai direito no chão.

Silêncio.

Um, dois, três segundos.

– Charnell! Charnell! Charnell! – a multidão exclama, então suas vozes estouram em gritos, socos no ar e barulhos de mãos batendo em mãos.

Limpo o sangue do canto da boca com as juntas dos dedos, e olho ao redor. Como cheguei a isto? É a pergunta que ronda meus pensamentos, mas não tenho tempo de tentar responde-la. Eu espanquei um aluno, então provavelmente estou ferrada. Me abaixo para amarrar o cadarço solto da minha bota esquerda e ouço o som de passos pesados vindo por trás de mim. No meio da multidão alguém grita “Cuidado!” um segundo antes de sentir algo se chocando contra a minha nuca.

Eu deveria cair agora. Deveria mesmo. Eu poderia fingir um desmaio e ser levada para a enfermaria sem mais problemas. Assim, mais tarde, eu não teria problemas com a diretora. Não levaria outra suspensão nem seria obrigada a ficar depois da aula.

Seria tão fácil.

Mas, infelizmente, eu não gosto de coisas fácies.

Minha testa bate com força no chão, e meus cotovelos deslizam pelo piso, fazendo com que minha posição fique bastante desfavorável. Estou de costas para quem me acertou, e corro o risco de ser acertada novamente. Então, fecho minhas mãos em punhos e me apoio sobre os antebraços, olhando para trás por cima do ombro. A primeira coisa que vejo é um grande círculo vermelho, e, por um segundo, acho que estou delirando. Pisco duas vezes, até perceber que na verdade, o circulo faz parte de algo maior. Levo alguns segundos para entender o que me acertou.

Sinto meus lábios se curvarem em um sorriso. Não preciso de muita força para jogar meu corpo para cima novamente e ficar de pé. Nem precisarem dobrar os joelhos. Mas, ao invés disso, eu espalmo as duas mãos no chão e apoio todo o peso do corpo sobre os braços, erguendo os pés no ar. Minhas botas acertam o cilindro vermelho com força e o prendem firmemente. Estico totalmente os braços e giro o corpo todo, mantendo minhas mãos no chão, e arranco o objeto das mãos de quem me acertou. Tenho o vislumbre de seu rosto se contorcendo em surpresa um segundo antes de esticar as pernas e acertar o mesmo com força.

Meus pés ainda estão no ar, e minhas mãos ainda estão no chão. Estou a um segundo de perder o equilíbrio e cair, quando a realidade parece parar e tudo passa a rolar em câmera lenta. Posso ver os olhos dos alunos se arregalarem lentamente, e seus queixos caírem. Consigo ver Chris cobrir a boca dela com a mão, e os dois calouros piscarem com força. Vejo um passarinho pousar no parapeito externo da janela. Ele está com algo no bico. Algum tipo de folha? Acho que sim. Ele se vira para mim e pisca um olho de cada vez, o que interpreto como um bom sinal. Sorrio para ele e aceno com a cabeça.

Inspiro longamente, tomando uma boa quantidade de ar, ao mesmo tempo em que vejo os grãos de poeira dançarem ao redor dos meus olhos. A luz que entra pela janela – a mesma na qual o passarinho está –se divide em várias faixas de cor diferentes. Estalo o pescoço e pisco duas vezes.

Como uma onda de água violenta, alguém aperta play e a realidade volta à velocidade normal. Dobro a coluna para trás em um ângulo perfeito, e desço uma perna de cada vez. Agora, ambos os pés e mãos estão apoiados no chão. Minha barriga está estufada para cima e minha camisa subiu, revelando um pequeno pedaço de minha pele. Sinto-me um pouco tonta já que, tecnicamente, estou de cabeça para baixo. Jogo a cabeça para cima e tomo impulso para fazer o mesmo com o resto do corpo, e logo estou de pé novamente.

Ouço o som de algo batendo contra o chão. Quando olho para baixo, vejo que há um extintor de incêndio rolando em direção a uma parede. O metal faz um barulho ensurdecedor contra a própria, e percebo que é a parede com janela. Olho para cima, e vejo que o passarinho não está mais lá.

Tic-tac, tic-tac. O relógio no topo da porta à minha direita marca os segundos monótona e preguiçosamente. Três, quatro...

Isso foi um mortal?!

E, novamente, o som das vozes preenche o corredor como água em um caixa.

Aos meus pés, Blake se contorce de dor. Ele cobre o nariz com ambas as mãos, mas não é o suficiente para estancar o sangramento. Há uma trilha irregular de sangue que segue até a parede, onde o extintor está. O que quer dizer que devo ter acertado seu nariz com a ponta dele.

Ótimo.

– Char... nell – ele geme, girando o corpo no chão.

– Sim? – respondo, dobrando os joelhos para encará-lo melhor.

– Você é uma... – mas ele não termina a frase, pois acerto seu estomago com a ponta da bota.

– Uma o quê? – incentivo, acertando-o novamente – Vamos Blake, uma o quê?

– Já chega... – ele pede.

– Foi o que eu pensei ter ouvido – então, cuspo em Blake com um presente de despedida, e dou as costas à ele.

Chris corre em minha direção, seguida de toda a multidão. De repente, eles parecem terem se esquecido de Evan e Blake, que ainda estão se contorcendo no chão.

– Isso foi demais! – um dos calouros que estava conversando com Chris mais cedo diz, ao que o outro completa:

Demais? Isso foi simplesmente foda!

– Eu... – começo, mas então um flash de luz parece apagar meu cérebro por um momento. Minhas narinas se dilatam, e sinto o perfume já tão conhecido invadir meus sentidos.

É algo entre o cheiro de flores e cupcakes de chocolate com cobertura de morango. E também há algo mais. Mais ácido, e denso. Uma pitada de... Sangue.

– Tenho que dar o fora! – então, abro caminho entre a multidão, chutando as canelas que se colocam na minha frente e empurrando os alunos que tentam me parar.

Dobro o corredor, quase escorregando e indo de encontro com parede, e sigo em direção a uma das portas que dão acesso ao pátio. Preciso chegar lá antes que...

– Você vem comigo, nanica – sinto alguém puxar a parte detrás da gola da minha jaqueta, e me arrastar para longe da porta.

– Mas... – sou levada sem nenhuma dificuldade, meus calcanhares deslizando no piso e as costas das minhas mãos esbarrando no mesmo de vez em quando.

– “Mas” uma vírgula – ele responde, e percebo que não está irritada de verdade – temos que conversar.

E, como sei que não serei capaz de fazer nada, suspiro, deixando Kenny me arrastar até onde ela queira.

___

Oi.

Meu nome é Mei. Vou fazer quinze anos daqui a quatro meses e alguns dias – o que quer dizer que tenho dois anos a menos que os dois carinhas nos quais eu bati mais cedo. Eu sou a irmã mais nova da presidenta do grêmio estudantil, do capitão e do ala do time de basquete da escola.

Eu não tenho pais. Desde que me lembro, sempre foi Kenny quem cuidou de mim. E, para falar a verdade, eu realmente não me importo com isso. Quer dizer, Kenny é a melhor irmã mais velha de todos os tempos, e eu não posso pensar em alguém melhor no mundo para ter como família. Sem desmerecer Tresh e Ryou, claro, eles também são irmãos incríveis.

E tem o Matt também. Ele é o mais velho de nós cinco, mas eu não o vejo há um bom tempo. Acho que dois anos, mais ou menos. Nós costumávamos manter contato durante os três primeiros meses, mas então, ele ficou ocupado demais e parou de responder.

Por quê? Bem, o emprego de Matt é um tanto... perigoso. Mas sei que ele está bem. Modéstia à parte, ele é meu irmão.

Tresh está no ultimo ano do ensino médio. Mas Ryou e eu ainda estamos no ensino fundamental – digamos que eu não gosto muito de estudar. Kenny está logo atrás de Tresh, no segundo ano. Ela é bem admirada por aqui, mas isso se deve mais ao fato de que ela provavelmente é a garota mais bonita dessa escola.

Se Kenny é a presidenta respeitável, Matt é o irmão exemplar, e Tresh e Ryou são os astros de basquete, eu sou a ovelha negra da família.

– Você. É. Uma. Peste. – Kenny diz lentamente, limpando o sangue na minha testa com um lencinho que cheira a perfume – Francamente, Mei.

Sorrio sem graça, fechando os olhos para que ela possa limpar o sangue que secou em cima das minhas pálpebras.

– Eu deveria furar os seus olhos – ela resmunga, molhando o lenço novamente.

Solto uma risada abafada, porque sei que Kenny nunca teria coragem de me machucar de verdade. Assim como eu nunca levantaria um dedo para feri-la.

– Está doendo? – ela pergunta, diminuindo um pouco a força ao passar o pano sobre o corte em minha testa – Quer que eu pare?

– Hã-hã – respondo. Ela sabe muito bem que isso não é suficiente para me ferir, mas o modo como se preocupa comigo é louvável.

Kenny pousa o lenço sobre a bancada da pia e procura algo dentro da mochila apoiada na parede de um dos boxes. Enquanto ela está concentrada na busca, olho meu reflexo no espelho por alguns segundos.

Eu provavelmente pareço uma fada gótica.

Meu cabelo é tão escuro como tinta preta. Mas há duas mexas roxas nele, que Kenny nuca deixa ficar desbotadas. Ele é totalmente liso e vai até os ombros. Eu costumo parti-lo de lado, o que faz com que minha franja cubra parcialmente meu olho direito. Minhas sobrancelhas são longas e finas, tão escuras quanto meu cabelo, e há uma pequena cicatriz branca que segue quase perfeitamente o contorno da direita. Meus olhos são azuis. Kenny diz que eles são “como o fundo do mar”. Escuros, gélidos, e traiçoeiros – e você nunca sabe o que está se escondendo atrás deles.

Bem, tenho que concordar com ela.

Tenho um nariz pequeno como o de uma boneca, e há um piercing em meu lábio inferior. É apenas uma argola preta simples, mas eu gosto do gosto de metal que ele deixa em minha boca.

– Kenny? – chamo – O que você ta procurando?

Então ela se ergue, girando sobre os calcanhares, e percebo que está escondendo algo atrás das costas. Há um sorriso cínico em sua boca e seus olhos estão brilhando.

Ah.

Kenny é apaixonada por maquiagem. Eu não sei muito bem o porquê já que ela é bonita mesmo sem nada na cara. Gostos à parte, eu não teria nenhum problema com isso se ela não amasse me usar como boneca de testes.

– Só um pouquinho de rímel e eu juro que nunca mais te peço para fazer isso – ela pede, os lábios formando um beicinho.

– Sem chance – abano as mãos na frente do rosto.

Não que eu odeie maquiagem – na verdade, eu realmente não consigo me ver sem uma boa quantidade lápis de olho – só não gosto de me arrumar demais. Olhando meu reflexo no espelho, penso o quão óbvio isso é. Estou vestindo uma camiseta de baseball três números maiores que o meu manequim, meu jeans está rasgado em toda a extensão lateral da coxa e a barra está totalmente desviada, por isso eu a escondi dentro da bota, que também não está lá em seu melhor estado. A única peça de roupa parcialmente aceitável que estou vestindo é a jaqueta de couro preto – mas isso de deve ao fato de que Kenny me deu ela há menos de duas semanas.

Apoio a cintura na bancada da pia, cruzando os braços sobre o peito, e ergo uma sobrancelha para ela:

– Por que quer me maquiar?

Ela rola os olhos.

– Blake Hoster vai dar uma festa hoje, você não sabia? – Kenny responde, fechando o rímel.

– E o que eu tenho a ver com isso? – pergunto – Ele está atrás de você, não de mim.

Como todos os outros garotos dessa escola, penso. A verdade é que Kenny muito provavelmente é a garota mais disputada dessa escola. Eu e ela até seríamos parecidas se ela não tivesse o corpo de uma modelo de biquíni. Kenny tem um cabelo totalmente preto que vai até depois da cintura, olhos grandes como esmeraldas e cílios de boneca que ficam armados mesmo sem nenhum rímel. Seus lábios são naturalmente rosas, e suas bochechas são grandes e parecem gritar “me apertem!”.

– Você sabe que eu não ficaria com ele – ela torce a boca – é o Blake.

– Bem, acho que nenhuma garota vai querer ficar com ele por um tempo – sorrio.

– Hã? – ela pisca – Por quê?

– Digamos que eu dei um pequeno presentinho à ele – digo – uma plástica gratuita no nariz, só porque sou uma pessoa muito gentil – inclino um dos joelhos, erguendo as sobrancelhas.

– Você quebrou o nariz do Blake? – ela pergunta com os olhos arregalados. Então, sua voz explode em uma risada histérica –Mal posso esperar pra ver a cara dele!

– Pois é, pois é – dou de ombros, ainda rindo – aposto que ele não vai querer que ninguém veja a cara dele assim, então acho que não vai rolar essa tal festa hoje à noite.

– Tanto faz – Kenny pula na bancada da pia – então, que tal fazermos uma maratona de filmes? Podemos levar a TV da sala pro quarto.

– E Tresh e Ryou? – pergunto.

– Eles podem ficar no chão – ela dá de ombros – quem sabe não chamamos o Matt? Acho que já está no período de férias dele.

– Hm... – coço a bochecha – parece uma boa. Vou avisar o Ryou – digo, pulando de volta para o chão – você avisa o Tresh, já que estão na mesma ala.

– Ok – ela pula também – até o almoço – estala um beijo na minha testa e junta mochila do chão – vê se não quebra o nariz de mais ninguém – ela diz, quando já estamos fora do banheiro.

– Vou tentar – sorrio, lhe dando as costas e começando a andar em direção a ala no fundamental.

___

– Ei, Ryou!

Fecho os dedos em torno da maçã, e estreito os olhos, focalizando a cabeça dele. Ergo a mão acima da cabeça, e lanço com um pouco mais de força do que o necessário.

A maçã atinge a cabeça dele, explode e ele cai no chão..

– Ops.

Ryou apóia uma das mãos no chão,e ergue o tronco, sentando-se. Ele olha ao redor, e eu aceno com a mão:

– Ryou! – grito.

Ele estreita os olhos, finalmente me enxergando. Então acena também.

– Cadê o Tresh? – grito, já que estou nos degraus mais altos da arquibancada.

– No vestiário! – ele grita de volta.

Desço a arquibancada de dois em dois degraus. E pulo a grade de proteção, caindo no chão encerado da quadra de basquete, passo por Ryou e o puxo pela gola da camisa, colocando-o de pé, e digo por cima do ombro:
– Você ta encharcado – solto sua gola e limpo a mão no jeans preto.

– É porque eu estava jogando – ele rola os olhos – ao contrário da senhorita, que estava quebrando alguns narizes por aí, não é?

Suspiro, sorrindo também.

– Você deveria tentar, é divertido – digo.

– Imagino – ele ironiza.

Ryou é meu melhor amigo. Além de meu irmão mais velho, e animal de estimação. Ok, a ultima parte foi brincadeira, mas ele é realmente muito especial para mim.

– Tresh? – chamo, batendo na porta do vestiário.

– Desde quando você é educada? – Ryou rola os olhos, abrindo totalmente a porta.

– Só não quero dar de cara com uma cena constrangedora – sinto minhas bochechas corarem – este é o vestiário masculino.

– Grande coisa – ele dá de ombros – Ei, Tresh, você ta vivo?

– Caramba, vocês falam demais – Tresh aparece detrás de uma coluna de armários, coçando a cabeça – ninguém consegue dormir assim.

– Quer dizer que o capitão do time estava dormindo durante os treinos? Que coisa hein? – provoco, erguendo uma sobrancelha.

– Cala a boca aí, nanica – ele retrucada, jogando uma camiseta encharcada de suor em mim.

Eu não sou nanica.

Ta bom, eu sou. Comparada à qualquer um dos meus irmãos, eu sou uma anã. Não me lembro muito bem, mas da ultima vez que me medi, acho que eu tinha 1,54m. Ou alguma assim.

– Tecnicamente, quem deveria te avisar era Kenny, mas já que eu estou aqui mesmo, vamos logo. Vamos chamar o Matt e fazer uma maratona de filmes hoje à noite.

– Parece bom – Tresh sorri, vestindo uma camiseta limpa –, mas depois conversamos sobre isso, agora eu e o baixinho aqui temos que treinar – ele bate o ombro no de Ryou.

– Certo – concordo – vou estar na lanchonete, me avisem quando forem pra casa.

Eles concordam com a cabeça, me dando as costas e saindo do vestiário. Enquanto observo os dois se dispersarem pela quadra, não consigo deixar de pensar em quanto eles são diferentes. Tresh é alto, tem cabelos lisos e tão ruivos que chegam a parecer sangue, e olhos azuis quase tão escuros quanto os meus. Ele é inteligente, calmo, não é de falar muito, e tem um sério vício em açúcar.

Ryou é um pouco mais baixo, seus músculos ainda estão em formação – apesar de seu abdômen ser bem definido –, tem os cabelos em um furacão de cachos cor de chocolate e olhos verdes um pouco mais claros que os de Kenny. Ele tem uma pequena cicatriz abaixo do olho esquerdo, branca e curva, que combina com a que eu tenho acima da sobrancelha – esquerda também.

Ah, ainda lembro de como conseguimos essas cicatrizes.

Mei! Ouço a voz de Kenny me chamar.

Olho ao redor, mas ela não está em lugar nenhum. Procuro pela arquibancada, quadra, e até olho pelas passagens de ar no teto na quadra, mas não a encontro.

Mei! Responde!

De novo. Corro os olhos pelo lugar uma ultima vez, antes de começar a morder o lábio inferior.

Kenny não está aqui. Mas a voz dela está.

Que foi? Penso.

Em algum lugar na minha mente, Kenny suspira aliviada.

Vem para o pátio. Agora. A voz dela ecoa.

Estou indo. Preparo-me para começar a correr, quando ela fala novamente:

Traga o Tresh e o Ryou. Temos... um problema.

Suspiro comigo mesma, concordando, e atravesso a quadra, agarrando os dois pelos pulsos e os puxo para fora do ginásio.

– O que houve? – Ryou pergunta seus olhos um pouco mais escuros. Ele massageia o pulso e percebo que está roxo.

– Kenny está nos chamando – respondo.

– Kenny? – Tresh olha ao redor, procurando-a, mas eu puxo seu queixo com a mão e o forço a olhar para mim:

– Ela não está aqui.

Uma sombra passa pelo rosto dele enquanto seus olhos se suavizam, compreendendo. Noto que o pulso dele também está roxo, e um pouco inchado perto do osso.

– Está quebrado? – pergunto preocupada.

– Só torcido – ele balança a cabeça, sem dar importância – onde está a Kenny?

– No pátio da frente – digo – ela disse que tínhamos um problema.

– Problema? – Ryou repete. Suas narinas se dilatam e o vento move seu cabelo para cima dos olhos. Ele inspira profundamente duas vezes, antes de afastar o cabelo da frente do rosto de engolir em seco – Temos mais do que um problema.

– Como você... –

– Tem cheiro de sangue vindo do pátio da frente – ele diz rápido, tropeçando nas palavras – e não é o cheiro da Kenny.

Olho para o céu, onde uma pequena tempestade começa a se formar, o vento bate nas minhas costas e eu perco o equilíbrio por um segundo. Olho para Ryou, que parece nervoso, e então foco meu olhar em Tresh:

– Tem cheiro de morte – ele diz.

Concordo com a cabeça:

– Cheiro de morte fresca.

___

– Kenny! – chamo, pulando os últimos degraus da escadaria que dá acesso ao pátio – O que houve?

Ela está parada no ultimo degrau, o cotovelo direito apoiado no corrimão e o olhar fixo na multidão a nossa frente. Há tantos alunos e tantas vozes misturadas que por um segundo me sinto tonta.

Ela não desvia o olhar.

– É o Blake – diz.

– O que tem ele? – Tresh pergunta.

Ela acena com a cabeça para o aglomerado de alunos, e Tresh ergue as sobrancelhas:

– É ele? – Ryou indaga – Que está ali?

Kenny concorda com a cabeça, e começa a andar em direção á eles.

– Os pensamentos dele estão confusos – ela diz, franzindo as sobrancelhas – não dá pra lê-los direito. É como se alguém...

– Tivesse os bloqueado? – Tresh completa.

– Isso – ela abre caminho em meio a multidão, que abre passagem para ela com muita facilidade – e todos essas pessoas em volta está dificultando. Se eles fossem embora só por um segundo...

– Acha que conseguiria lê-los? – pergunta.

– Tenho certeza – Kenny responde – não é um selo muito... – e então ela para.

–... Muito?

Mas ela não responde. Chegamos ao centro da multidão, os outros alunos esticam o pescoço para ver por cima das nossas cabeças. Então, sinto. O cheiro me acerta como um tapa, e por um segundo, sinto minha garganta se fechar. É cheiro de sangue. Puro e fresco.

Viro a cabeça lentamente, com medo do que posso encontrar aos meus pés.

– O que... – Ryou engasga.

É Blake. Mas ao mesmo tempo não é. Parece mais uma figura distorcida de algo que um dia talvez tenha parecido com Blake.

Seus dois braços estão quebrados, há um corte aberto na lateral do seu pescoço e seus olhos parecem quase totalmente sem vida. Seu cabelo foi raspado perto das orelhas e sua cabeça tem cortes profundos, como se alguém a tivesse aberto a facadas. Ele geme alguma coisa, mas a mistura de algo entre saliva e sangue o impede de falar coerentemente.

Mas o que faz meu sangue congelar nas veias é o que vejo em seu peito. Sua camisa social está aberta – ou melhor, rasgada – e toda a extensão do seu tronco está marcada por cortes que ainda sangram. E, pintado bem no meio do peito dele há um símbolo. Tento focalizar o desenho, mantendo meus olhos semi-cerrados, mas não consigo, sinto como se minha cabeça estivesse prestes a explodir. Mas não preciso olhar para saber o que é.

– Erínias... – Tresh murmura.

Tampo as orelhas com as mãos, tentando fazer a dor passar.

Sinto algo dentro de mim se rasgar. Elas voltaram. Minha vontade é levantar e caçá-las, matar uma por uma até que nunca mais venham atrás de mim.

Mas não posso. Na minha cabeça, ouço o som de seus chicotes estalando contra a pele de Blake. Ouço o som de suas risadas musicais. Ouço o som dos gritos dele.

Preciso ir embora.

– Mei! – Kenny agarra meu pulso e me levanta. Quando foi que caí de joelhos? – Mei, se concentre! – ela sussurra – elas não estão aqui. Você está segura. Nós vamos te tirar daqui, ok?

Kenny me puxa para longe da multidão, Tresh e Ryou nos seguem. Ela me coloca no bando de trás do carro e espera até que os dois entrem também, então pisa fundo no acelerador e começa a dirigir furiosamente, ignorando todos os sinais de trânsito.

Mas eu também não me importo.

A única coisa na qual consigo me concentrar é a lembrança do corpo de Blake.

Elas estão de volta. Penso. E estão me caçando.

– Mei? – Kenny chama preocupada, ao que eu levanto a cabeça e passo a língua pelos lábios, sorrindo finalmente.

Você só precisa matá-las. Digo para mim mesma. É tão simples.

– Sim? – respondo.

Matá-las.

– Você está bem?

Oi.

Meu nome é Mei. Vou fazer quinze anos daqui a quatro meses e alguns dias – o que quer dizer que tenho dois anos a menos que os dois carinhas nos quais eu bati mais cedo.

E eu sou um demônio.

E, atualmente, todas as criaturas do Paraíso estão me caçando.

– Melhor impossível – olho para o meu reflexo no espelho retrovisor, e passo a língua sobre o piercing.

Eu sou um demônio. Um do pior tipo.

O tipo de demônio... que mata outros demônios.

– Ótimo – Kenny sorri, então ela me olha pelo espelho também – porque temos algumas cabeças para arrancar.

E por um segundo, seus olhos parecem tão famintos quanto os meus.


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Notas finais do capítulo

É isso e.e



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