Ava & Os Bluebirds escrita por NB Munaro


Capítulo 3
Dois




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Aidan Bennett tinha as janelas do seu tradicional Camaro preto 1969 abertas, fazendo com que os ventos salgados de Newport Beach viessem ao encontro das mechas nada comportadas de Ava, que cobriam o rosto da menina enquanto ela tentava lutar contra a ventania violenta, cuspindo os fios castanhos sem parar. Havia acabado de pular no banco de trás, enquanto seus dois irmãos mais velhos iam à frente, e Aaron batia a palma da mão direita na lataria de fora da porta do carro ao ritmo de Jaded, do Aerosmith, a banda favorita de Ava quando esta se encontrava junto dos irmãos.

O irmão da garota parecia ir a setenta por hora em um trajeto de seis minutos pela Santa Ana Avenue, pegando a Cliff Drive e indo até a Riverside – avenida de sua casa. Ela não entendia muito o porquê de ter que ir de carro com os dois irmãos, sendo que poderia muito bem andar, e aquilo demoraria menos de vinte minutos. Na verdade, sua mãe insistia para ela voltar todos os dias com eles, mesmo Aaron e Aidan tendo um treino de duas horas após a aula nas quartas-feiras, o que resultava em uma Ava acompanhada de suas lições de casa de Química Avançada e Latim nas arquibancadas do campo de futebol da escola, o Alabama Field, em meio aos gritos das líderes de torcida e aos empurrões barulhentos dos jogadores monstruosos.

Aidan deu a volta na quadra, entrando na rua sem nome da garagem de sua casa e acionando o botão que abria um dos portões eletrônicos brancos. O filho do meio, Aaron, cantarolava o ritmo pesado da canção, imitando deliberadamente a voz rouca e característica de Steven Tyler, enquanto franzia seu rosto alvo e quase avermelhado por conta do sol escaldante de Newport Beach. O mais velho dos Bennett acelerou para dentro da grande garagem, parando ao lado da Range Rover Evoque cor de chumbo de seu pai que obviamente dizia aos irmãos que o endocrinologista se encontrava em casa. Os três franziram a testa quase que simultaneamente, surpreendendo-se com o fato de que veriam o pai sentado em sua poltrona do lado de fora da casa em plena luz do dia.

Aidan desligou o Camaro, abrindo a porta imediatamente enquanto pegava a mochila branca quase vazia perto de seus pés. Os três se dirigiram para a porta de correr que dava caminho até o pequeno pátio com espreguiçadeiras almofadadas azul-marinho e uma churrasqueira média de aço, além de uma mesa arredondada de cinco lugares no meio do local revestido com deques de madeira plastificada, com uma fonte de água em cascata ao canto direito, em frente à passagem de vidro que dava para o interior da casa dos Bennett, caracterizada pelo seu exagero.

Ao entrarem no pequeno hall revestido pelo piso laminado e pelas paredes pintadas de branco, onde havia mais uma mesa circular de madeira escura e um minibar de madeira avermelhada e cadeiras altas, os irmãos Bennett logo tiveram a visão da mãe sentada no sofá de couro marrom pálido em frente à lareira de pedra acinzentada, folheando uma revista Harper’s Bazaar – que provavelmente seria do ano passado – e parecendo bastante concentrada no que fazia. Quando se deu conta de que seus filhos estavam em casa, Dakota Bennett se apressou em levantar, passando um fio loiro por trás da orelha e sorrindo de maneira confusa e agitada para os três jovens. A mulher de quarenta e um anos tinha o rosto pálido coberto por algumas poucas rugas de expressão. Seus olhos verdes eram pequenos e cercados por olheiras não muito profundas, os cabelos loiros eram ondulados e sem vida, ficando geralmente presos em uma presilha com o formato de duas flores pretas cobertas de strass. Dakota era excessivamente magra e alta, e tinha uma pequena corcunda formada por conta do mau-jeito ao se sentar. Seu nariz era pontudo, seus lábios finos e suas sobrancelhas um pouco mais escuras que os próprios cabelos.

— Oi, mãe – Aidan falou ao dar a volta nas duas poltronas azuis em frente à mesa de centro feita de mogno e se jogar no sofá marrom pálido, logo ao lado da mãe.

— Mãe – Aaron repetiu em voz alta ao desviar do rosto de Dakota e virar à esquerda, tendo seus pensamentos voltados para a geladeira branca no canto direito da cozinha.

— Como foram de aula, meninos? – a mulher sorriu, cruzando os braços e acompanhando Aaron com o olhar – Alguma novidade no time?

— Conta pra ela, Aaron – Aidan entortou a cabeça para trás e fitou o irmão de longe.

A mulher virou o rosto para o filho do meio, que já se deliciava com um sanduíche de manteiga de amendoim em um dos diversos balcões de granito claro da cozinha.

— Ah, é – ele já tinha quase o sanduiche inteiro dentro de sua boca enquanto falava – Vou substituir um dos garotos no próximo jogo, o Louis, eu acho.

A dona de casa ergueu as sobrancelhas em total surpresa, sorrindo largamente.

— Isso é maravilhoso, querido! Ah, meu Deus, espere só seu pai saber disso!

— Os caras queriam me tirar do time depois que viram o touchdown que ele marcou hoje de manhã – Aidan pegou o controle da televisão e o ergueu em frente a ela, ligando direto na ESPN.

Dakota, embasbacada, arregalou os olhos.

Um touchdown, Aaron? – repetiu, e viu o filho de quase dezessete anos apenas assentir com a cabeça enquanto mastigava.

— É, mãe, eu sou o novo Aidan Bennett – ele respondeu mastigando.

A loira estava prestes a exclamar de felicidade quando foi interrompida por um par de sapatos pesados batendo contra o chão laminado, e então, pôde finalmente perceber a presença de Ava na sala de estar, que seguia rumo à escada ao lado das portas de vidro por onde havia acabado de entrar. Ela tinha os ombros curvados, como se aceitasse sua própria condição de invisibilidade naquele lugar. Seus cabelos bagunçados mal se mexiam, mas conseguiam cobrir boa parte de seu rosto pálido e oval, dando a ela uma imagem mais cansada do que a que já mantinha.

— Ava, querida! – Dakota andou em direção da filha e a pegou pelos ombros na tentativa fajuta de dar um abraço por trás na garota – E você? Como foi na escola?

Ela se virou para a mãe, pressionando os lábios uns nos outros, e lutando para achar uma resposta diferente de todas as outras que dera durante dezesseis anos.

Sabia que a mãe só lhe perguntava aquilo para não exclui-la da conversa sobre o primeiro dia de aula. Dakota tinha absoluta certeza de como havia sido, e de como seria exatamente a mesma coisa pelo resto do ano.

— Foi tudo bem – Ava abaixou a cabeça e deu meia volta, deixando a mãe conversando sozinha como sempre fazia, mas a mulher mal se importava.

— Ava – Dakota chamou ao vê-la dando-lhe as costas.

A garota de olhos impressionantes se voltou para ela novamente.

— Espero que a manga dessa camisa não tenha ficado assim durante o dia. – o tom opressivo da mãe se fez presente naquele instante, o tom que só Ava realmente conhecia.

Não Aaron, muito menos Aidan.

Apenas Ava.

A filha olhou para baixo, engolindo em seco e arrumando a manga da enorme camisa de tecido fino e preto que antes expunha um dos seus ombros de porcelana sem a garota ao menos perceber.

— Não ficou.

Dakota ergueu o rosto sério, e junto dele, suas sobrancelhas naturalmente arqueadas. Aaron e Aidan ficaram em completo silêncio enquanto observavam a cena – Aaron parou de mastigar imediatamente e Aidan paralisou seus olhos azuis em cima da mãe e da filha, que estavam uma em frente à outra, enquanto a segunda demonstrava sua apreensão ao entortar os pés, quase os virando juntos.

— Ótimo – completou a matriarca – Já pode subir.

Ava engoliu em seco antes de subir as escadas e andou até o final do corredor iluminado pela luz do sol que refletia nas enormes janelas que cobriam uma parede inteira, abrindo a porta de seu quarto. Pôde sentir um peso de setenta e três quilos atingir-lhe o corpo, empurrando-a e quase fazendo com que a garota atingisse a parede feita de vidro.

Sabia que era sua cadela Yoko, uma São Bernardo de apenas três anos de idade. A garota já esperava a bagunça que estaria seu quarto quando ousasse reparar neste, mas não se importava, pois, para ela, não havia nada melhor do que passar o resto da tarde arrumando os estragos de Yoko junto da própria, que sempre insistia em bagunçar ainda mais.

— Sim, Yoko, sou eu, sou eu – murmurou, passando uma mão pela cabeça enorme da cadela de sangue puro, que só sabia babar pelos corredores revestidos de madeira da grande casa dos Bennett.

Antes de entrar no quarto, notou seu pai saindo apressado da suíte ao lado, carregando um jaleco no ombro esquerdo enquanto vestia uma camisa social lilás e calças pretas e bonitas.

— Papai? – ela chamou, inclinando a cabeça para poder encará-lo andando pelo corredor. O médico virou-se por apenas um segundo para encarar quem o havia chamado. Por um momento pensara ter sido Dakota, mas era somente Ava, que franzia as sobrancelhas castanhas e bonitas em sua direção, esperando por uma resposta.

Austin Bennett era um endocrinologista renomado e muito conhecido pelo Condado de Orange. Era alto, tinha o corpo atlético e os olhos azul-transparentes iguais aos de Aidan e Ava, além dos cabelos quase grisalhos e que antes costumavam ser castanho-escuros. Tinha a barba rala e o rosto um pouco franzido, além de um sorriso um tanto quanto aberto demais – ainda que sorrisse apenas na companhia de seus dois filhos prediletos.

— Como vai, Ava? – respondeu às pressas enquanto descia o primeiro degrau da escada, não querendo muito saber como ia sua filha mais nova, que lambeu os lábios róseos ao perceber tal situação. Ela ficou em silêncio por um instante, enquanto afagava os pelos soltos do focinho de Yoko, que ofegava sem parar, babando nos seus sapatos de couro pesados.

Ava e a cadela olharam para a escada no meio do corredor, e a primeira suspirou fundo. Ela voltou os olhos azuis para a entrada de seu quarto decorado pelo papel de parede vermelho repleto de penas pintadas em branco e pelo piso coberto com carpete claro, vendo os travesseiros jogados no chão e o cobertor branco amassado e revirado em sua cama de casal posicionada no meio do cômodo.

— Anda – empurrou Yoko para dentro do quarto com os joelhos – Vamos arrumar a sua bagunça.

∆∆∆

Angus ergueu o rosto para a enorme escada no canto do hall de entrada ao fechar a porta atrás de si.

— Mãe? Tô em casa.

— Gus, querido – a voz aveludada da mãe atingiu-lhe os ouvidos, fazendo-o sorrir involuntariamente. Sabia que Audrey estava na cozinha, o que era raro, já que o pai quem costumava fazer as refeições daquela casa. Desviou da mesa de jantar de madeira nogueira posta quase atrás da escada curvilínea, caminhando pelo corredor reto de paredes altas cor de creme e se abaixando para passar pelo arco da porta antes da cozinha. Ter um metro e noventa de altura era um pouco complicado em alguns cômodos daquela casa.

Estava enganado ao pensar que sua mãe cozinhava, pois Audrey na verdade sentava-se no sofá de almofadas gordas e aveludadas da sala acoplada com a cozinha, tendo a cabeça baixa e as mãos trabalhando em algo que Angus não conseguia ver o que era. O rapaz se sentou ao lado da mãe e colocou uma mão em seu ombro. A mulher de cabelos castanhos escuros virou-se imediatamente para ele, sorrindo alto e abraçando os seus ombros em total alegria.

— Como foi lá hoje, querido? – sua voz foi abafada pelo tecido fino da camiseta branca de Angus, e ele se desfez do abraço, olhando para o rosto jovem demais dela, que tinha já os seus quarenta e poucos anos de idade.

Ao reparar em Audrey, qualquer um tirava de letra o que um dia ela fez na vida. Seu rosto maciço e seu corpo ainda escultural denunciavam o antigo trabalho da mãe de Angus, que se aposentara da carreira de modelo há cinco anos. O bronzeado californiano e os olhos pequenos e negros eram pouco marcados pelas rugas de expressão que ainda começariam a aparecer no rosto da bela mulher. Ela e Angus eram extremamente parecidos, a não ser pelos cabelos castanho-claros e o nariz enorme do filho, que com certeza havia vindo do pai, Benedict, um engenheiro ambiental conhecido nas redondezas do Condado de Orange.

— Nada de mais – respondeu ele ao passar um braço pelos ombros de Audrey – Sempre a mesma coisa.

— E Ava?

É, sua mãe também sabia.

— Ah, mãe – Angus rosnou ao abaixar a cabeça e cobrir o rosto com as duas mãos. Audrey riu como uma criança, ignorando o fato da frustração do filho afetá-la diretamente. Achava que Gus não merecia tamanha situação, era um rapaz tão correto e educado, além de bonito e habilidoso nas cordas do seu violão Martin (o que dava a ele muitas vantagens na hora de se conseguir uma namorada). Não entendia como ele continuava tão fissurado em alguém que mal sabia de sua existência. – Não sei mais o que fazer.

A morena passou uma mão pelos cabelos castanhos do filho enquanto sorria com toda aquela bobice que Angus exalava ao se sentir tão incapaz de fazer algo tão simples.

— Você já parou pra se ver no espelho? – ela disse então, sem deixar de massagear os cabelos de Angus. – Você é um rapaz de um metro e noventa de altura, bonito, e, além disso, tem uma personalidade impossível de ser comparada com qualquer outra – Angus abafou uma risada com o discurso poético da mãe, e que não tinha absolutamente nada a ver com ele. – Qual é a dificuldade em ir falar com essa garota?

Ele ergueu o rosto, retirando o braço de seus ombros e apoiando os cotovelos nos joelhos cobertos pelo jeans. Encarou Audrey antes de suspirar profundamente.

— Ela é demais, mãe – aquela fala arrancou uma gargalhada exagerada dos lábios da mulher – Qualquer um é pouco pra ela.

— Eu duvido.

— Eu tô falando sério, ela é demais.

— Você também é demais, Gus.

— Não tanto quanto ela.

Audrey mordeu um sorriso debochado. Ver seu filho falando algo parecido sobre uma garota chegava a ser mágico para ela, que conhecia muito bem os tipos de rapazes que andavam pelas ruas de Newport Beach. Gus não era nada como aqueles garotos, e a mulher nunca teve tanta certeza e orgulho de tal fato quanto naquele instante.

— O que ela tem de tão especial assim?

O garoto de olhos negros respirou fundo. Nem ele sabia, para ser sincero. Talvez eram os cabelos ressecados e voadores, ou a risada tímida que assolava os lábios finos da garota quando ela estava sozinha no quarto. Podia até ser a esquisitice aparente em todos os seus movimentos, o rapaz não sabia mesmo dizer.

Só sabia que ela era demais.

— A janela dela é do lado da minha, mãe, acho que só você indo ver pra entender.

Audrey arregalou os olhos de imediato.

— Não me diga que você... –

— Não, não! – ele engasgou, tentando se explicar ao vê-la tão petrificada, e negou diversas vezes, tanto com a cabeça quanto com as mãos – Eu não sei como é, mãe, eu nunca vi ela sem roupa!

— Ótimo! – a mãe retrucou em um suspiro pesado – Já estava pronta pra te tirar daquele quarto!

Ele piscou várias vezes para Audrey, quase ofegando com o susto que havia dado em si mesmo.

— Nem brinca com uma coisa dessas, mãe – grunhiu depois de um segundo apenas encarando o rosto delicado dela, que relaxou visivelmente. A morena franziu as sobrancelhas e sorriu de forma delicada para a figura ainda apreensiva do filho, que não tinha como retribuir o gesto naquele momento. – Por favor.

Ela riu baixinho, passando uma mão pelo rosto dele.

— Nunca farei isso, meu querido.

∆∆∆

Após a conversa um tanto quanto constrangedora com a mãe, Angus tomou rumo para o segundo andar, subindo a escada curvilínea e andando até o final do corredor, onde ficava o quarto, seu lugar favorito da enorme casa. Abriu a porta e a fechou rapidamente, fitando o espaço bagunçado de paredes brancas e carpete marrom. Sua cama – um pouco menor do que uma cama de casal – se encontrava ao lado das janelas e completamente desarrumada, com os lençóis e cobertores brancos embolados embaixo do violão de madeira escura de Angus. O tapete cor de grama por baixo da cama estava incrivelmente sujo com migalhas de salgadinhos – algo que provavelmente Theo havia feito na noite retrasada ao comer um cone inteiro de Pringles sem ao menos dividir com o dono da casa. O dia estava ensolarado, e o quarto de Gus brilhava por conta das persianas brancas e abertas. O rapaz retirou o violão Martin de cima dos forros, colocando-o no pedestal e decidindo por arrumar a cama, jogando os lençóis no chão e dobrando os cobertores.

Ao terminar, pegou Tonkin – sua esposa e violão – e jogou-se no lençol logo em seguida. Acabou dedilhando algumas notas soltas e encontrou o ritmo de Hotel California entre elas, o que o surpreendeu, pois não fazia ideia de que ainda conseguia tocar a música depois de tanto tempo sem praticá-la. Ele olhou de relance para as persianas abertas, e pensou por um segundo se Ava já estaria em seu quarto naquele momento, lidando com todas aquelas enciclopédias e livros para a aula de Literatura e História Americana.

Franziu as sobrancelhas. Não se lembrava de ver Ava fazendo algo além de ler, escrever, brincar com a São Bernardo Yoko (se é que ela tem esse nome, ele pensou) e escutar músicas altas. Não se lembrava de tê-la visto falando com alguém além de seus irmãos e sua mãe.

Não se lembrava de vê-la tendo uma vida, na verdade.

Angus se levantou rapidamente, puxando a cadeira de escritório que ficava em frente à mesa branca ao lado da cama para perto das duas janelas. Colocou o violão em cima da cadeira, subindo as persianas discretamente e se afundando no estofado de couro preto com o violão no colo. Não conseguiu ver nada além da porta do quarto de Ava aberta, e do enorme rabo de Yoko balançando de um lado para o outro. Sorriu por um momento, perdendo o ritmo marcante de Ballad Of Mr. Jones entre os seus dedos calejados. Mal piscava para a vista do quarto de paredes vermelhas e móveis brancos iguais aos dele, tentando retirar dali a visão de pelo menos um cacho dos cabelos da vizinha.

Quase caiu da cadeira ao vê-la atravessando o quarto com a cabeça baixa e os cabelos molhados, vestindo uma blusa preta de manga comprida e calças de moletom cinza. Ela massageava os próprios cabelos com uma toalha branca, olhando para Yoko e parecendo sorrir desajeitadamente.

— Muita roupa – Angus resmungou sozinho, franzindo o rosto para aquela imagem desconfortável de Ava. Aquele com certeza não era um look de uma garota californiana, mas fazia totalmente o estilo dela. – Ela não é da Califórnia, Angus, seu idiota, ela é de Ohio.

Parou por alguns instantes, analisando a situação. Se minha mãe entrar aqui, vai ter certeza de que eu sou retardado, ele pensou de boca fechada.

Viu Ava passando os cabelos para trás enquanto mexia em seu próprio celular, fitando a tela com o rosto rígido e naturalmente sério. Ele percebeu o rabo de Yoko rodeando a dona, que pareceu concentrada demais em algo na tela de seu telefone para dar atenção à cadela. Os dedos de Angus continuaram trabalhando nas cordas grossas de Tonkin, tocando notas completamente aleatórias, mas em sintonia e até mesmo sincronizadas, formando uma melodia nunca ouvida pelo garoto, que não notou o que fazia por estar ocupado demais para perceber algo além do que se encontrava no quarto à sua frente.

De repente, a garota voltou seus olhos transparentes para a janela, indo em direção a ela e a abrindo rapidamente. Angus se atrapalhou completamente com Tonkin, derrubando-a no chão e deslizando a cadeira para longe, enquanto quase caía dela.

Que merda! – resmungou em um sussurro ao atingir a prateleira de livros ao lado de seu closet, derrubando algumas enciclopédias e dois volumes de O Guia do Mochileiro das Galáxias.

A porta do quarto se abriu, assustando Angus, que caiu ajoelhado na frente da figura surpreendida do pai. Os dois se entreolharam por alguns instantes, enquanto o rapaz ofegava com o nervosismo causado pela vizinha.

— Algum problema, Gus? – perguntou Benedict sem desviar os olhos da figura ajoelhada do filho.

Angus piscou encabulado.

— Nenhum, senhor. – ele deu algumas risadinhas ansiosas para o pai, que direcionou seu olhar para a janela, erguendo uma sobrancelha.

— Quase foi pego?

— Ela abriu a janela – bufou.

Benedict gargalhou.

— Tá na hora de mexer seus palitos, Angus – o homem de olhos acinzentados e cabelos castanho-claros tentou aconselhar, com a voz baixa e séria o bastante para fazer de Gus ainda mais frustrado. Sua semelhança com o pai era mínima, tendo apenas a cor dos cabelos e o enorme nariz em comum. Até mesmo a altura era da mãe, já que Benedict conseguia ser mais baixo do que um anão de jardim. – Pretende ficar pregado nessa janela até quando? Vá lá e toque a campainha, oras, seja um homem.

Gus virou os olhos negros na direção do pai, encarando-o com indignação.

Você conhece a família dela? – aquela exclamação conseguiu chamar a atenção de Audrey, que caminhava livremente pelo corredor, para a porta do quarto. Ela cruzou os braços, assistindo ao teatro do garoto com um leve sorriso divertido no rosto. – A mãe dela é uma estranha que se esconde, o pai dela tem cara de vilão de histórias em quadrinhos, e os irmãos dela, principalmente o Aidan, conseguem quebrar treze ossos do meu corpo em menos de cinco minutos. Deu pra entender o que eu quis dizer?

Audrey trocou olhares rápidos com Benedict, que balançou a cabeça negativamente. A mãe não culpava o filho, pois sabia o quanto Dakota Bennett parecia ter problemas com aquela vizinhança inteira. A mulher nunca dava o pé na rua em momento algum, nem mesmo para pegar as correspondências da família. Geralmente quem fazia o trabalho era Aaron ou Aidan, já que Dakota também tinha medo de expor Ava àquele ar impregnado de algo que Audrey não conseguia entender o que era.

Na verdade, Audrey e Benedict nunca pararam para ver alguém deixando aquela casa a não ser por Austin Bennett, que entrava e saía regularmente por conta de seus plantões diurnos e noturnos com intervalos de duas horas cada um, os quais o médico usava para voltar para casa. Os garotos Bennett quase nunca estavam no local, o que fazia com que a família Jenkins prestasse pouca atenção neles, apenas sabendo que eles eram jogadores do time da Conrad Ritcher – já que Angus não parava de falar deles um minuto sequer, e de como eram fortes, monstruosos e completamente insanos.

Ava Bennett, então? Ela era a garota que Audrey e Benedict só sabiam que existia por conta da obsessão recorrente do filho sobre ela, o que só conseguia demonstrar o quanto ele era profundamente apaixonado pela moça da casa ao lado, e de como ela era perfeita, gentil, educada, bonita e de tirar o fôlego. E tentavam acreditar nele, mesmo sabendo que Angus nunca havia trocado nem meia palavra com ela.

Dakota Bennett era conhecida na vizinhança como uma mulher nada simpática, fria, e que escondia sua filha mais nova por medo dos estupradores de Beverly Hills – que na verdade, nem existiam, pois não estavam em Beverly Hills. As pessoas, principalmente as donas de casa da Riverside Avenue, viviam conversando sobre o que a loira poderia estar fazendo com a única garota Bennett, e se havia algo mais sério envolvido do que apenas mantê-la para si mesma. Nenhuma das mulheres da rua um dia teve conhecimento do rosto de Ava, nem de sua voz, muito menos de seu cheiro. Alguns dos estudantes da Conrad Ritcher que moravam naquela rua chegavam em suas casas após a aula insistindo no quanto Ava Bennett era diferente dos irmãos, famosos por serem as “raposas mais talentosas de toda Conrad Ritcher.” Diziam que a garota parecia ser completamente perturbada, com roupas três vezes maiores do que seu tamanho, sapatos fechados, além do rosto assustador e mais velho do que o de uma pessoa normal com a idade dela, o que, para as mulheres, era um sinal de que algo não muito bom ocorria dentro daquela família.

— Aquela mulher é um monstro – concluiu Audrey sobre Dakota, fazendo com que Benedict e Angus a encarassem abertamente, não entendendo o que ela quisera dizer naquele instante – Dakota Bennett, ela é um monstro.

— Não sei nada sobre ela – Angus juntou seus joelhos e apoiou as costas na mesa branca de escritório atrás dele.

— Ninguém sabe, querido – respondeu a mãe, encostando-se à soleira da porta logo ao lado de Benedict, que encarava o chão, estando em seu momento pensativo do dia. – Eu não sei como Ava pode ser, e nem sei se um dia nós vamos saber, mas espero que você consiga desvendar isso, Gus, do melhor jeito possível.

— O que você quer dizer? – Benedict virou seu rosto redondo para Audrey, mantendo as sobrancelhas franzidas. Ela ergueu os olhos negros para o teto revestido de madeira por alguns segundos, tentando achar uma forma delicada de falar o que queria falar.

— O que eu quero dizer é que – hesitou por um instante ao encarar o chão, e depois se voltou para Angus. Suspirou alto – Eu não queria que você se metesse com aquela família, querido, mas queria que você salvasse aquela garota. Ela não me parece uma pessoa ruim, na verdade, sei que ela não é, já que você gosta tanto dela.

O filho de Audrey e Benedict franziu as sobrancelhas, quase cobrindo seus próprios olhos pequenos com elas.

— Salvar do que, mãe? – indagou ao olhar diretamente para a bela mulher, que parecia frustrada com a conversa.

— É, Audrey, salvar do quê? – o pai de Angus repetiu a pergunta do filho com um tom de voz debochado, fazendo o mesmo gesto na direção da esposa.

Audrey piscou várias vezes para o chão.

— Daquela casa.

∆∆∆

Angus se revirava em sua cama às duas e meia da madrugada, tendo a insônia como desculpa para dormir na aula de Química Avançada do próximo dia. Ouvia as batidas melancólicas e frenéticas de Sweetest Kill vindas da janela em frente à sua, e mesmo o som não estando tão alto assim para o resto da vizinhança, para ele estava. Conhecia aquela música, adorava aquela música, costumava murmurar aquela música durante as aulas de Espanhol da senhorita González ano passado, e ter que ouvi-la naquele instante, antes de pegar no sono, fazia com que seu estômago se torcesse em um nó. Era uma música bonita, triste e nem um pouco rock n’ roll, mas que Angus tinha em seu celular, e ouvia muitas vezes quando não havia ninguém por perto.

Posicionou-se de frente para o teto, sentindo uma gota de suor percorrer o seu pescoço. Virou o rosto na direção da janela coberta pelas persianas parcialmente fechadas, que eram invadidas pela luz clara vinda do quarto de sua vizinha. Ainda estava intrigado com o que a mãe lhe dissera, tendo a dúvida sobre como aquela casa poderia estar fazendo mal à Ava, e se aquilo era mesmo verdade, ou apenas boatos inventados por gente desocupada.

Mas até que faz sentido, ele pensou, piscando várias vezes para o teto escuro. Levantou seu tronco, encostando-se à grade de sua cama e encarando a janela. A melodia de má qualidade ainda ecoava tanto pelas paredes do quarto de Ava quanto pelas suas, e Gus não tinha medo de admitir que já estava acostumado em passar as noites em claro por conta de Ava, e não porque ficava o tempo inteiro pensando nela, mas sim porque a garota parecia não dormir durante todas as noites da semana, fazendo assim com que ele a acompanhasse em sua insônia caracterizada pelas músicas altas em plena madrugada.

E, obviamente, aquilo fazia com que ele pensasse nela todo o tempo.

Por um momento, Gus pensou ter ouvido a voz da garota junto da música, e aquilo agitou seus sentidos em poucos segundos. Ergueu-se rapidamente, ficando parado enquanto tentava prestar atenção no som à sua volta. Só conseguiu escutar as notas profundas do baixo e a pouca batida vinda da bateria, o que o fez desistir de tentar ouvir algo vindo da boca de Ava, e voltou a se sentar na beira do colchão.

Esticou-se pela cama com facilidade, ligando a luminária em cima do criado-mudo e pegando o caderno de notas na primeira gaveta do móvel branco e marrom-tabaco. Retirou a caneta enfiada nas molas do caderno, abrindo-o e o repousando em cima de seu joelho por alguns segundos.

Inclinou seu tronco para frente, subindo as persianas pela terceira vez naquele dia, e sorriu torto com a visão que tinha da casa 530.

Ava tinha sua janela aberta e atravessava o quarto com passos lentos, mantendo seu rosto voltado para cima, enquanto balançava a cabeça de um lado para o outro, tendo os olhos fechados. Ela acompanhava o ritmo da música, girando pelo quarto como se aqueles movimentos fossem a dose de sono que a manteria em pé no dia seguinte, prestando atenção em todos os oito períodos de aula que compunham seu horário.

A visão que ele tinha de Ava era tão poética e sentimental, que aquilo lhe comprimiu o peito de maneira arrasadora. Como as pessoas conseguiam pensar algo ruim de uma garota como aquela? Como não conseguiam ver o lado humano e sensível daquela menina de olhos transparentes e rosto esbranquiçado? Chamavam-na de antissocial, bruxa, triste e esquisita, quando na verdade Ava era apenas dona de seu próprio mundo e de seu próprio nariz. Um nariz triangular e muito bonitinho, pensou Angus, sem deixar de sorrir por um minuto sequer.

Ele voltou os olhos negros para o caderno de notas repousado em sua coxa direita, engolindo em seco e sentindo uma avalanche de pensamentos e palavras entrelaçadas virem junto de uma melodia tocada por ele no meio daquele mesmo dia.

Caralho, pensou sem querer, erguendo as sobrancelhas para todos aqueles versos que pareciam já terem sido criados antes. Começou a passar aquelas ideias e palavras todas para o papel, escrevendo com tanta ferocidade que conseguiu sentir a caneta se esquentando entre seus dedos finos. Expressões como cheia de alma, sonhadora e solitária foram escritas diversas vezes uma ao lado da outra, fazendo assim com que Angus tivesse noção do que estava prestes a criar.

Deu uma olhadela em direção à janela de Ava, congelando por alguns segundos.

Percebeu-a olhando fixamente em sua direção, se não dizendo para ele próprio. Tinha os lábios finos entreabertos e os olhos marejados pelo fato de não piscar há mais de dois minutos. Os cabelos ressecados estavam jogados para trás, caindo por cima da camiseta larga e branca com os dizeres Conrad Foxes em vermelho e preto.

Angus piscou diversas vezes para ela, sentindo-se ofegante de uma hora para outra. Abrir a janela ou não? Acenar? Gritar o seu nome? Ignorar a sua existência? Xingar o mundo com todos os nomes feios que ainda não foram ditos?

Ao invés de tudo isso, apenas deu um sorriso amarelo e nervoso, que acabou mostrando à Ava o quanto ele fazia força para não vomitar ali mesmo.

A garota continuou petrificada em frente à janela por alguns instantes, imitando Gus, que havia parado de escrever, e apenas a encarava com seus olhos pequenos e negros. Ela apressou o passo até a borda da janela, puxando as cortinas brancas de renda e bloqueando a visão de Angus rapidamente, que afastou seu rosto em um reflexo, sendo pego de surpresa. Ficou olhando para aquela janela coberta pela renda branca por pelo menos cinco minutos, enquanto sentia um amontoado de coisas subir pela sua garganta, desde purê de batatas com ervilhas até versos inteiros.

— Prazer em te conhecer – acabou murmurando em resposta àquele gesto, voltando sua atenção para o bloco de notas e suspirando audivelmente – Meu nome é Angus.


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