Dream - Uma revolução Sem Armas escrita por Tio Peter


Capítulo 1
Entrei pela porta do Paraíso, saí pela do Inferno.




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O despertador tocou á uma da madrugada. Me levantei silenciosamente para não acordar ninguém em casa. Meu pai estava viajando, como sempre. Ele nunca para em casa, então se eu for pego não será um grande problema. Troquei de roupa, peguei o celular de cima cômoda e saí pela janela. Uma mensagem fez o celular vibrar em meu bolso. “Você vem?” Não respondi e continuei a andar calado pela escuridão da noite. Sinceramente não esperava muito daquela festa, para qual provavelmente só me convidaram por eu ser filho do presidente.

Estava tudo tão calmo. Por um bom tempo tudo o que eu ouvia era meus próprio passos e respiração. Nunca havia passado por aquele lugar, meu pai sempre dizia que era uma parte perigosa da cidade, cheia de traficantes e más companhias. Mas não ligava, afinal, era o caminho mais rápido. Após algum tempo percebi o som de um violão tocando em algum lugar próximo. Olhei mais adiante e vi uma luz alaranjada iluminando as paredes de um beco qualquer. Estava frio, tão frio que cheguei a tremer. Me aproximei cautelosamente do beco e espiei de onde vinha o som encostado, na parede. Um homem, aparentemente já no auge de seus 80 anos tocava próximo a um latão em chamas. Suas roupas e aparência esquelética deixavam bem evidente o fato de ser um morador de rua. O som cessa. Temi o fato de ter sido descoberto. O homem voltou sua atenção para mim.

–Aproxime-se, filho. Está com frio? – Sua voz era rouca e fraca.

Saí de trás da parede ficando parado na entrada do beco, observando o velho.

–Venha, se aqueça no fogo! – Ele puxou um caixote e me olhou por alguns segundos. Tempo pelo qual permaneci ainda imóvel. Então voltou a toca seu violão. Talvez fosse impressão minha, mas ele parecia estar com uma expressão triste no rosto. O escuro não me permitiu ter certeza.

Estava prestes a ir embora dali e ignorar o acontecimento, porém, algo me fez ficar. Ao ouvir o som meu corpo se aproximou automaticamente. Me sentei no caixote ao lado do velho observando-o tocar. Quando começou a cantar fiquei completamente maravilhado. Seu timbre era perfeito. Não podia acreditar de que era a mesma voz rouca e fraca de antes.

E ali permaneci, sem perceber o tempo passar. Minutos? Talvez horas. Peguei o celular de meu bolso e quando me toquei já eram 3h. Havia várias mensagens de meu colega de classe perguntando por mim e o porquê de eu não ter comparecido a festa. Me levantei limpando minha calça.

–Eu.. Preciso ir.. – Ao me ouvir o velho parou de tocar. Me virei e fui em direção a rua. Antes que eu saísse do beco o velho chamou minha atenção novamente.

–Sua companhia é agradável. Eu estou aqui todas as noites. Adoraria que viesse mais. – Algo tocou meu coração com aquelas simples palavras. Alguém que mal me conhecia, disse aquilo? Mal conversamos. Talvez o fato de ter um publico tenha deixado o velho feliz.

Ao chegar em casa me joguei na cama e permaneci olhando para o teto. Mensagens faziam meu celular vibrar várias vezes, e eu, como sempre, ignorei. Não sabia o porquê de me sentir atraído por aquele som. E Antes que eu pudesse perceber adormeci. Acordei repentinamente de manhã. Deveriam ser umas 7h. Decidi não ir a escola naquele dia. Vesti o casaco e saí antes que os outros acordassem. O cenário da cidade durante o dia era completamente diferente. Lojas e bares enchiam as ruas. Todas abertas, porém, vazias. Entrei no mesmo beco da noite passada, mas não havia ninguém lá. Aquele beco era o certo? Os caixotes ainda estavam no mesmo local, e algo queimado permanecia dentro de um latão. Lembrei das palavras do velho sobre estar ali todas as noites. Talvez eu devesse voltar mais tarde.

Voltando para casa notei alguns moradores de rua pedindo esmolas nas calçadas. Era estranho. Como eu nunca havia os notado? Ignorei o fato e voltei a andar. Não queria voltar para casa. Permaneci caminhando pelos quarteirões próximos ao beco. Aquele lugar era diferente do que eu estava acostumado. Casas pequenas e algumas até mesmo sem reboco. Janelas quebradas cobertas por tabuas. Cachorros de rua caminhando sem rumo, assim como eu. Pessoas não conversavam. Se esbarravam-se na rua apenas ignoravam e iam embora, como se não tivessem vontade de viver. Como se apenas sobrevivessem. E essa era a realidade. Caminhei até anoitecer e fui até o beco. As lojas já estavam fechadas e a luz das chamas iluminava as paredes. Me aproximei do beco um pouco hesitante, pensei em ir para casa, mas desconsiderei a ideia. Tinha algumas perguntas para fazer á aquele velho . Me aproximei devagar e me sentei ao seu lado. No exato momento ele parou de tocar.

–Pensei que não viria. – Disse ele ainda observando o violão.

–Eu.. Pensei bem e decidi vir. – Suspirei. – Na verdade, tenho algumas perguntas para fazer ao senhor.

–Sinta-se a vontade. – Ele disse com a voz rouca e fraca de sempre.

–Quem é você? E por que eu gosto da sua musica? – Perguntei meio confuso com os fatos.

–Quem sou eu.. Você não precisa saber meu nome, eu sou eu e pronto. Quanto a musica, não é você que gosta dela, é ela que gosta de você. A arte escolhe a quem encantar.

Permaneci em silêncio por alguns segundos, porém algo naquilo ainda não me confortava.

–Se tem tanto talento, por que ainda está aqui ao invés de estar por aí, tocando para ganhar a vida?

–Nós tentamos, garoto. Estamos sempre lá, mas vocês nunca nos veem. O governo cria uma falsa realidade para os mais ricos. Mas somos nós que suamos enquanto vocês dormem calmamente na segurança de seus lares. – O velho disse com amargura na voz.

–Vocês? Vocês quem?

–Nós somos os irritados e desesperados. Os faminto e frios. Somos aqueles que ficam calados e sempre fazemos o que nos é mandado.

Fiquei em silêncio fitando o chão. Então aquela era a realidade por trás das cortinas? Não sabia o que dizer á aquele velho, então não disse nada. Ficamos sem nos falar por um tempo até que ele resolveu puxar assunto novamente.

–Você quer tocar? – Ele estendeu o violão me olhando.

–Eu não sei.. – Respondi meio envergonhado.

–Eu te ensino. – Insistiu ele.

–Ta. Não custa nada tentar. – Peguei o violão das mãos dele. Já havia visto algumas pessoas tocarem, então consegui ao menos segurar o violão da forma correta.

–Primeiro você coloca esse dedo aqui e este aqui.. Em seguida você... – Ele foi me explicando com paciência e aos pouco o som foi saindo. Aquilo era bom. Perceber que algo que deixava os outros felizes vinha da ponta dos meus dedos.

Após algum tempo tocando meu dedos começaram a doer, então parei.

–O que achou? – O velho perguntou sereno, porém com um brilho nos olhos.

–Foi.. Incrível. – Olhei para meus dedos calejados. Eles doíam muito, porém não me arrependi.

–Esse é o poder da arte. Ela encanta as pessoas.

–Eu nunca vi ninguém se encantar por isso como eu me encanto. Por que?

–A arte não escolhe quem não aceita ser escolhido. E infelizmente, a maioria das pessoas não aceita. – Ele me respondeu com um olhar triste.

Olhei o horário no relógio de pulso. – Preciso ir, está ficando tarde.

Me levantei e estendi a mão para o velho, em forma de comprimento. Ele observou minha mão por um tempo, como se estivesse surpreso e em seguida a apertou.

–Obrigado. – Agradeci. – A propósito, me chamo Roberto.

–É um prazer, Roberto. – Ele largou minha mão. – Lembre-se sempre, rapaz, o governo faz da vida uma peça de teatro, onde vocês são os atores, mesmo sem saber. E nós, vivemos atrás das cortinas, em um canto. Um canto onde os atores não veem.

Não respondi e saí do beco pensando nas palavras dele. Ao chegar em casa, mais uma vez permaneci acordado por um tempo, e só ao acordar percebi que havia dormido. Não podia faltar a escola de novo, alguém poderia desconfiar. Eu podia fingir estar doente, mas essa história não os convenceria por muito tempo. Obrigo meu corpo a se levantar e coloco o uniforme, escovo os dentes e por força do habito, quase saio pela janela. Não tomei café, quanto mais pensava, menos fome eu tinha.

Ao chegar no colégio vários vieram me perguntar o porquê da minha falta, e para todos eu dava a mesma resposta. – Eu passei mal, não pude vir.

Dormi nas duas primeiras aulas, e fui para a coordenação, aonde dormi também. Nas aulas que se seguiram não consegui parar de pensar na noite passada. Os professores chamavam minha atenção, mas eu ignorava, ou muitas vezes dava respostas sem sentido.

Cheguei em casa no fim do dia, afinal, eu tinha aula em tempo integral. Fui imediatamente tomar um banho. É incrível a capacidade de que um banho tem de nos fazer refletir sobre tudo. Me troquei, comi. E as 23h saí pela janela.

Essa foi minha rotina pelos dias que se seguiram. O velho me ensinou a tocar violão tão bem quanto ele, mesmo em pouco tempo. Aprendi muito com ele, mas nada sobre ele. E finalmente chegou, o tão esperado domingo, dia de descansar. Dormi praticamente o dia inteiro e saí de casa mais cedo. Pulei a janela e andei pelas ruas da cidade, como havia feito todos os dias, tudo parecia normal. Cheguei antes do velho naquele dia. Esperei por uma meia hora, até que ele chegou.

–Chegou cedo, garoto. – Disse ele surpreso. Eu estava tão distraído com o tédio que levei um leve susto.

Olhei repentinamente para o velho. – Ah.. Sim. Não tive aula hoje, então pude sair de casa mais cedo.

O velho se aproximou e sentou-se ao meu lado. Ainda era claro, mas já era possível ver a lua ao longe. O sol estava se pondo. Tocamos e conversamos até anoitecer. Paramos de tocar, os dois já com os dedos calejados.

–A arte. Essa seria a forma mais efetiva de se protestar. Uma revolução. Uma revolução onde a única arma usada seria a arte. – Disse ele fitando o chão.

–Então por que não fazemos isso? – Me levanto animado. – Vamos protestar usando a nossa arte. Mostrar a verdadeira face do mundo! – Propus a ele.

Ele deu um sorriso torto e me observou. – Estou velho, criança, meu tempo já passou. Agora é a sua vez. – Ele ficou em silêncio por alguns instantes. – A propósito, pegue. – Ele estendeu o violão. – É seu agora.

O ato me deixou extremamente surpreso. Eu não sabia o que dizer. Eu não podia aceitar.

–Não, sem chance, não posso aceitar isso. – Rejeitei o presente.

–Pegue, esse é meu único legado. – Ele permaneceu com o violão estendido.

Suspirei e peguei o violão de suas mãos. – Tudo bem, eu aceito.

–Pode me fazer um favor? - Ele pediu com um sorriso gentil, foi a primeira vez que eu o vi sorrir.

–Claro. – Retribuí o sorriso de forma igual.

–Toque para mim. – Ele olhou para o violão esperando.

–Toco. Mas que musica?

–Qualquer uma, apenas toque. – Respondeu.

Comecei a tocar e cantar a primeira musica que ele me ensinou. No meio da musica o velho disse algo. Algo que dali para frente mudaria minha vida.

–Lembre-se, garoto. A arte é a única coisa que pode trazer paz ao mundo.

Terminei a música e olhei o velho, orgulhoso de mim mesmo. Ele estava de olhos fechados.

–O que achou? – Perguntei esperando uma resposta, mas nada veio. Me aproximei dele. – Ei, acorda. – O balancei, me desesperando aos poucos. – Ah, não não não, não faz isso comigo. – O balancei ainda mais. –Acorda! Não morre agora. – Comecei a tremer e lagrimas começaram a escorrer por meu rosto. – Não.. não.. – Disse já soluçando.

Liguei para os bombeiros chorando, pedindo ajuda. Quando chegaram eu estava agarrado ao corpo do velho, desesperado. O levaram para o hospital, mas não puderam fazer nada. Ele se foi.

Um velho chamado ninguém, que viveu sem ninguém saber, e morreu sem ninguém saber. Que guardou por todos esses anos seu desejo de mudar o mundo, e seu ultimo pedido foi morrer ouvindo alguém fazendo o que ele mais gostava de fazer. E seu único legado, foi um violão velho.


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Notas finais do capítulo

Neste capítulo há trechos da musica "Player Of The Refuge" da banda Rise Against.