Samael escrita por Holden


Capítulo 2
Sob o céu estrelado




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Samael
Capítulo 20: Sob o céu estrelado.

Certamente não fora com surpresa que reagi ás palavras do Titereiro, pois não importava quantas vezes enchiámos nós mesmos com aquela fraca e inocente esperança, eu sempre soube que Arcania seria o nosso túmulo. Ao pensar nisso a fúria silenciosa queimou dentro de mim, não pela morte certa que nos esperava com paciência, e sim pela vingança que me fora negada. Naquele momento meu maior desejo era ir atrás de Marvin, mas não para tirar-lhe a vida (Ressaltando que aquela possibilidade era igualmente encantadora), e sim para jogá-lo em seu próprio jogo, fazer com que ele sentisse o medo absoluto que nos envolvia a cada corredor sombrio.
—Agora -Disse Marvin interrompendo meus pensamentos -Já disse tudo que precisavam saber, deixem este lugar e tranquem a porta ao sair.
Antes que eu pudesse dizer algo inteligente em retórica Annabel me assustou com um ascesso de raiva. Rosnando como um animal ela pegara o monitor, arremessando-o contra o chão para depois jogá-lo bem longe. Ela respirava rápido e com dificuldade, tremendo as mãos. Mas tão repentino como fora o que acabei de descrever Annabel caíu de joelhos, e colocando as mãos no rosto começou a chorar como a garota que era.
Vendo tudo aquilo, o primeiro pensamento que me veio teve relação com as suas imprevisíveis e extremas mudanças de humor e comportamento. Mas devido as atuais circunstâncias percebi que não se tratava daquilo, pois com todas as revelações o "Controle mental" fora finalmente desfeito, e assim como Samael desaparecera da minha mente sem se despedir, os transtornos de comportamente de Annabel também o fizeram, afinal nunca foram reais.
Mas para ser brutalmente sincero não foi apenas isso que mudou em mim. Eu me sentia diferente em todos os aspectos que poderia imaginar, com todas aquelas dolorosas memórias e podres sentimentos desfeitos em um triz, nunca me senti tão leve em toda a minha curta vida. Não havia mais motivo para tanto ódio, ou muito menos para inibir todos os meus sentimentos ou emoções. A palavra "livre" nunca possuiu tanto significado.
Passado algum tempo percebi que Annabel continuaria com seus lamentos indefinidamente, e sem hesitar ou pensar a respeito me aproximei. Abraçando-a por trás eu a reergui com delicadeza, mas ela ainda chorava.
—Calma Anna... Vamos para outro lugar -Disse da maneira mais gentil que pude.
Ela se virou para mim, e quando nos olhamos nos olhos não virei o rosto. Ainda em prantos ela agarrara meu pescoço, ficando na ponta dos pés.
—Você... o único que sobrou -Ela falava com dificuldade e me pressionando contra seu corpo cada vez mais -Por favor, não me deixe só...
Certo, aquilo realmente extrapolou com a minha sensibilidade recém-renovada, fazendo com que uma lágrima solitária caísse no chão. Eu gentilmente pousei minha mão em sua nuca, sentindo seus cabelos macios e curtos, dizendo:
—Não vou.
E foi isso, com apenas estas duas palavras se firmou em mim algo que eu temia, algo que seria totalmente inédito e que existiu somente em minhas falsas lembranças: O sentimento de amizade. A partir daquele momento eu soube que se dependesse de mim nunca deixaria Annabel sozinha. Para o leitor isto deve ser um grande choque, pois acredito que a grande maioria daqueles que acompanharam este relato até agora mantém fresco na mente a imagem de um Samuel diferente, um que antes preferiria ver Annabel morta do que caminhando ao seu lado.
É com grande alegria que digo de uma vez por todas que aquela carcaça já não mais existe. Quando tudo foi revelado uma mudança abrupta se fez em mim, em todas as instâncias. Eu me sentia renovado, como se tivesse nascido novamente. E o mais importante: Não havia mais dor.

Nós não estávamos empenhados em permanecer naquela sala por muito mais tempo, só de olhar para todos aqueles clones me dava calafrios. Então subimos as escadas e retornamos para Arcania, mas desta vez com novos olhos. Tudo estava mudado.
Realmente não havia pressa para nosso encontro com a morte, e a fome gritava cada vez mais alto. Então sem dizer nada, pois estavamos pensando na mesma coisa, arrombamos a porta da sala dos funcionários, nos deparando com certas coisas tão comuns para a maioria dos leitores, mas que para nós eram totalmente inéditas: Um sofá com mesa, bebedouro, armários de metal, e uma máquina de salgados e doces. Quando percebi a existência do último ítem da lista minha boca começou a salivar e meu estômago a se contorcer, pois um banquete como aquele residia apenas em meus sonhos mais belos. E pelo visto Annabel sentia o mesmo.
Não perdemos tempo, quebrando o vidro da máquina, pegamos tudo e jogamos na mesa, e sem demora começamos a comer. Para alguém que na prática nunca saboreou nada além de uma pasta cinza desprovida de qualquer sabor as barrinhas de cereal e os salgadinhos pareciam ser iguarias exóticas. Nós nunca nos sentimos tão bem, nunca na minha curta vida ficara tão feliz com algo tão simples, bebemos água como se fosse vinho e sentimo-nos reis ao saborear tão farta ceia, pelo menos para os nossos parâmetros.
Quando terminamos Annabel tomou o sofá para sí e deitou-se, eu por outro lado estava curioso quanto aos ítens que poderiam estar dentro dos armários, talvez algo útil para nós. Então com o cabo da faca eu começara a bater no cadeado do primeiro armário até que abrisse, quando consegui fiquei desapontado ao descobrir que estava vazio, mas não desistindo da minha busca fiz o mesmo com os outros.
Ao abrir o quarto armário fiquei surpreso ao encontrar uma jaqueta de couro dobrada de qualquer jeito. Ao segurá-la em minha frente percebi o quanto era bonita, e sendo sincero me emocionei um pouco ao notar que estava segurando uma coisa 100% verdadeira em minhas mãos. Lembrei que poderia ter algo nos bolsos, e ao procurar achei um isqueiro e um masso de cigarros.
Parei o que estava fazendo quando notei Annabel, em suas tentativas de pegar no sono ela parecia estar sentindo frio, então eu gentilmente pousei a jaqueta sobre ela.
Apesar de estar mais tranquíla e lívida do que antes minha mente estava em fragalhos. Meus pensamentos corriam soltos como se fossem raios, colidindo uns com os outros, fazendo com que tudo ficasse ainda mais confuso e indecifrável. Minhas mãos só pararam de tremer quando cheguei a metade do primeiro cigarro, de barriga cheia e sentindo os efeitos da droga eu conseguira relaxar. Meus músculos afrouxaram e minha cabeça pendeu na parede.
Eu cochilara com o cigarro ainda aceso, o que me fez praguejar quando queimou minha mão. Eu havia acordado Annabel, que percebera a jaqueta que estava usando como cobertor, ela a segurou e disse:
—Onde você achou isso?
—No armário, junto com isto -Balancei a carteira -Quer um pouco?
Uma de suas sombrancelhas ergueu-se.
—Você era fumante? -Quase que instantâneamente ela percebeu o quanto a pergunta fora mal formulada -Quero dizer... você entendeu.
Eu ri baixo, pela primeira vez sem medo.
—Digamos que eu gostava de escapar as vezes.
Ela deu de ombros, e jogando a jaqueta no sofá sentou-se ao meu lado. Annabel estendeu a mão, quando eu acendi o dela a garota tossiu na primeira tragada.
—Nossa! Por que você fuma essa porcaria? -Ela disse entre uma respiração falha.
—Vai melhorando.
Ficamos ali, calados devido ao silêncio incômodo. Estava me sentindo exausto demais para conversar por muito tempo, mas Annabel parecia estar disposta.
—É quase impossível acreditar em tudo isso -Ela segurava os joelhos com força -Simplismente sua vida inteira é falsa, nunca existiu.
Eu pensei a respeito.
—Você talvez não acredite, mas eu fico muito grato por não ser verdade -Puxei da memória as palavras de Marvin -Quem quer que seja o miserável que "Me encomendou", não foi nem um pouco gentil no processo criativo -Fiz de tudo para minha voz não vacilar -Eu vivia em agonia...
Ela pousou a mão no meu ombro, mas antes que pudesse dizer algo a voz do Titereiro nos causou repulsa.
"Ei vocês, parem de falar sobre essas coisas, não posso transmitir nada se continuarem desse jeito"
Depois de tudo o que aconteceu ele ainda fazia de tudo para nos colocar no jogo. Não deveria ter ficado surpreso ao perceber o quanto Marvin nos dedicou a sua atenção durante a carnificina, sempre seguindo meus passos e testando meu corpo e mente até o limite. Ele arquitetara tudo para que os telespectadores não ficassem entediados.
—Ignore ele -Disse Annabel.
O momento de paz que eu tanto apreciara se desfez quando percebi o olho atento do Titereiro. A câmera de segurança estava paralisada em nós, certificando-se de que nenhum detalhe fosse perdido.
—Quer outro? -Perguntei oferecendo a carteira, ela recusou com a mão.
—Pete sabia... de tudo, do jogo, dos clones... como?
Pensei a respeito, e devo dizer que estava esperando que Marvin respondesse, mas para o meu agrado ele permaneceu em silêncio.
—Se eu tivesse que adivinhar, diria que algo deu errado quando fizeram uma nova versão dele, algum problema no sistema ou coisa do tipo, fazendo com que algumas memórias permanecessem, misturando-se com a loucura do velho.
Ela concordara com relutância.
—Quero perguntar uma coisa a você... as outras personalidades, elas sumiram?
Annabel me encarava confusa.
—Como você sabe?
—Acontece que quando foi revelado tudo, Samael se foi por completo, parecendo até que nunca existiu.
—Isso é muito bom Samuel -Disse ela sorrindo para mim -E respondendo a sua pergunta: Sim, agora sou só eu mesma.
E mais uma vez ficamos calados, tentando não olhar um para o outro.
—Eu queria... -Era difícil de acreditar que eu estava realmente dizendo aquilo -Queria me desculpar, por tudo que eu fiz ou disse.
Aquilo realmente tinha me mudado, apesar de meu chão ter se transformado em fumaça sinto-me extremamente grato por ter acontecido. Pois apesar de tudo nós não éramos mais pessoas quebradas, não sentíamos mais a loucura que antes nos expreitava em todos os cantos escuros.
Annabel ficara embaraçada com o que eu dissera, e devo confessar que não tinha sido facil, mas fiquei feliz por finalmente ter cuspido aquilo fora.
—Eu não... -Ela tentava encontrar as palavras -Você não precisa se desculpar, serio -Ela sorria de maneira forçada -Não vou dizer nunca que as coisas que fiz foram baseadas na razão.
Eu estava muito cansado para aquilo, minha cabeça já estava pendendo na parede, e Annabel recolheu-se para o sofá, usando a jaqueta que achara no armário como cobertor.

Acredito que Marvin não ficou contente ao ver sua preciosa audiência cair, pois quanto menos ação e drama mais os telespectadores desligam seus televisores. Como eu queria ter aliviado minha exaustão, minhas feridas e fraturas ainda doiam com insistência, e meus musculos reclamavam de tanto cansaço. Mas o Titereiro perdeu sua paciência, nos acordando com a sirene perversa de Arcania.
—Vocês não podem ficar mais ai -A voz de Marvin me causava imenso desgosto -Vão logo, adiantem e terminem logo isso.
Chegara a hora, o Titereiro tinha se cansado da nossa enrolação, nos enxotando novamente até o covil da criatura.
Eu me levantara com preguiça, mirei a câmera com o olhar mais vazio e inexpressivo que a situação me oferecia. Bebi água até me cansar e fui chamar Annabel, com a jaqueta por cima do seu rosto não sabia se continuava a dormir, o que era bem improvável. Eu tentei puxar por um dos braços da roupa, fazendo com que notasse a mão cravada no couro, segurando obstinadamente.
Suspirei longamente, quando tirei a jaqueta de cima da garota, percebi que ela estava chorando, tentando esconder-se com as mãos. Com pena eu a segurei no ombro, e tentei falar com gentileza:
—Vamos, não podemos ficar.
Ela fez que sim, enxugando as lágrimas com os braços Annabel já estava de pé. Ela vestira a jaqueta, o que me fez estremecer pois estava me sentindo com um pouco de frio. Notei pelo canto do olho que Annabel estava se revirando, quando ela notou que eu estava olhando falou:
—Tem alguma coisa aqui -Ela tirou, e segurando pela parte das costas a dobrou, ouvi o som do papel -Viu?
Eu fiz que sim, cheguei mais perto e vi algo parecido com uma folha de papel ganhando seus contornos. Annabel pediu-me a faca, com relutância entreguei e vi ela cortando o couro, tirando de dentro um envelope, com algo escrito em vermelho:
"Mostre para a câmera"
Nós nos olhamos sem entender nada. Dentro do envelope havia apenas um papel, com um desenho em preto estranho. Era... um quadrado com padrões que o circundavam. Annabel nem dera-me tempo de perguntar o que era aquilo, aproximou-se da câmera de segurança e disse:
—Titereiro?
—Sim? -Ela queria ter certeza de que estavam nos observando.
Quando ela mostrou o desenho Marvin não respondera de imediato, por alguns segundos todos pararam para saber o que ia acontecer. Foi então que no meio de um praguejo as câmeras morreram, digo isto pois ao invés de ficar nos seguindo sua visão estava apontada para baixo, como se o sistema estivesse desligado.
—Marvin? -Perguntei apurando meus ouvidos.
Nada, estavamos sozinhos pela primeira vez. Annabel olhara para mim, aparentando estar mais confusa do que eu.
Ficamos parados por um tempo, esperando para ver se algo aconteceria. Foi quando eu percebi que o que tinha acontecido servia para a nossa vantagem, pois o Titereiro estava cego e surdo. Foi como um soco no estômago quando percebi que estavamos jogando a oportunidade fora, pois aquilo certamente não seria permanente.
Segurei Annabel pelo braço, e sai da sala dos funcionarios. A garota desvenciliou-se de mim para poder voltar e pegar a jaqueta, enquanto a vestia ela me olhara com uma expressão atrevida.
—Eu posso andar sozinha.
Aquilo me pareceu estranho, fazendo-me perguntar se os nossos dementos haviam nos deixado de fato. Somente o pensamento de que Samael poderia estar apenas adormecido causou-me calafrios, apenas por ter achado me livrar de tal fardo minha esperança fora nutrida, fazendo com que eu ocasionalmente me pegasse fantasiando sobre o mundo do lado de fora. Fiz um esforço para afastar esses pensamentos.
—Nós temos que ir agora, aproveitar a chance! -Disse com pressa, apontando para as câmeras mortas.
Ela compreendeu em um piscar, adotando uma posição diferente, fiquei aliviado graças a cooperação. Não demos nem dez passos quando o chão ameaçou partir-se sob nossos pés. Tremeu como se estivéssemos no epicentro de um terremoto, fiquei surpreso quando notei que a explosão não me deixara atordoado, pois foi tão forte que pude sentir a onda de impacto. Annabel agarrou-se a parede para não perder o equilíbrio, e eu já estava estatelado no chão.
Ás minhas costas ouvi um som ascendente que não sei descrever, mas em poucos segundos descobri o que era: A estrutura um pouco atrás de nós estava ruindo, devido a explosão e a intensidade das chamas, que não tardaram a emergir em fúria. O calor era tão intenso que ardia meu rosto, portanto não fiquei para apreciar a sutil arte da distruição, corri em disparada com Annabel no meu encalço.
Nos detemos ao chegarmos a grade, que desta vez estava completamente erguida. Quando prestei atenção no caminho a frente, fiquei com frio na barriga, sentindo o gosto amargo do medo enquanto olhava para o corredor escuro, pude quase sentir uma brisa balançar meus cabelos. Fui interrompido quando notei Annabel balançando meu braço.
—Ei, acorda!
—O que é?
Ela pareceu não ter compreendido, com hesitação perguntou:
—Que merda foi aquela!? -Berrou apontando para o caminho por onde vimos.
—Foi Bill -Disse tentanto desviar o olhar dos seus restos mortais, Annabel seguiu meus olhos e rapidamente fechou os seus, virando o rosto bruscamente -Quando ele aumentou a temperatura da fornalha ao máximo e quebrou a manivela. Não achei realmente que iria explodir...
Annabel me encarava com seus olhos verde-esmeralda, por um segundo perdi-me em sua beleza. Ocorreu-me o pensamento: "Será que quem a encomendou foi específico a esse ponto?". Ela fechou a cara, cerrando os punhos e trincando os dentes.
—Tomara que queime até a última pedra -Nunca ouvi uma voz tão carregada com raiva.
A princípio alegrei-me com esse pensamento, mas depois a tensão me dominou quando percebi que a partir daquele momento não havia mais volta, não havia mais retirada ou pausa, não havia mais retorno. Arcania queimaria, conosco ainda dentro ou não.
Nós nos olhávamos sem ter absoutamente nada para dizer um ao outro, pois ambos hesitavam a continuar, sentindo o perigo aumentar a cada passo.
—Vamos -Dessa vez foi ela que falou, tomando a dianteira e se agachando para fazer menos barulho.
Para ser sincero senti vontade de protestar, mas percebi que seria totalmente idiota.
Sinceramente, eu já estou de saco cheio. Uma descrição daquele labirinto maldito seria apenas uma repetição, pois não topamos com o Mamute nem ele nos encontrou. Mas se você acha que foi algo simples não poderia estar mais enganado, pois demoramos demais para achar a saída, mesmo que tenha sido apenas 15 minutos a angústia e a adrenalina pareciam ter congelado o tempo. Meus batimentos cardíacos estavam em disparada, fazendo com que Annabel se virasse para mim quando ouviu. Ela fez um sinal com a testa, fazendo-me notar o quanto estava mergulhado em suor, tanto que umedecera minha camisa e pingava do meu nariz e olhos. A garota fez mais sinais com as mãos, perguntando se eu queria descansar, fiz que não. Annabel havia interpretado mal, eu não estava naquele estado por cansaço físico, e sim por medo. Eu nunca disse em palavras diretas, mas o Mamute me aterrorizava, tanto que quando este surgira no nosso último encontro quase me deixou em pânico. E o fato de eu não ser páreo, muito menos Annabel, deixava meu coração pesado como chumbo.
A cada esquina virada e beco sem saída que encontramos nossa tensão foi se tornando insuportável, eu já estava tremendo de nervosismo quando finalmente chegamos ao outro lado. Não tenho nem a mínima idéia de como descrever a maneira como me senti, meus olhos permaneciam arregalados, pois eu não conseguia acreditar. Estava realmente incrédulo para o fato de não termos encontrado o minotauro do labirinto. Annabel chorava.
Ela se virou para mim, seu sorriso era tão radiante e puro que acabou por me contagiar, eu respondi a altura. Em meus pensamentos a pior tempestade não iria invalidar aquele momento como o mais feliz da minha curta vida. Minhas mãos chacoalhavam de excitação, então eu não perdera mais nenhum milésimo esperando, tinha sonhado demais com a liberdade para poder esperar mais.
O universo dera seu xeque-mate quando vi o Mamute sentado, apoiado em uma porta dupla, com o nome "Saída" mais claro que o sol. Assim como a primeira surpresa elevou minhas esperanças até a estratosfera em um instante, a segunda destroçara tudo com a mesma velocidade. Annabel vinha logo atrás, andando de passos leves e rindo baixinho, sua reação não foi diferente.
Demorou uns segundos para que o Mamute nos percebesse, pois o corredor era bastante longo, ladeado por paredes finas de vidro com coisas escritas, que para ser franco não prestei a mínima atenção. O monstro se levantara sem pressa alguma, se espriguiçando como se tivesse dormido por horas. Depois sua atenção focou-se em nós, ele sorria com amabilidade, batendo palmas e levantando as mãos.
—Que bom que chegaram! Estava ficando preocupado com a demora -Ele largara os ombros, mudando totalmente seu tom de voz, fazendo com que meu corpo todo tremesse -E eu detesto esperar.
—Espera! -Disse com aparente desespero na voz -Você não entende, nada disso é real! -Na verdade, eu não tinha idéia de como explicaria isso -Acredite em mim, vimos clones nossos, eles nos fazem para se divertir conosco!
Apontei para as câmeras com o peito arfando.
Não consegui ver muito bem, mas tive a impressão de que o Mamute deu de ombros depois de hesitar por um momento. Ele respondeu sem paciência:
—É bom que você ainda tenha esperança -Abriu seu sorriso de assassino -É um verdadeiro deleite assistir ela desaparecer dos seus olhos.
Pensei o quanto aquela criatura era estranhamente versada nas palavras para sua forma física. Annabel subitamente agarrou a minha camisa, fechando-a com força em seu punho.
—O que...
—Vocês acham que quero matar? -Ele riu -Não, não. Já fiz tanto isso que acabou faltando gente para eu brincar. Vocês são os últimos, pelo que parece, então não vou matá-los, pois assim ficarei muito solitário -Disse rindo e segurando sua virilha -E sempre quis que você fosse minha boneca Annabel, dês da primeira vez que te vi. Dessa vez você não me escapa.
Ela tremia tanto que achei que fosse desmaiar, mas acabou fazendo algo que me surpreendeu. Com muita rapidez tirou a faca do meu bolso, atingindo com muita força o vidro, ele rachou e se partiu. Annabel tirou um pedaço afiado como uma navalha, e o segurou com força, fazendo sua mão sangrar um pouco.
—Nunca -Só para esclarecer aqueles que talvez não tenham entendido, Annabel não pretendia usar aquilo no Mamute.
Mas ele não pareceu se preocupar com aquilo, acredito que não faria tanta diferença para o monstro se o corpo estivesse frio ou quente.
—Não vamos nos demorar, já esperei demais.
O Mamute veio andando em nossa direção, o momento enfim chegara. Eu pegara devolta minha faca com nervosismo, e sem pensar com muita clareza fui em sua direção. Eu não pensava no que estava fazendo, pareceu-me que meu corpo estava apenas reagindo. Mas a cada passo nossa distância diminuia, fazendo com que meu corpo ficasse cada vez mais pesado, até meus braços e pernas se transformassem em pedra. Para a pouca lúcidez que me restara nesse momento, acho estranho ter identificado logo a razão, o medo.
Quando ficamos parados a poucos metros, eu estava curvado segurando a faca com as duas mãos, notei que estava tremendo muito. O Mamute sorriu novamente, mas desta vez era mais perverso, sussurrando em meu ouvido coisas terríveis e vis. Ele sabia que eu não tinha chance, só para fritar meus nervos avançou em minha frente parando abruptamente longe do meu alcance. Devo dizer que cortei o ar em inúmeros pedaços, e graças a tremedeira quase deixei a faca escorregar entre meus dedos, meu coração quase parou por um segundo.
—Ora, não precisa ficar assim.
Sem pensar duas vezes investi em sua direção, o Mamute apenas levantou sua mão antes que eu desferisse um golpe desesperado. E como um covarde recuei vários passos, arfante sem ter feito nenhum esforço. O monstro olhou tranquilo para o sangue escorrendo do corte deixado na palma de sua mão, quase não fora profundo. Ele riu e passou o sangue no rosto, como se estivesse se lavando.
Correu na minha direção sem aviso. Eu não conseguia me mover, por mais que me esforçasse meu corpo não respondia a nenhum comando. Fora como se as mãos daqueles que matei até chegar aqui estivessem me segurando, condenando-me a permancer com eles.
Ficamos a um palmo de distância, e foi apenas ali que entendi o que pretendia. Com suas mãos de gigante ele tentou agarrar meu pescoço, subestimando-me devido ao que via. Não se engane leitor, apesar de nunca ter especificado, eu ficara aterrorizado diversas vezes durante este relato, chegando ao ponto de me encolher como uma criança frágil. Isso até o perigo real iniciar, se chegar as vias de fato meu instinto de sobrevivência injeta gasolina em minhas veias, não foi para tanto que consegui sobreviver ao horror, não obstantes as várias adversidades que tive ao longo de tudo.
Rosnei de raiva, desferindo um golpe reto tendo o estômago daquele animal como alvo. Com rapidez surpreendente ele me bloqueou com uma das mãos, usando a outra para me desferir um golpe lateral na cabeça. Cambaleei para trás e caí, meus olhos não paravam de piscar e a visão estava turva, a força que aquele monstro tinha não era natural.
Consegui forcar a visão ao ponto de poder ver a minha frente. O Mamute segurava seu braço trêmulo, mirando psicótico para sua mão cortada, pois a faca penetrara, e quando recebi o golpe a puxei, levando dois dedos. Eu estava quase conseguindo me levantar quando ele desferiu um chute no meu peito, eu caíra totalmente sem ar, dando claros sinais de que não estava conseguindo respirar. O Mamute me agarrou pelo pescoço, arrastando-me com selvageria até a parede, onde bati a cabeça com muita força. Ele então me reergueu, como se eu nada pesasse, sua mão apertava meu pescoço até não conseguir fechar-se mais. Eu me debatia em loucura, tentando em vão livrar-lhe. Consegui cortar-lhe no braço, ele por segundos deixou de prensar-me a parede, mas seus dedos continuavam cravados em minha garganta. Com sua outra mão danificada ele agarrou a minha, puxando a faca com o que lhe sobrou dos dedos, jogando-a longe.
Os cantos da minha visão já estavam escurecendo quando ele me largara, recuando alguns passos e segurando incrédulo o fragmento de vidro fincado firme em seu ombro. Annabel me salvara, mas em troca atraiu a atenção do Mamute.
Eu estava tentando recuperar o fôlego, meu pescoço estava em chamas graças ao aperto. Todo o meu corpo doía como se tivessem cacos de vidro em seu interior, os golpes que levei foram severos demais para que eu conseguisse ficar de pé.
O Mamute arrancou em gritos o vidro, ele o largou e avançou na garota, dando-lhe um soco na barriga e no rosto, fazendo-a cair como uma boneca sem vida.
Acabei por desmaiar quando minha visão escureceu, por um segundo senti todas as minhas forças me abandonarem. Meu rosto bateu de encontro com o chão.

Em um piscar de olhos, só havia um silêncio. Tudo a minha volta e além havia sido coberto pela mais espessa sombra, tudo era frágil e intangível como fumaça, e pude sentir a fluídez de tudo. Meu corpo era a única coisa ali, de repente senti-me oprimido pela imensa escuridão, o que antes me fora cortês virou sua face, jogando meu corpo ao chão com violência. Era como se toneladas e toneladas de pesos fossem derrubados sobre mim, não conseguia mover nem um fio de cabelo.
Ouvi um barulho, passos, depois uma presença muito próxima, e então um leve toque em meu ombro, parecia ser um amigo. Quando a mão se afastou todas aquelas coisas nefastas que antes me faziam mal desapareceram, permitindo que eu levantasse e visse quem era.
Foi como me olhar em um espelho, exceto pelos olhos. Os dele eram tão vermelhos que pareciam brilhar.
—Pode ser terrível para quem não está acostumado -Disse com casualidade , indicando com o braço tudo ao redor.
Eu estava pasmo, era tão real quanto um sonho.
—Você...
Ele sorriu de um jeito que me irritou. Quando a compreensão me iluminou, velhos sentimentos ressurgiram das cinzas, queimando dentro de mim como uma supernova. Aquele ódio que antes envenenara minha alma retornara.
Mas foi então que recobrei a razão, nada era real.
—É... isso é estranho para mim também -Samael disse antes que eu pudesse pensar mais -Sei como se sente.
—Mas como? Achei que...
—Eu sumiria assim tão fácil -Ele fez um gesto exagerado de drama, era muito esquisito me ver agindo daquela forma -Não me diminúa ao nível de uma simples doença mental.
Ele apontou para a sua cabeça, sorrindo.
—Eu sou parte de você.
Eu não tinha idéia do que dizer, depois de tantos anos falsos nutrindo ódio por Samael ele estava na minha frente. Mas não nos víamos como inimigos, apenas duas vítimas.
—Mas acontece que você tem os holofotes -Sua voz era puro deboche.
Foi então que me recordei do que estava acontecendo do lado de fora, a agitação me inundou.
—Me traga de volta! Annabel...
—Sim!! -Samael me interrompera sem raiva na voz -Eu te mando de volta, eai? Você vai morrer primeiro que ela, e por consequência eu também vou junto.Você já teve a sua vez Samuel, e falhou. Comigo nós temos uma chance.
—Oque!? Deve estar louco de me pedir uma coisa dessa -Interrompi-me quando percebi o que estava dizendo.
Samael me dera seu mais largo sorriso.
—Exatamente, nunca lhe fiz nenhum mal, nem você a mim.
Ele tinha toda a razão, mas a idéia para mim era o maior absurdo, mesmo não sabendo o por quê.
—Tic-Tac, o relógio não espera ninguém. Vamos logo!
—Como eu posso confiar em você?
—Não pode, mas eu sou sua única opção. Se não fizermos a inversão você e ela já eram. Sem mim você não tem ninguém.
Eu não confiaria em Samael nem que fosse fingimento, mas como ele pontuou muito bem, eu não tinha escolha. Era isso ou tudo acabado.
Hesitando e com muita relutância ergui o braço e abri a mão, ele fez o mesmo e nos tocamos.
—Te vejo do outro lado Sammy.
—Não machuque a Annabel Samma -Resolvi mudar o tom de voz -Não o faça.
Ele me olhou incrédulo e riu, sua resposta veio quando tudo voltou ao nada:
—Claro que não, ela é nossa amiga -Seu sorriso era de vidro.

Senti toda a escuridão envolver-me em seu manto, com graciosidade meu corpo ficou de pé. Espreguicei-me e estendi os braços, só para aproveitar o espaço.
O rosto de Annabel já estava totalmente inchado, pois o Mamute, usando a dose certa de força, estava a espancando. Em troco de nada, apenas perversidade.
Sem prestar atenção em mim ele a jogara no chão, começou a tirar suas calças quando eu assobiei.
—Acho que nós não fomos apresentados ainda meu caro -Fiz uma reverência exagerada -Prazer.
Por alguns segundos ele pôde ter achado que eu perdera a razão, mas então a compreensão inundou seu rosto sádico.
—Você -Ele passou por cima dela, andando calmamente em minha direção -Achei que não ia aparecer.
Dei um risinho.
—Eu quis dar uma chance ao meu garoto -Toquei minhas partes que estavam mais danificadas -Mas ele me decepcionou, triste.
—Esperava que nós tivéssemos nosso momento -Disse enquanto estalava os dedos.
Fiz questão que minha gargalhada fosse a mais insana e perturbadora possível, fazendo com que o Mamute parasse e hesitasse. Levantei um pouco meus ombros, curvei-me e levantei os braços, fingindo que ria só para mim mesmo, fazendo meu corpo todo tremer. O que posso fazer? Sou um ator até meu cerne.
—Também acho -Curvei-me mais, pronto para saltar -Seu dia chegou.
Pulei em sua direção, cravando minhas longas unhas em seu pescoço. Tentei jogar-lhe no chão, mas nossos pesos eram totalmente desproporcionais, o que quer dizer que o Mamute não teve nenhuma dificuldade para me agarrar pel cintura e lançar-me na parede. O impacto fora violento e eu caíra estatelado no chão.
Fazendo o mesmo movimento de antes ele correra em minha direção, tentando chutar meu rosto antes que eu pudesse ter tempo de me recuperar. Aquele animal deve ter achado que eu era parecido com Samuel, terrível engano.
Rolei para o lado no momento certo em que ele esticara a perna, enquanto ele estava sem equilíbrio chutei seu pé esquerdo. A montanha desabou com um estrondo, e com rapidez assombrosa segurei sua cabeça, eu a joguei no chão com toda a minha força, umas quatro vezes até o Mamute se livrar. Ele se levantara zonzo e quase não conseguia ficar de pé.
—Estou decepcionado, pelo menos faça disso um desafio -Disse com meu sorriso mais sincero.
A fúria reacendeu-lhe as forças, num instante ele disparou com os braços erguidos, me envolvendo em um abraço de urso. O Mamute comprimia tanto meu corpo que senti minhas pernas esfriarem, ele era muito forte para não conseguir matar-me com seus braços. Senti um pouco de sangue na boca, ele estava quase partindo meus ossos, precisava pensar senão tudo acabaria ali, com a minha falha. Não havia nenhuma possibilidade de terminar assim, com todas as forças que meu corpo agonizante me proveu, livrei meu braço esquerdo. O sorriso do Mamute se desfez no segundo em que meu dedo perfurou seu olho (Técnica que já se mostrara muito eficaz). O animal me libertou, caindo para trás e gritando a perda da metade de sua visão. Usei esse tempo para me preparar, com um certo esforço fiquei de pé, respirando com rapidez e tremendo. Não era por causa da dor, nem de longe, aquela coisa me pressionara tanto que o meu corpo ainda não havia se recuperado.
Lembrando o que Annabel fez desferi um golpe reto na parede de vidro, meu punho atravessou, fazendo minha mão vermelha. Retirei os cacos com paciência, atento a música que era os gritos do Mamute. Escolhi um bom estilhaço, muito similar a uma faca de cozinha, segurei-o com força.
—Venha aqui, venha. Não precisa ter medo -Minha voz era um mel.
Ficando de joelhos o Mamute investiu em minha direção, eu escondera o estilhaço atrás das minhas roupas, para que ele viesse sem hesitar. E foi o que fez, ignorando meus braços ele agarrara meu pescoço com as duas mãos, fui rápido o suficiente para que ele não o que quebrasse, mirando no tendão do seu braço esquerdo desferi um corte profundo, no mesmo instante metade do aperto aliviou. Ele me olhava horrorizado, e eu sorria com muita diversão, e antes que ele pudesse recuar, esfaqueei seu estômago, fazendo a faca rasgar para o lado quando saiu, abrindo sua barriga.
O Mamute gritou como uma menininha, tombando para trás e se afogando em seu sangue e respiração arfante. Deixei o estilhaço cair entre meus dedos e me agachei, fiquei olhando o animal nos olhos. Pude compreender tudo o que sentiu, o medo estampado em seus olhos, a incredulidade em sua expressão, e o frio que fazia sua boca tremer.
Com delicadeza eu pousei minha mão em sua testa, e disse com a voz macia:
—Eu lhe concedo a passagem -No final o Mamute não passou de mais uma vítima, igual a todas as anteriores: Fraca e com medo.
E antes de seguir com isso, gostaria de dizer que não pude resistir a ânsia de fazer mais mal ao corpo. Pois mesmo morto a raiva que eu tinha por aquela coisa ainda me inflamava o interior. Não vou dar nenhum detalhe sangrento, mas me certifiquei de que quem quer que o achasse não conseguisse olhar diretamente para o que sobrou.

Annabel estava caída, parecia não lhe ter sobrado muita vida nela. A cutuquei com o pé, sem reação. Cheguei mais perto para balançar seu ombros, nada. Perdi a paciência e comecei a dar-lhe uns tapas no rosto, até que ela acordou.
Atônita demais para reagir de maneira diferente ela gritou e me chutou, tentando a todo custo ficar de pé e saber o que estava acontecendo. A primeira coisa que conseguir focar seu olhar fora a minha pessoa, seus ombros relaxaram e a garota olhou mais além, vendo que só nós dois ainda estávamos de pé.
Ela caíra de joelhos, chorando compulsivamente. Tentei ser paciente, mas ela não parava, então cheguei mais perto e disse com calma.
—Vamos logo, nós não podemos ficar, eu... -Não consegui terminar pois ela me envolvera em seu abraço, chorando no meu ombro. Annabel tentava dizer alguma coisa mas simplismente não conseguia, descobri que ela estava tentando me agradecer.
—Me solta! -Disse empurrando-a com meus braços, Annabel olhou para mim sem entender, ainda gaguejando com as palavras, eu falei primeiro -Acho que você está me confundido com outra pessoa, deixei meu sorriso venenoso correr livre pelo meu rosto.
Ela arregalara os olhos, começou a tremer mais ainda.
—Não... -Seu olhar foi mais uma vez para o que sobrou do Mamute, parecendo ver só naquele momento o estado do corpo -Não! Por favor!
Ela tentava ficar de pé, mas o seu medo não permitia.
Pare com isso Samael.
Tomei um susto, tinha me esquecido completamente dele. Lembrando das suas palavras resolvi não avançar mais.
—Eu só queria me divertir um pouco -Minha voz era de um exagero teatral -Adeus querida, nos vemos depois.
Desmaiei ao sentir o efeito da inversão sugar-me novamente para minha prisão. Mas devo dizer que desta vez fui levado embora com um grande sorriso no rosto.

Acordei sentindo meu corpo inteiro dolorido. Velhas feridas pareciam ter se abrido e os golpes que eu levara por último queimavam como brasa. Eu tive a oportunidade de me olhar no espelho uma vez, a situação não era nada menos do que deplorável, julguei que não havia maneira de eu ficar ainda mais machucado. Levando em conta meu combate com o monstro, julguei mal.
Tentei me levantar, senti dores imensas nas costelas e articulações. Tive medo de me mexer mais ainda, temendo que algo que estivesse por um fio se partisse em meu interior. Arquejei por alguns momentos, reclamando de minhas dores, mas ao mesmo tempo rindo por dentro, pois eu sobrevivera a algo que ninguém conseguira. Eu e Annabel seríamos os primeiros a ganhar o jogo de Arcania.
Annabel!
Minha mente gritou para mim, lembrando-me que eu não estava sozinho. Sem esforço abri meus olhos, corri-os pelos lados até achá-la. A garota mantinha distância, é claro, ainda assustada com o que aconteceu antes.
—Meus olhos Anna, veja meus olhos -Minha voz saíra rouca, quase inaldível.
Ela criou coragem para chegar mais perto, quando pôde prestar mais atenção em mim seus ombros relaxaram, e ouvi um longo suspiro.
—Que bom! -Metade do seu rosto era um tom preocupante de roxo -Ficaria louca se fosse o outro.
Assim como a minha, a mente de Annabel estava em fragalhos. Estávamos completamente além da exaustão física e mental, estávamos cobertos por machucados e sangue, e já estava sentindo a fome e a sede me puxarem pela pele. Resumindo, já havíamos sangrado demais por Arcania, se tivéssemos que permanecer naquele maldito mausoléu por mais um minuto não conseguiria mais manter o que sobrou da minha lucidez.
Com muita dificuldade consegui me ficar de pé, Annabel ofereceu seu apoio mas recusei prontamente. Se eu fosse ser livre, seria pela força das minhas próprias pernas, pode chamar de orgulho se quiser.
Com um pouco de pressa no coração caminhamos pela última vez o corredor. Paramos diante da porta dupla, meus batimentos estavam acelerados, e percebi que Annabel mal conseguia controlar sua excitação. Apesar de não ter idéia do que estava do outro lado, pensamentos negativos não passaram por mim. Simplismente não havia mas espaço para isso, aquela era a hora, deveria ser. Caso não fosse, deixaria o mundo dos vivos sem nenhum arrependimento ou cerimônia,
—Ora, vamos! -Disse Annabel com impaciência.
Ela abrira as portas sem drama. A luz do luar inundou tudo, e quando o vento nos acariciou senti minha alma ser limpa de toda lama e podridão que havia acumulado. Senti o gosto da liberdade inundar-me a boca, era a experiência mais maravilhosa que eu poderia ter. Ergui meu olhar e vi as estrelas pela primeira vez, fiquei espantado com a sua beleza e seus números, como uma criança tentei contá-las, ficando extremamente feliz de não ter conseguido. Antes que eu notasse meus olhos estavam cheios de lágrimas. Levantei meus braços para vivenciar com mais vigor toda aquela imensidão.
Só depois de muito tempo prestei atenção no que Annabel estava fazendo. A garota permanecia estática, como se a emoção de estar enfim do lado de fora não a comovesse. Cutuquei-a, perguntando o que tinha de errado. Ela não me respondeu, apenas apontou para o que tinha na nossa frente. Eu tão embasbacado com tudo a minha volta não prestei atenção para o último desafio que o universo em impora. Ao longe pude ver os imensos prédios de uma grande metrópole, suas luzes eram tão intensas que fiquei surpreso por não tê-las notado antes, pois estas foram ofuscadas pelas estrelas. Mas não era esse o problema, e sim a imensidão de águas profundas que ficava entre nós, calculei que deveria ser uns oito quilômetros até a cidade.
Fiquei um pouco preocupado com isto, mas confesso que naquele momento meu ânimo era inabalável.
—Como vamos atravessar? -Perguntou Annabel, como se não soubesse a resposta.
Eu a encarei e fiz um esforço para abrir um sorriso sincero.
—Nadando, não tem jeito.
Lágrimas que não eram de alegria como as minhas desceram pelo seu rosto, por um momento ela aparentou ser a garota que era.
—E nós vamos conseguir? -Sua voz era puro medo e insegurança.
Pensei um pouco a respeito, levando em conta todas as nossas desvantagens, e rapidamente cheguei em uma resposta.
—Não sei -Senti-me um pouco culpado, então resolvi ser sincero -Provavelmente não.
Eu não estava com a mínima disposição para ater-me em pensamentos mórbidos, nem assistir a tristeza de Annabel até me contagiar. Resolvi explorar um pouco o local a nossa volta, não indo muito longe pude ver praticamente tudo: Um píer de tamanho considerável também servia de plataforma, que era o único acesso a Arcania, pois em ambos os lados da praia estreita haviam cercas de quase cinco metros. Ainda em terra firme avistei um pequeno posto de vigia, adentrei e fiquei muito aliviado quando vi que estava vazio, chamei Annabel com a mão.
Estava tudo tão tranquilo, tão silencioso naquele lugar, tanto que a única coisa que se podia ouvir era o barulho das ondas pequeninas se arrebentando na areia.
O cômodo não era nada demais, apenas uma escrivaninha pequena com algo que presumi que fosse um computador, um sofá, um pequeno armário e uma máquina de café.
—O que foi!? Achou alguma coisa? -Disse ela enquanto adentrava, ficando visivelmente desapontada.
—Não, mas é bom dormirmos um pouco. Se formos nesse estado -Fiz sinal para nossas manchas de pancadas -Não iríamos muito longe. Trate de descansar.
Ela discutiu comigo por uns minutos, relutante em baixar a guarda ou por algum temor que eu aproveitasse a chance para deixá-la sozinha. Perguntou onde eu dormiria, já que o sofá só tinha espaço para um. Eu a tranquilizei dizendo que trocaria com ela quando cansasse de dormir no chão.
Depois de muito discordar ela aceitou meus termos, admitindo o quanto estava cansada ela deitou no sofá, caindo em um sono pesado quase instantâneamente. Annabel parecia tão pacífica que senti vontade de afastar seu cabelo do rosto, parei o movimento na metade, contendo minha estranheza.
Eu saí para mais uma vez saborear o ar fresco, era o maior deleite. Foi então que me dei conta de que não havia olhado para trás, Arcania por um momento fora totalmente esquecida pela minha mente. Observando-a do lado de fora notei o quão pouco ameaçadora parecia, totalmente longe da imagem que eu formulara diversas vezes. O imenso prédio branco sem janelas e horizontal parecia ser qualquer outra coisa, muito menos um hospício terrível destinado a obrigar a pior espécie e quem não tivesse dinheiro. Perdi-me diversas vezes em minhas divagações até notar a grossa fumaça preta que ascendia aos céus, quase rezei para que Marvin fosse pêgo pelas chamas, mas sabia que aquela possibilidade era muito remota.
Voltei para o posto de vigia, onde Annabel permanecia em seus sonhos, torci para que não fossem pesadelos. A idéia de dormir me veio, mas prontamente a descartei, ciente de que com meu estado eufórico não conseguiria pregar o olho.
Sem ter o que fazer sentei-me para usar o computador. Com um pouco de dificuldade consegui ter acesso, mas me desapontei logo em seguida quando vi que não havia conexão com a internet. Seria fácil demais se eu mandasse um sinal de socorro. Arriei minha cadeira.
Escreva Samuel. Escreva tudo o que aconteceu aqui, faça com que eles sintam a nossa dor.
Levei um susto com o sussurro venenoso. Fiquei triste e sem expecativas ao mesmo tempo, pois mesmo fora de Arcania eu ainda não era totalmente livre. Ainda estava preso a Samael, que por outro lado nunca me prejudicara.
O que te impede? Deixei de ser preguicoso e o faça! Ainda temos muito tempo até o amanhecer.
—Você só esta insistindo porque quer escrever as suas partes da história -Disse o mais baixo possível.
Ora, até que você me conhece bem.
Parecia que ele estava fazendo troça de mim, mas por alguma razão maluca que não consegui identificar resolvi tentar. Confesso que depois de duas ou três páginas peguei muito gosto pela coisa, pois não era um espaço para simplismente relatar tudo o que aconteceu, ia muito além disso. Eu poderia despejar todo o esgoto naquelas páginas, todo o meu ódio e pensamentos nefastos poderiam ser enfim descarregados em um espaço que não estava aberto para críticas ou bocas tortas.
Apesar de ter sido difícil e trabalhoso escrever tudo de uma vez, não me arrependi nem um pocuo de tê-lo feito. Pois me fez perceber muitas coisas, além de ter sido extremamente terapêutico para minha mente destruída.


Epílogo.

Seria nessa seção em que as palavras finais se encaixariam, mas antes de chegarmos a elas permita-me contar o último pedaço:
Lá pelo décimo quinto capítulo Annabel acordou. Eu estava tão submerso em minha escrita que nem notei quando me chamara. Ficando do meu lado ela começou a ler o que tinha na tela, rapidamente cobri-a com as mãos.
—Ainda não está pronto -Expliquei para Annabel o que estava fazendo, ela pareceu ficar contente por eu o estar fazendo.
—E eu vou poder ler quando ficar?
Suei frio quando ela me perguntou aquilo, ciente das partes delicadas em que ela recebia o holofote na história. Algumas ela não deveria saber nunca.
Fiquei mais relaxado quando estendi o pescoço para olhar o céu, já estava perto de amanhecer.
—Infelizmente não, quando amanhecer já estaremos longe.
—Hmm -Ela acreditara na minha desculpa -E quanto falta para terminar?
Fiz meus cálculos, se eu não enrolasse muito com minhas divagações sobre a vida conseguiria terminar a tempo.
—Não muito -Voltei-me para o texto -Deixe-me terminar, sim?
E voltei minhas atenções para o livro. Escrevi furiosamente, passando por momentos em que realmente não gostaria de me recordar. Sem que ela percebesse troquei com Samael, que não falara nem fizera nada. Pelo visto o relato era muito importante para ele, devido a atenção que lhe foi dada e a rapidez com que escrevia, como se estivesse olhando constantemente para um relógio, com medo de que faltasse tempo.
Já no último capítulo Annabel atraíra minha atenção novamente. Ela segurava um pedaço de papel rabiscado com caneta, não faço a menor idéia de onde arranjou ambos.
—Quero que você coloque isso no final -Ela sorria como criança -Considere como minha marca.
A poesia era bastante boa, me surpreendendo até. Mas...
—Não acho que encaixe bem -Disse devolvendo-lhe, ela não fez nem mensão de aceitar.
—Claro que se encaixa, tem tudo a ver! -Num segundo sua expressão e atitude mudaram, mostrando os resquícios de sua demência -Você vai colocar.
Ficou explícito que aquilo nem de longe era um pedido. Pensei em insistir, mas então me dei conta de que não fazia diferença nenhuma, não era como se algo daquele tipo pudesse ser publicado.

Caro leitor, sabe por que tive tanto trabalho para escrever tudo o que acontecera? Permita-lhe responder: Para não ser esquecido. Eu, assim como Annabel, sabia que não conseguíriamos atravessar, nem que estivéssemos totalmente descansados. É simplismente impossivel de ser feito, longe demais para conseguirmos.
Mas não fique triste por nós, de jeito nenhum. Conseguimos nossa liberdade, apesar dos apesares livres fomos. O sol já nasceu e Annabel me olha com impaciência, então não vou me demorar mais do que o necessário. Obrigado por ter lido tudo até aqui, obriado por ter me dado a chance de contar a minha história, obrigado por se lembrar tanto daqueles que conseguiram escapar quanto dos que pereceram ao longo do caminho. Obrigado por ouvir o que eu tinha a dizer.
E como estou meio sem jeito para despedidas, permita-me que outra pessoa diga adeus por nós dois:
A Chuva.
Por Annabel.
Caindo dos céus em falsa graciosidade, desfaz-se em meu rosto em inúmeros pedaços. Infligindo suas influências até o poço onde minha alma dorme, sinto-me solitário, buscando em todas as direções com desespero o algo que me escapa, resumindo-me a suas meras migalhas, um fantasma. Ao ver na escuridão o silêncio, enfim sinto-me em paz, cada segundo que deste mundo possuo nunca poderá ser detalhado, apenas sentido ao fechar-te os olhos na solidão, ouvindo apenas o rugir dos ventos e o balançar das folhas. Temo ascender deste subsolo, hesito ao sentir a chuva cortando minha pele como mil navalhas, gritando, ordenando a minha retirada triunfal, mas breve. O frio que antes me parecera tão ser sutil e galante, apunhala-me incansavelmente nas costas, onde meus ferimentos ainda gangrenam, suplicando pela ajuda que não virá. O êxtase que sinto na ponta dos dedos logo se tornará pacífico, levando consigo tudo de cor que sobrou, e deixando-me somente com o podre, que agarra meus braços e pernas com selvageria, oprimindo-me ao chão para depois me afogar na lama. Neste oceano sem fim, a imensidão do escuro é bela, pois sem dor e remorso navego por estas águas, olhando tímido para as estrelas que preenchem o teto.


Fim.


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Notas finais do capítulo

Não consigo nem explicar a felicidade que sinto ao enfim terminar meu livro, espero que todos tenham gostado bastante. O próximo passo será revisar e depois tentar a pubicação, agradeço de coração a todos os que leram e opinaram. Mas tenho um último pedido a fazer, humildemente peço a todos que acompanham estas palavras: Divulguem meu trabalho. Mostrem a amigos que poderiam se interessar, recomendem ou apenas falem sobre, pois ajudaria muito quando eu for tentar publicar.

Agradecendo mil vezes, Vicente.



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