Simetria escrita por Helena de Sá


Capítulo 2
Principiar


Notas iniciais do capítulo

Olá, queridos!

Sim, quase um mês sem fic, mas um capítulo bem longo, conforme prometi a vocês. Uma pequena observação: eu disse no prólogo que Simetria teria seis capítulos, mas eu fiz diversas mudanças de planejamento e divisão, logo teremos um número maior que isso. Os anjos cantam!

Nesse cap, há a apresentação dos conflitos iniciais que vão impulsionar toda a história de Davi e Megan. Eles realmente não irão demorar pra se conhecer, podem ficar tranquilos! Por enquanto, vamos observando como eles funcionam individualmente.

Vocês irão perceber que os personagens periféricos sofreram várias mudanças em relação a GB. O Mosca, por exemplo, será como o que foi divulgado nas primeiras notinhas da novela: interpretado pelo João Cortes, logo é ruivo, e um comediante em ascensão. Importante: O Matias NÃO existe em Simetria. Davi aqui é filho único.

No próximo capítulo, outros personagens terão suas primeiras aparições, como Pamela, os Marra da Taquara e Luene.

Obrigada a todos que comentaram, favoritaram e acompanharam a fic no prólogo. Reviews são sempre bem vindas, adoro ler as opiniões de vocês. :D

Agora sim vou calar a boca, aproveitem esse cap!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/506847/chapter/2

///

Tô cansado de trabalhar

Tô cansado de me ferrar

Tô cansado de me cansar

///

“Davi Reis,” chamou o professor.

Ao fundo da sala de aula, levantou-se um jovem. Grande notícia, certo? Avaliações são feitas todos os dias, provas são corrigidas todos os dias, chamadas são ecoadas todos os dias, todos os dias tudo e nada se reinventam e ganham vida e tornam ao estado fundamental de pó.

Enfim, avaliações e provas e chamadas são feitas todos os dias. Uma teoria metafísica não é necessária à explicação disto. Jovens estudantes também se levantam de suas humildes carteiras a cada instante, quase como sua própria condição de existência. O que poderia haver de demais nessa cena? Davi em nada era excepcional; na verdade, considerava-se um ser bem medíocre, e não era o único a pensar assim. O que se esperaria, então? O trajeto simples, de certo: andar até a mesa, assinar a lista, pegar a prova, zombar um colega. E era isto que iria fazer, nada menos tampouco mais.

Caminhou na postura usual, ombros um pouco curvados, olhar focado no piso, uma mão coçando a barba por fazer – ah, tinha de raspar a barba, não podia se apresentar em sociedade parecendo um selvagem.

“É muito feio andar barbudo por aí, dá um ar de desleixo,” dissera a mãe durante a puberdade dele, quando esses pelos espetados começaram a arranhar seus dedos. Davi não concordava muito com tal afirmação; tinha um certo fascínio pelo fato de estar crescendo, especialmente pois fora um dos primeiros da roda de garotos a desenvolver essas características. Finalmente, seria primeiro em algo. Mal podia acreditar! Talvez não se transformasse em um completo fracasso, conforme sempre imaginara. Talvez não desse seu primeiro beijo de língua aos trinta. Pontos para seus genes!

No entanto, a mãe puxou-o para o banheiro dia qualquer e lambuzou seu rosto de creme. Ele lutou, ele tremeu, e no final lá estava, um perfeito idiota de rosto lisinho e cara de criança. Nunca admitira isto, mas lamentaria eternamente ter sido sua mãe a primeira pessoa a barbear seu rosto, e não ele próprio. Não que fizesse grande diferença. Não que alguém se importasse. Bem, ao mínimo beijara bem antes dos trinta.

Não sabia ao certo porque divagava tantas milhas; acreditava ser produto de processos mentais muito ágeis, os quais não apontavam exatamente um grau de genialidade, mas sim dom para ser soterrado por pilhas e pilhas de ideias inúteis. Fosse sua mente uma biblioteca, os livros estariam largados pelo chão, debruçados uns sobre os outros ou escondidos no estofo do sofá. De meses em meses, esforçava-se para por as obras novamente nas devidas prateleiras, e apenas ele sabia o quão facilmente esses momentos de organização podiam tornar-se o maior dos caos. Retirar o pó dos exemplares, verificar-lhes o gênero e o ano, agrupá-los de acordo na estante; labuta, trabalho, muita dor demais.

Enfim, pois bem, a nota, sim, a nota da prova. Encarou o Solano, vulgo “professor”. Tomou o papel de suas mãos cor de vômito e registrou a assinatura. Davi Reis. Simples, não? Da-vi Reis. Era um homem de três sílabas. Refletia se o nome do meio fora comido no cartório ou se simplesmente ninguém tivera disposição para inventar. Tendia a acreditar na segunda opção.

“Parabéns, Davi,” veio a voz do mestre. Isto era sério? Os dois sempre se odiaram desde o início do período, e agora ele o congratulava por seu desempenho acadêmico? Fraquejou. Algo estava errado.

Solano entregou-lhe a derradeira folha, sorriso sardônico a deformar suas feições já muito feias. Algo estava errado.

Davi analisou a prova com mãos trêmulas.

Zero. Algo estava muito errado.

“Como você já sabe, esse é o meu último semestre de trabalho,” prosseguiu o educador. “Te dou parabéns porque no período seguinte você vai poder rever Cálculo sem mim. Imagino que será o paraíso pra você.”

Não. Conseguia. Processar.

O coração bateu em descompasso. Um, dois, três segundos, uma, duas, três pulsações, uma, duas, três respirações, não iria aguentar, não estava aguentando, suava e tremia e convulsionava, não iria aguentar, não estava aguentando...

Puxou Solano pelas vestes, erguendo-o da cadeira à força até que seus olhos brigassem na mesma altura.

Quem diria, Davi?

Espumou à face do carrasco. Este merecia a mácula. Merecia o sofrimento. Merecia guinchar de dor nas mãos de quem sempre subjugara.

Quem diria, Davi?

Sentiu que chegara a uma bifurcação em sua jornada, e aquele exato segundo decidiria o sentido a tomar. Matutou consigo. Talvez ainda não estivesse preparado para tamanho passo.

“Nem pra me bater você tem capacidade, hein, moleque?” grunhiu Solano. “Tenho pena de você.”

Tomou um murro tão forte que tombou sobre a mesa. Outro. Mais outro. Um filete de suor escorreu da testa, uma lágrima nervosa do olho.

Quem diria, Davi?

Não conseguia distinguir se isto era seu fim ou seu começo.

***

Tic tac.

“Cadê esse garoto que não chega?”

Andando de lá para cá.

“Calma, Rita.”

Tic tac.

“Como dá pra ficar calma? Não tá vendo que horas são?”

Andando de cá para lá.

“Não tá tão tarde, ele pode ter saído com os colegas.”

Tic tac.

“Em dia de semana? Duvido, Davi não é disso.”

Andando em círculos.

“Tu tem é que ficar na tua e deixar o Davi cuidar da vida dele, mulher!”

Tic tac. A porta da sala abriu-se.

Rita correu, quase escorregando no soalho de madeira. Precisava tocar o filho, medir sua temperatura, checar se não lhe faltava algum membro, prever o estado de seus órgãos internos, enfim, toda coisa própria de mãe zelosa.

“Onde você tava, garoto?” Abraçou-o em desespero, pouco se importando com a mísera reciprocidade do ato; ainda que os braços dele não a envolvessem de volta, o fato de seu corpo não jazer violentado em algum beco já a tranquilizava.

“Oi, mãe,” falou baixinho. A ausência de uma resposta objetiva fez que Rita apertasse seu tronco com ainda mais ímpeto, e Davi teve medo de sufocar. Por que ela insistia em não lhe dar o mínimo espaço para existir?

Dante girou os olhos perante o comportamento da esposa e puxou-a pelos braços com cuidado, tentando desenlaçar os corpos de ambos. Ele suou, ele sofreu, mas no final tinha a mulher a seu lado e o filho de frente a si.

“Fala, moleque.” Deu um tapinha no ombro dele. “Tava passeando por aí?”

Seus olhos cintilaram, e Davi soube de pronto qual era a resposta que ele queria ouvir: algo que envolvesse festas, samba, e principalmente mulheres. O quão maravilhoso seria para o orgulho desse pai saber que o filho abandonara seu senso de responsabilidade e se lançara a farrear noite afora? Nada mais lógico, pois o que podia ser esperado de um jovem de vinte anos senão descontrole físico e uma libido simplesmente sel-va-gem? Seria de extremo benefício à sua imagem aparecer em casa bêbado, sujo e cheio de mordidas. Na verdade, talvez fossem exatamente estas últimas que Dante procurava, visto que não parava de inspecionar o pescoço de Davi com olhos apertados.

Ah, como seria interessante revelar aos pais o que realmente se passara! Em poucas horas, ele espancou um professor, dormiu no ônibus, apenas foi acordar no centro da cidade, onde lhe roubaram o celular, e fez o trajeto de volta à Gambiarra com a inquietante sensação de que ele iria se foder mais ainda quando chegasse em casa. No momento, não sabia qual prospecto era mais atemorizante: contar aos pais que eles deveriam dar adiós ao sonho de ter um filho formado em Engenharia da Computação ou, bem... Explicar que eles teriam de ajudar a pagar dez meses de prestações por um MarraPhone que possivelmente estava sendo reduzido à carcaça naquele exato momento.

Tudo errado. Estava tudo errado.

Quando deu por si, já corria rumo ao quarto – seu recanto, seu abrigo. Ignorou os chamados de Rita e Dante, deixando-os a falar sozinhos do outro lado da porta agora trancada. Há muito não suportava mais conversar com eles, cada qual com sua própria ideia de como ele deveria moldar suas ações e seguir sua vida. Claramente, o fato de ele ser maior de idade e ter certa independência financeira não significavam nada naquele lugar que ele costumava nomear “a casa dos meus pais”. Não dele, jamais dele, ainda que a conta de luz fosse sua responsabilidade, isto para não citar a fatura da amarga lembrança do que um dia fora seu celular.

A vida realmente não era doce. Ele se matava de estudar e era reprovado sem qualquer motivo aparente. Ele se matava de lecionar na ONG e continuava sendo tratado como um mero monitor. Ele se matava de trabalhar fazendo conserto de computadores, vendendo banda larga e até mesmo cosméticos – sim, ele chegara nesse deprimente nível – e continuava pobre, fracassado e sem o menos resquício de moral dentro do lar. Quase igual a um porco a resvalar na lama e implorar por ração, exceto que já lhe faltava até a lama em que rolar e as rações estavam com um gosto horrível de comida fora da validade.

Tudo. Errado.

Abriu a janela com um ruído torturante; maldita casa em que até ato tão simples causava adversidade! Tentou ignorar o som reminiscente da madeira rangendo para se focar em algo mais ameno. A brisa, talvez? Sim, era uma noite fresca no Rio de Janeiro, até um pouco gélida para os adeptos de poucos tecidos. Daquela posição, podia ver o morrete da Pedra Lascada avolumar-se ao longe. Parecia um Pão de Açúcar da zona oeste. Gostava de lá, das pessoas de lá, dos estabelecimentos de lá, das comemorações de lá.

Comemorações. Deus! Como esquecera? Herval e Mosca iriam matá-lo!

Observou a abertura da janela. Era de amplitude razoável, e ele próprio não tinha lá porte muito avantajado. Talvez, poderia se espremer um pouco... Jogou uma perna, tentou se equilibrar, jogou a outra, e já pisava sobre o chão do quintal, pronto para seguir seu destino.

Pausa para o fato de que, mesmo com vinte anos de idade, ele acabara de pular a janela do quarto para não ter de dar satisfações aos pais. Tudo errado.

Sacou as chaves da mochila e abriu o portão da mureta. Estava na rua. Livre. Podia fazer o que sua timidez bem permitisse naquela noite. Com esse pensamento confortante em mente, galgou as calçadas esburacadas rumo à favela que o esperava lá no alto.

///

O que mais eu deveria ser?

Todas as desculpas

O que mais eu poderia dizer?

///

Megan pensou ter visto uma estrela cadente a rasgar o firmamento.

Nunca fora destas de apreciar tais fenômenos astronômicos, era verdade. Achava um tanto bizarra toda a romantização que cercava o simples fato de que um meteoro caíra do céu. Por que ela deveria interromper suas atividades para olhar – atônita, diga-se de passagem? Por que ela deveria fazer pedidos a uma pedra incandescente? Em sua percepção, isto conseguia ser ainda mais imbecil que acreditar na Bíblia.

Não que culpasse os crentes dos objetos voadores mágicos ou os rejeitados da arca de Noé. Cada ser humano tinha lá seus motivos para se segurar ao grande sistema da fé, e talvez ela estivesse mais equilibrada se também tentasse. Ah, o quanto seus pais insistiram! Seria lindo ver a família modelo da América frequentar a igreja todo domingo, afinal. O papai que, a despeito de trabalhar diretamente com produção científica, jamais deixara de crer em Deus. A mamãe que, a despeito de estar metida no universo imundo das celebridades, ajoelhava-se para orar ao Senhor. A filhinha que, a despeito de... Bem, a despeito de... Ah, a filhinha que simplesmente acreditava e ponto, sem mais.

Algo errado acontecera, no entanto. Por anomalia genética ou mapa astral desfavorecido, difícil dizer, a menina não compactuava com o papel que era esperado dela. Quando bem pequena, tampava os ouvidos e cantarolava ao som do sermão. Alguns anos depois, vieram as perguntas constrangedoras – “Você acha mesmo que Jesus aguentou morrer sem arrumar mulher?”. Aos doze, ela conseguiu se superar.

“Licença.” Levantou a mão, chamando a atenção do pastor. “Ser gay é errado?” Inserir aqui palestra de trinta minutos a respeito dos males da sodomia. “Então, explica essa foto. Não parece ser o senhor e o pastor John?”

Seus pais acharam sábio não mais levá-la ao culto semanal.

Na época, Jonas questionara:

“Foi pra isso que eu te criei? Pra você se comportar igual uma depravada?”

Engraçado como uma variação dessa pergunta resolveu se repetir anos depois. O cenário foi um tanto diferente – Rio de Janeiro e não São Francisco, um apartamento invés de uma capela – mas a essência manteve-se intacta.

A noite caiu e com ela chegou Megan, a qual passara o dia todo desaparecida de casa. Entrou pela sala de estar, toda carne e quadris e coxas e lábios inchados de tanto beijar. Esfregou-os com os dedos, permitindo que cada centímetro tocado avivasse uma sensação diferente em seu íntimo. Viu-se sedutora, viu-se mulher, e viu-se atirada na poltrona com um sorriso atravesso a iluminar o rosto.

“Posso saber onde você estava, Megan Lily?”

Espíritos? Não, era apenas Jonas Marra a emergir das sombras de um canto qualquer. Postou-se de frente à filha, os braços cruzados em sinal de afronta. Que postura ridícula, que tentativa miserável de dominação! Megan levou um dedo aos lábios, fingindo que girava as manivelas cerebrais em busca de uma resposta à indagação.

“Ah.” Estalou os dedos, como se tivesse acabado de lembrar onde passara as horas anteriores. “Na casa de um amigo.” Deu um sorrisinho malicioso.

Jonas bufou. Óbvio que o sumiço dela só podia estar relacionado a algum indivíduo do sexo masculino. Fora um tolo de não prever isto. Já tendo obtido toda a informação de que necessitava, ele deu as costas e fez de ir embora.

Megan piscou, piscou, piscou e levantou-se com tamanha agressividade que a poltrona rangeu.

Puxou o padrasto pelo braço e forçou que a mirada dele encontrasse a sua. Nunca aceitara que Jonas Marra não fosse acostumado a dedicar parte de sua refinada atenção a qualquer ser humano que não ele próprio. Será que ele enxergava o mundo em tons de cinza e apenas via cor quando se olhava no espelho?

Vários exemplos apoiavam tal hipótese. Quando adolescente e assolada por hormônios, Megan esperara a tal conversa séria com o patriarca – aquela na qual ele lhe alertaria do perigo de perder tempo com essas criaturas cheias de perfídia que eram os rapazes. Ela esperara também o natural ciúme paternal ao descobrir que a filha começara a tomar pílula. Caralho, ele nem elevara o tom de voz ao voltar mais cedo de uma viagem e encontrar a mansão cheia de adolescentes drogados – incluindo a própria cria - fazendo uma rave em seu quarto! Na verdade, ele gritara sim, mas com temor de a notícia vazar para a mídia e prejudicar o lançamento da nova versão do MarraBook.

Poucas vezes Megan tivera de rebelar-se com ele para obter mais direitos, tal qual uma jovem normal faria. Ela brincava com todos os limites possíveis de atrevimento, talvez até arriscando sua integridade física e mental no processo, e continuava sendo menos atraente que um circuito de cabos aos olhos do pai. Quer dizer, padrasto. Tinha dúvidas de que aquilo algum dia fora um pai.

Como lhe era usual, os olhos de Jonas não conseguiram encará-la sem piscar de forma quase errática. Engraçado: ele adorava dominar seus semelhantes, mas tinha todos os trejeitos de um homem com medo de gente. Megan ficaria instigada se não sentisse tanta raiva.

Decidiu provocá-lo bem ao seu modo.

“Até que pra um executivo você anda bem desarrumado, Mr. Marra.” Começou a desamassar o colarinho da blusa dele. O que seria um maneirismo carinhoso em qualquer outra relação fraternal atiçou um dos muitos tiques nervosos de Jonas. Suas orelhas mexiam e desciam sozinhas, sendo acompanhadas por movimento similar das sobrancelhas.

“O que você quer?” Foi seu único comentário. Rascante. Megan fungou.

“É essa a imagem que você tem de mim?” A voz chacoalhou, e ela quase esqueceu sua intenção zombeteira com essa tentativa ridícula de conversa. Veja bem, quase, pois logo forjou seu semblante de menina somaliana que não via um prato de comida desde que nascera. Era sua roupagem favorita ao lado da criancinha de castigo sem poder assistir a Galinha Pintadinha, essa porcaria de desenho animado brasileiro. “Não posso nem curtir meu daddy sem ser vista como interesseira?” Quase virou o rosto para vomitar.

Ele soltou um risinho seco.

“Desde quando você me considera seu daddy?”

Touché. Ela ignorou o que parecia ser uma nota de ressentimento nas palavras dele e migrou as mãos até o primeiro botão de sua camisa, o qual abotoou de pronto.

“Desde quando eu percebi o homem sábio que você é.” Ela realmente precisava vomitar. “Admito que você estava certo. Eu só tinha a ganhar vindo para o Brasil.” Fisgou um cílio caído na bochecha de Jonas, permitindo que as garras apelidadas de unhas deixassem uma pequenina marca em formato semilunar.

“Chegue logo ao ponto, Megan Lily.” Ele retirou a mão dela de seu rosto e deu um passo para trás.

“Devo estar ocupando seu precioso...”

“Sim,” ele cortou “eu tenho mesmo mais coisas pra fazer.”

Megan tornou a fungar. Puto. Ninguém realmente estava disposto a facilitar seu trabalho. Hora de apelar para a criança com abstinência de Galinha Pintadinha.

“Eu só queria te agradecer.” Rebaixou o olhar, fingindo que estava emocionada. “Agradecer por ter me apresentado a esse povo. Os brasileiros são realmente maravilhosos, sabe?”

Isto rendeu mais um riso sarcástico de Jonas.

“Eu tô falando sério!” Respirar. Ela tinha de respirar fundo para não voar no pescoço daquele desgraçado.

“Não estou entendendo sua paixão por essa nação, ou seria melhor dizer pelos homens brasileiros?”

Um buraco abriu no solo, de onde emergiu um Freddie Mercury recém chegado de sua mansão no inferno, lugar onde viviam todos os ídolos de rock após o grande capítulo da morte – pelo menos, na concepção cristã. Não tardou a cantar We Are The Champions ao ouvido de Megan, que quase urrava em vitória. Finalmente, Jonas Marra dera uma brecha, uma importante brecha, para que ela atingisse seu objetivo.

“Ah, claro, os homens brasileiros.” Foi sua vez de sorrir. “Bons de papo, bons de copo, bons de cama...”

“Megan,” ele tentou interromper “não me interessa saber como anda sua vida sexual no Brasil.”

Cabunga!

“Não precisa soletrar, eu já sei disso.” Deu um passo a frente, ajeitando um trecho do topete do padrasto enquanto intentava manter um tom casual. “Se você não dá a mínima pra sua própria vida sexual, o que falar da minha, right?”

Uma mão forte estrangulou seu pulso e arrancou-o da posição original.

“O que você tá falando, garota?”

Mais um sorriso. Finalmente, Jonas Marra detinha seus olhos nela e apenas nela. Umedeceu os lábios, preparando-se para sua próxima cartada.

“Eu fico comparando as coisas, sabe? Por exemplo, o cara que encontrei hoje. Sabe por que eu gosto dele?” Silêncio. Era a hora. “Porque ele me fode com vontade. O dia todo. Até arder. Até eu sentir dor.”

Branco, tudo branco, o rosto dele, os lábios dele, até os cabelos acinzentaram naquele segundo. Sentiu-se velho. Acabado. O coração deu umas batidas irregulares.

“É disso que uma mulher gosta, Jonas Marra. Você devia pegar umas dicas com o meu amigo. Talvez assim mom queira passar mais tempo em casa.”

Sabia ter atingido um assunto vulnerável: os sumiços de Pamela Parker desde que viajara para o Brasil. Quantas horas de ausência eram necessárias para ruir o ego de um homem? Pelo vinco profundo na testa de Jonas, sua esposa já ultrapassara todos os limites de tolerância.

Por uma fração de segundo, permitiu que um quê de humanidade perpassasse suas feições. Talvez, apenas talvez, não fosse tão errado demonstrar sua fraqueza. Talvez, apenas talvez, deveria admitir que falhara como pai e como marido. Talvez, apenas, talvez, não seria um crime piscar até que aquela lágrima acumulada no canto interno do olho finalmente se libertasse dos confins de seu corpo oprimido.

Mas ele era quem era, afinal. Não nascera para ser pai, não nascera para ser compreensivo, somente nascera para ser homem. Poderiam diminuir cada uma de suas qualidades e reduzi-lo à posição de verme, mas jamais alguém seria capaz de retirar-lhe a virilidade. Jonas Marra era grandioso, Jonas Marra era absoluto, e ninguém havia de contrariá-lo.

Rugiu. Puxou a filha pelos cabelos, ignorou quaisquer gritos de dor, desferiu-lhe um tapa na face e repetiu sua máxima de anos passados.

“Foi pra isso que eu te criei? Pra você se comportar igual uma piranha?”

Desapareceu como que nunca tivesse estado ali. Ao menos, Megan pensou, recebera a atenção dele por alguns minutos.

***

Lindo. Seu pai era lindo. Homem dedicado, destes que já carregavam todas as rugas da vida à idade de vinte e simples. Homem bem feito, cuja beleza era uma aquarela mais harmônica que qualquer pintura renascentista. Homem maravilhoso, que se permitira fotografar chorando ao embalar a filha recém-nascida. Megan levava essa imagem consigo para todos os lugares. Era simplesmente sublime apreciar a prova de que ela já conhecera o abraço daquele ser humano – e nenhum adjetivo adicional parecia necessário para qualificá-lo. Ele era um ser humano. Sensível. Apaixonado. Megan beijou a foto muitas e muitas vezes, venerando-a tanto que quase amassava o papel.

Em um passado tão distante quanto onipresente, fora filha de um pai. Por que relação tão fundamental lhe foi arrancada com tamanha pressa?

Ele apenas passara por sua existência para dar-lhe um nome. Megan Lily Parker Thompson, primogênita de Pamela Parker e Charles Thompson.

Será que ele também a consideraria uma piranha? Matutou um ou dois argumentos e tratou de soltar sua risada mais amarga logo em seguida. Ah, Jonas Marra e seu hábito incansável de tratar a família como mais um produto desenvolvido por sua empresa. Estaria a filha apta a se apresentar frente ao mercado mundial e concorrer nas listas de mais vendidos? Sua reputação amaciaria a boa vontade dos empresários dispostos a comprar ações da empresa? Teria ela design ergonômico aliado a rapidez de processamento para formar um dispositivo ímpar em eficiência? Palavra correta: eficiência, qualidade que Megan Lily nunca cultivara. Sendo motivo de vergonha em todos os parâmetros estabelecidos por Jonas, ela recebera a alcunha de prostitua. Quão meigo!

Tragou da cigarrilha com efeito. Maconha, esta sim nunca lhe desrespeitara. Jack certamente a trucidaria se descobrisse que estava a usar drogas, e ela sentia vontade de morrer por contrariar o avô, um dos únicos homens a quem raramente era capaz de atribuir defeitos. No entanto, o que mais podia fazer? Passar o resto da noite lamentando a falta de carinho do padrasto não estava em seus planos. Levou o cigarro outra vez aos lábios, pronta para uma segunda vez...

Parou. O rosto do avô tornou a fazer-se muito vívido em seus pensamentos.

“Caralho!” Seu grito dissipou-se rapidamente pela praia vazia. “Até na minha cabeça tem gente me julgando?” Apagou o cigarro na areia, prevendo que a experiência seria nada satisfatória caso prosseguisse. Quando ficara tão controlada? Saudou sua áurea adolescência em São Francisco, quando misturava maconha e LSD com o fim único de sentir a mente separar-se da carne.

Transformava-se então em energia a fluir do universo e jorrar sobre as ilusões imagéticas representadas pelas alegorias materiais. Em suas alucinações, a vivência empírica era nada mais que uma mera impressão, e a realidade centrava-se inteira em um plano transcendente a qualquer expectativa da limitada consciência humana. Óbvio que alguém não tardaria a podar sua alegria e criar barreiras múltiplas para seu prazer, e tal papel foi ocupado por Jack.

“Querida, me prometa que não vai mais se meter com drogas. Essas coisas são perigosas. Você vai acabar destruindo sua vida sem nem ter descoberto como ela é ainda.”

Sim, ele dissera isto. E sim, ela prometera. Maldito dia! Maldito poder que as palavras tinham de enredar uma pessoa e torná-la refém de si mesma! Suspeitava ser esta a função dos avós: lembrar seus netos das crianças patéticas que um dia foram, época na qual acreditavam em entidades magnânimas – Papai Noel? – e achavam que seus pais realmente eram um pouco menos desonestos e imundos que os vilões de desenhos animados. Talvez crescer envolvesse abraçar a noção de que todas as pessoas são odiosas por igual e apenas vestem a máscara que possibilita sua sobrevivência no meio vigente. Jonas Marra não precisava falsear caráter para resistir à seleção natural. Será que Megan também fazia bem em apenas mostrar seu lado mais negativo para outrem?

Vazio. Tomou um galho jogado e escreveu Megan Thompson na areia. Olhou. Fitou. Encarou.

Bem, talvez as coisas não funcionassem sob essa organização tão pessimista. Seu pai era verdadeiramente bondoso, afinal. Não sabia porque pensava assim, mas tinha certeza. Ele não era igual Jonas Marra. Não, não era.

Apagar o cigarro de maconha fora a pior ideia que já lhe ocorrera na vida. Tamanha divagação filosófica já lhe dava náuseas.

Ergueu-se do solo em um pulo, limpando os grânulos que a toalha não conseguira impedir de grudar à sua pele. Deu um último beijo na foto do pai e guardou-a na bolsa. Ainda que o amasse muito, aquele momento seria dele e somente dela.

Tirou muda por muda de roupa até que restasse somente o corpo o qual escondia sobre todas as camadas. Estava nua, mas não como uma mulher conhecedora da sensualidade de suas curvas. Desta vez, era diferente. Avistou o horizonte que a esperava. Gostava da praia do Leblon, ainda que obviamente não superasse a Califórnia. Mesmo assim, era muito agradável passear pela orla carioca, pisar sobre aqueles tijolinhos bicolores – qual era o nome que lhe davam mesmo? Ah, não importava. Estava ali para espairecer, não cansar o intelecto. Torcendo para que ninguém a visse desnuda, saiu correndo igual menina solta. Os cabelos esvoaçavam e os seios balançavam e a sensação de liberdade crescia dentro de si.

Pôs um dos pés na água feito termômetro. Morna. Perfeita. Submergiu o outro pé. Fez que seus dedos tomassem a liberdade de brincar até surgirem bolhas no espelho do oceano. Tomou tamanho gosto desse efeito que iniciou a pular e pular, formando pequenas ondas que quebravam em suas pernas. Parecia uma garotinha! Assombrava-lhe grande coisa a constância da natureza e suas relações de causalidade; perceba que certa espuma já escondia seus calcanhares, e se antes a temperatura era morna, já estava a beirar o quente com toda essa cinética.

Foi adiante e mergulhou. Não gostava de ir andando de tanto em tanto até atingir a parte mais funda. Deixava isto para os desprovidos de audácia. Megan Lily sempre pulava de cabeça em tudo, ainda que o resultado fosse um crânio rachado e partes do cérebro que talvez não funcionassem da forma fisiologicamente correta. Adentrou a água em sua profundidade – porque ela também jamais se contentava em dar algumas braçadas no raso – e ascendeu até furar a superfície. Adrenalina. Adorava, precisava dela correndo em sua circulação.

Deitou-se de costas e deambulou a olhar o céu. Era noite de lua cheia. Esticou o braço, desenhando a circunferência do astro com a ponta de um dedo. Branquinha, imponente... Ei, o que era aquilo?

Megan pensou ter visto uma estrela cadente a rasgar o firmamento.

Nunca fora destas de apreciar tais fenômenos astronômicos, era verdade. No entanto, dessa vez foi diferente. Fechou os olhos e sussurrou consigo:

“Eu desejo que alguém se importe comigo de verdade.”

Quando abriu os olhos, a estrela já tinha sumido.

///

Eu tô saindo, eu tô saindo, eu tô saindo deste

Eu tô saindo, eu tô saindo deste buraco

Help! Eu preciso sambar

///

Davi pensou estar à beira da morte quando finalmente chegou à festa; suas pernas decidiram parar de obedecer e dobravam como se os ossos fossem de vidro. O que quinze minutos subindo o morro não foram capazes de fazer! Quanto tônus muscular, ele zombou consigo. Quanto poder de resistência! Talvez, apenas talvez, uma academia iria lhe fazer bastante bem. Ou não, pois demandaria dinheiro, e naquele momentinho frágil de sua vida, qualquer atividade que exigisse meter a mão no bolso era potencialmente perigosa.

Enfraquecido ou não, ele iria se jogar em uma cadeira e chorar todas as mágoas tal qual um bêbado depressivo. Sua mesa seria a mais melancólica de todo o bar – aliás, cuja decoração estava no mínimo exagerada. Sendo um aniversário, balões eram mais que esperados. No entanto, aparentemente cada metro quadrado do recinto tinha ao menos duas bolas; elas foram grudadas no teto, nas mesas, no chão, e Davi acidentalmente estourou umas quatro apenas na entrada. Deste posicionamento, podia ver um cartaz monstruoso fixado na parede oposta, no qual estava escrito em vermelho sanguíneo “Parabéns, Pádua”. Por algum motivo, ele suspeitou que o próprio aniversariante fizera essa homenagem a si.

O Pádua era dono do bar, um velho baixinho e saltitante que conhecia a Gambiarra toda. Em seu trabalho rotineiro, pulava de mesa em mesa a atender os clientes, mas nessa noite jogava sinuca com uma garrafa de 51 como acompanhante. Davi nem tentou congratulá-lo e abriu caminho em meio à massa de pessoas, buscando os amigos pelas redondezas.

Terminou por encontrá-los em um ponto central à movimentação de garçons e convidados. Só podia ter sido ideia do Mosca! Este, desastrado como sempre, estirava o pescoço branquelo à procura do colega, e quando o viu de longe, deu um tapa na mesa que tombou seu próprio copo de cerveja.

“Mal começou a beber e já tá derrubando as coisas?” foi o boa noite de Davi. Deu um tapinha no ombro do melhor amigo e sentou-se ao seu lado, de frente a Herval, quem cumprimentou com um acena da cabeça.

“Alguém chama um garçom pra limpar essa merda? Ei, Vander, vem cá!” Mosca berrou ao irmão, o qual estava do outro lado do recinto entregando um pedido.

Óbvio que, como funcionário do Pádua, Vander também trabalharia na festa do patrão, especialmente pois não era empregado dos mais merecedores de folga. Davi engoliu em seco; constituíam eles dois tipos de homens um tanto imiscíveis, e podiam-se esperar os mais variados contratempos quando ambos se esbarravam nas esquinas da zona oeste. Davi mentalizou feito um mantra que não caçaria brigas, mas a mirada condescendente do desafeto ao aproximar-se foi suficiente combustível para que perdesse a compostura.

“Ô, Vander.” Estalou o dedo em pura provocação. “Traz uma Brahma pra mim. E limpa a sujeira também, faz favor.” Vander estreitou os olhos e segurou a bandeja que carregava com tanta força que seus braços iniciaram a tremer. Não obstante, obedeceu à ordem e secou todo o líquido da mesa, retirando-se logo em seguida sem mais palavras.

Mosca assistiu à cena com os lábios contorcidos de tanto conter o riso, o qual explodiu quando o irmão não mais estava por perto.

“Tá putinha, é?”

“Davi,” Herval logo cortou a piada com tom resoluto. “Por que você não atendeu as nossas ligações? A gente marcou às nove, cara, e nada de você aparecer.”

Os três entreolharam-se. Não fossem grandes amigos, talvez maquinassem um modo de esquecer preocupações alheias à intenção de divertir-se e aproveitar a festa. Contudo, havia o tal laço inominável entre eles, cuja consequência primeira era retirar um ao outro de pretensos fingimentos. Davi padecia de nervos, e estava ciente de que seria impossível, senão tolo, tentar disfarçar sua condição – esta seria desvendada em instantes pelos outros dois. Contentando-se com o fato de que nada havia de fazer senão falar, e rápido, ele suspirou e massageou as têmporas.

“Tá tudo errado,” vocalizou seu mais novo bordão. “Tô na merda.”

Mosca soltou uma risadinha zombeteira.

No me digas.” Paralisou ao perceber que Herval fitava-o com reprovação.

Davi desatou então a relatar as desventuras em série que permearam seu dia. Por vezes, respirava fundo e forçava-se a retesar suas emoções, visto que de frases em frases a voz tremeleava e os olhos faziam de aguar. Era homem, não garoto, logo não tinha nada de chorar em público. Contudo, lembrava-se da mãe, quem sempre o ensinara a expressar seus sentimentos, e falecia de imaginar o quanto gostaria do colo dela naquele momento. Talvez, fizera mal em dar-lhe as costas e fugir de casa. Talvez, um evento social era o último ambiente que devia frequentar na situação em que estava imerso. Quando deu conta de seu estado, o rosto já estava afundado nas mãos e seu monólogo ecoava mais floreado que filmes para garotas.

“Eu não tava mais aguentando aquela merda! Tava me dando no saco já, eu não tava me identificando com o curso, cagava pra todas as aulas, o professor era insuportável, vivia soltando piadinha pra mim...”

“Deixa eu fazer um adendo.” Mosca ergueu um braço no ar, atitude bem representativa dos velhos tempos de escola. “Você sabe que isso é culpa sua, né? Ninguém mandou você fazer um protesto pra UFRJ demitir o cara.”

Ah, de certo ele já esperara tempo demais para fazer suas observações sempre precisas! Davi não compreendia a facilidade que outros seres humanos tinham de deparar-se com um contexto injusto e cruzar os braços, como que houvesse uma venda a tampar-lhes os olhos. Sabia ser mais engajado que a maioria dos jovens de sua idade, contudo o pouco apoio às suas iniciativas jamais cessaria de assustá-lo.

“Ele era racista! Deu nota baixa pra todos os negros da sala!” argumentou.

“Hã, foda-se?” Filho da mãe. “Você não é a reencarnação de Martin Luther King. Isso não é problema seu.”

“Você diz isso porque nasceu branquinho, ruivo e com cara de europeu, aí ninguém fica te sacaneando!”

“Ninguém fica me sacaneando?!” Por algum motivo, ele pareceu ultrajado.

“Não!” Mosca abanou a cabeça, dando um tapinha própria testa. Isto motivou que Davi prosseguisse. “A não ser que pra você ‘água de salsicha’ e ‘arroto de Crush’ sejam uma puta ofensa, né?”

“Gente, por favor.” Herval coçou os olhos com tanta força que quase os arrancou. “Vamos voltar à história?”

“Não tem mais história. Eu meti a porrada no Solano e se eu mesmo não cancelar minha matrícula a UFRJ fará isso por mim,” Davi concluiu. “Quer saber, eu acho que eu não nasci pra fazer faculdade, nasci pra ser um fracassado mesmo, minha mãe vai me odiar pra sempre, ela vai me expulsar de casa, e eu não tenho dinheiro, eu não tenho nada, eu não sei o que eu vou fazer, e cadê a porra do Vander com a cerveja?!” Deu um murro na própria perna, arrancando olhares assustados das pessoas no entorno.

Para sua conveniência, o dito cujo brotou por mágica bem quando chamado, e posicionou a garrafa sobre o tabuleiro com uma pancada audível.

“Aleluia!” Davi exclamou, gesticulando muito e cuspindo entre as palavras. “A incompetência por aqui tá grande, viu? Meia hora pra atender o meu pedido é sacanagem, mermão!”

Vander fumegou. A veia em sua testa nunca estivera tão protuberante.

“Fica na tua, babaca. Vai vender Avon e vê se não fode.” Foi embora tão rápido quanto chegou.

Novamente, Mosca gargalhou na hora errada.

“Desculpa, mas não dá pra te defender nessa não.” Foi presenteado com um olhar mortal. “Não tem jeito, cara. Tu vende Avon.”

“E daí?” Davi fingiu indiferença.

“E daí que tu vende Avon, cara! Eu preciso mesmo explicar qual é o problema disso?”

“O que você quer que eu faça? Eu preciso de dinheiro!” Estava quase a gritar, bem diferente de seus usuais sussurros. Para ser sincero, ele pouco se importava com discrição no momento. “Se a minha mãe já quer mandar em mim com esse pé de meia que eu tenho, imagina se eu não conseguisse grana nenhuma!”

Bem, talvez este fosse um argumento válido, afinal. O silêncio apoderou-se da conversa enquanto cada qual bebericava sua cerveja. Um gole, dois goles, x goles, um copo, dois copos, quietude, afasia. Uma mosca repentinamente surgiu no ar e atacou-lhes a comida com toda sua maldade, rodopiando e voando e pousando em seus narizes. Quando perceberam estar mais absortos nessa perigosa criatura que uns nos outros, decidiram findar a já enfadonha mudez entre eles. Herval foi o pioneiro nessa tentativa.

“Vamos parar com isso. Somos todos adultos aqui.” Os outros dois concordaram, possivelmente contentes com o uso da palavra ‘adultos’, pois não eram muitos os seres de valor que os consideravam dessa forma. “Davi, você quer desabafar?”

Este fez que sim com a cabeça, porém as cordas vocais pareceram lhe faltar. Não que elas em si fossem as culpadas por sua inexpressão, claro. Após acalmar o ardor da narrativa inicial, sua frequente timidez para divulgar os próprios sentimentos fez-se presente outra vez. Arriscou-se nesse ofício: abriu a boca, contraiu os músculos certos da fala, e esperou que algo fluísse disto. Embora gaguejasse, logrou certa vitória.

“Eu sinto que, sabe, os meus pais me controlam... Cada um do jeito deles, sabe? A minha mãe quer que eu seja um homem de respeito. O meu pai...” Risada amarga. “Ah, vocês sabem.”

Eles assentiram. Certamente, conheciam Dante e sua ótica boêmia de enxergar a vida, a qual ele tentava transferir para o filho – sem grande sucesso, necessita-se destacar. Ainda que esse tipo de estímulo pudesse arrancar Davi da inércia que frequentemente se tornava sua rotina, por vezes configurava uma pressão um tanto difícil de satisfazer. Seria ele homem o suficiente para agraciar o pai?

“Acho que ele queria que eu fosse mais porra louca, e tem hora que eu tenho vontade de ser assim mesmo, de sair por aí fazendo merda só pra ver no que dá.” Suspirou. “Mas a minha mãe vocês sabem como é, né?”

“Ela deseja o melhor pra você,” completou Herval “mas eu sei que é difícil de aceitar isso quando a gente é novo. Eu te entendo. Todo mundo passa por isso com os pais um dia.” Apertou a mão do pupilo com afeição, recebendo um sorriso apagado em retorno.

Lágrimas tornaram a nascer. Fraco. Secou-as com as costas da mão antes que o rubor característico do choro denunciasse o quão abatido estava. Sentiu um tapinha na cabeça, e virou-se para encarar um Mosca bem sorridente.

“Mostra quem tá mandando, moleque. Enche logo essa cara, vai pra cima da mulherada e fala ‘Papai chegou’!”

Todos gargalharam, um som maravilhoso que alcançou até as almas mais cabisbaixas ao longe. Enquanto os três faziam o primeiro brinde da noite, Davi apenas pensava como era abençoado por ter amigos tão leais a seu lado. No dia seguinte, inevitavelmente teria de revelar aos pais que desviara da trajetória pretendida por eles, e tremia ao imaginar o quão difícil seria. No entanto, ainda tinha mais algumas horas de tranquilidade, e era a isto que se agarraria quando os olhos ardessem e o coração apertasse no peito.

///

Eu sou veneno louco e exuberante

Construí essas mãos para me levantar

Somos servos de nossos hábitos previsíveis

///

Jack que a desculpasse, mas Megan havia preparado outro cigarro de maconha e fumou até sentir uma fome lancinante atacar-lhe as vísceras. Apenas Deus podia julgá-la, e já que ela não acreditava na existência de tal entidade, considerava-se bem protegida.

O motivo de ceder a seu instinto derivara de algumas emoções um tanto aflitantes que lhe dominaram o íntimo enquanto nadava. Quis se fundir à água e tomá-la como sua morada, onde descansaria abraçada ao próprio corpo, nutrindo-se do próprio calor. Por algum motivo, viu-se intentando uma imitação desse movimento, o qual parecia muito com um bebê suspenso em líquido amniótico. Fantasiou que o mar fosse o útero materno, e imaginou escalar o cordão umbilical até se resguardar mais uma vez nessa cavidade vital.

Não tardou a recordar a mãe, a quem ultimamente cultivava pensamentos contraditórios, e decidiu que ou saía dali ou afundava rumo ao fim daquele vasto oceano. Mesmo dando valor à segunda alternativa, não gostava da ideia de morrer sentindo-se tão mal. Sua existência já fora um grande desatino como um todo; que ao menos a derradeira morte fosse grandiloquente!

Enfim, ela necessitava reservar seu último “momento foda-se” do dia, e fez isto apreciando uma boa maconha sem dar a mínima para o moralismo do avô. Por que ela deveria continuar a pô-lo em um altar? Ele não se mobilizara para acompanhá-la até o Brasil, afinal. Alegara ter de cuidar diretamente da Parker americana. Desculpas e mais desculpas. Por esta razão, ela também não hesitou em fazer um pequeno empréstimo do supermercado mais próximo. Bem, ela tinha desejo de comer Sucrilhos, uma bolsa razoavelmente grande e a falta da carteira consigo. O grande capitalista maquiavélico e bigodudo por detrás daquele estabelecimento não sentiria a menor falta de uma caixa de cereal não paga.

Após alimentar seu estômago sofredor, Megan percebeu que carecia de mais uma dose de adrenalina. Decidiu que retornaria ao carro, o qual deixara estacionado não muito longe da praia. Nesse caminho, um mendigo pediu-lhe comida, e ela prontamente deu a caixa de Sucrilhos com todo o conteúdo restante. “Não foi generosidade,” ela ficou a martelar na cabeça por algum tempo “eu já estava satisfeita”. Calou essas ideias absurdas com uma girada decisiva na ignição, partindo logo em seguida em meio à cantoria irritante dos pneus.

A familiar sensação de voar sobre a estrada fez que o ar ficasse muito mais fácil de respirar. Pôs o pé no acelerador com um crescendo de intensidade: 100, 110, fuck, ela não conseguia parar, 150, 160 km/h! Ela amava o vento a bagunçar seus cabelos, o calor a corar sua face, a energia a arrepiar seu corpo. Mais, ela queria mais, ela precisava de mais... Tateou em busca do rádio, estapeando os botões para ligá-lo. Quase morreu quando nenhuma banda menos que Blur invadiu seus ouvidos.

When I feel heavy metal
And I’m pins and I’m needles
Well, I’m lying, I’m easy
All of the time, but I never show
How I need you
Pleased to meet you

Megan urrou junto do vocalista, seu amado idioma pátrio fluindo dos lábios sem pensar, sem se esforçar, e ela se tornou parte da música e a música se tornou parte dela e tudo era como sempre devia ter sido. Deleitou-se com uma meia hora de contentamento. Não havia Jack Parker, não havia Jonas Marra, e nem Barack Obama ou Dilma Rousseff seriam capazes de... Ei, aquilo era um carro de polícia?

Caralho. Por que diabos ela tomara o caminho para a Avenida Brasil?

Um policial armado até o espírito fez sinal que Megan parasse, e não lhe restou alternativa inteligente senão obedecer a ele. Um homem magrelo e com cara de rato desceu da viatura e veio abordá-la.

“Boa noite, senhora.” Tinha voz típica destes malandros aproveitadores que povoam o Rio de Janeiro. Logo tratou de apoiar um cotovelo no teto do automóvel, ato que Megan abominou. Quem dera a ele tamanha liberdade? “A senhora tá ciente que ultrapassou o limite de velocidade permitido nessa via?”

Ela girou os olhos. Oh really?

“Não. O carro acelerou sozinho e eu nem percebi.” Seria aquilo veneno a escorrer de sua boca? Pelo modo como o PM agarrou a arma com mais vontade, ele não gostara nem um pouco dessa manifestação de atrevimento. Mesmo assim, trabalhou para que sua impaciência não transparecesse.

“Desse jeito a senhora dificulta a conversa...

“Não tem conversa,” cortou. “Fala logo quanto você quer pra me liberar.” Diante da surpresa expressa pela boca escancarada do homem, Megan meteu a mão na bolsa e desatou a procurar pela carteira. Ah, iria encher os bolsos daquele oportunista e ir embora cantando pneu na frente dele! Virou e revirou todos os itens guardados, até que se deparou com trágica constatação: ela esquecera a carteira em casa.

“Algum problema aí, senhora?”

Ela se limitou a dar um sorriso amarelo.

***

Os raios da Lua trespassavam as grades em lacunas rígidas, projetando uma alternância de luz e sombra sobre a cela e sua ocupante. De um canto escuro, Megan Lily contava cada intervalo. Claro, escuro, claro, escuro, claro... Cansou. Sentou-se contra a parede, os joelhos dobrados frente ao peito. Pequena. Encolhida. Fraca. Sozinha.

Aliás, caso o conceito de solidão carecesse de um exemplo objetivo, Megan teria precisamente sua pequena contribuição a fazer. Em seu dicionário, “solidão” poderia bem ter como definição ser abandonada em uma delegacia porque os pais não tiveram disposição para abandonar suas vidinhas paralelas e doar qualquer tipo de atenção à filha.

Ainda que contra o desejo de seu ego, Megan tentou comover o padrasto com o prospecto de dormir em ambiente tão infecto quanto uma delegacia. A reação dele?

“Bem feito.” Desligou o telefone.

Não que essa atitude fosse de todo imprevisível. Ele era Jonas Marra, afinal, indivíduo construído pela natureza para ser egoísta. Na verdade, receber sua complacência em qualquer instância seria a verdadeira surpresa, especialmente após o atrito que tiveram horas antes. Quem conseguira espantar fora Pamela.

Dez vezes. Megan ligara dez vezes para a mãe, talvez movida pela esperança de que pelo menos ela não lhe faltaria. Desligado. O celular da mãe estava desligado. Onde uma mulher de quarenta anos podia estar no início de uma madrugada? O esforço para não imaginar os contextos mais sórdidos tinha de ser grande. Era duro aceitar que o motivo único de Megan mudar-se para o Brasil parecia não querer mais sua companhia.

Por que ela decidira ser humana e se preocupar com a possível opressão que Pamela sofreria caso vivesse sozinha com Jonas Marra? Por que ela abdicara de seu próprio país por uma pessoa que agora lhe virava as costas sempre que podia? Porra, há quanto tempo ela não tinha uma conversa de mais de cinco minutos com a mãe? Há quanto tempo elas não faziam uma refeição juntas? Há quanto tempo elas não saíam para fazer compras?

Megan estava, sob qualquer conotação possível, sozinha. Largada. Ninguém gostava dela o suficiente nem para desembolsar um pouco de dinheiro e poupá-la uma noite humilhante destas. Por que não passava a atestar desde já que era órfã de pai e mãe?

Gritou e deu um soco na parede e arranhou a própria perna e agora sentia dor, dor, muita dor demais, e precisava de remédio, ansiava por remédio, e quando o carcereiro checou sua cela ao som do berro, foi exatamente o que ela pediu: “Quero um analgésico”. Ele a olhou torto, deu meia volta, demorou um tanto, talvez não voltasse, ele não ia voltar, ah, ele voltou, estendeu uma caixa de medicamento a ela, e ela agradeceu e destacou comprimido por comprimido da cartela. Sim, comprimido por comprimido, e ela tomou todos, a cartela toda, sem água, sem pausa.

Após algum tempo, seu cérebro não operava mais sozinho, porém a pilha de analgésicos sim, e eles mandaram que dormisse, então ela obedeceu. Deitou na cama, quase dormiu de olhos abertos, percebeu o que ocorria, cerrou as pálpebras e teve um sono que não parecia muito bem com sono.

A bairros de distância dali, Davi Reis fechou os olhos com a esperança de ter sonhos brancos naquela noite. Não foi o que aconteceu. Estava em um carro, tinha pai e mãe, o carro bateu, não tinha mais pai e mãe, acabou, acordou sem respirar. O pesadelo terminara tão rápido quanto o acidente, e ele não conseguia recordar mais nada.

No final do dia, ambos (ainda) eram os desejos que não conseguiam realizar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Músicas do capítulo:
• Titãs - Tô Cansado
• Nirvana - All Apologies
• Ana Carolina - Tô Saindo
• Bush - Greedy Fly
• Blur - Song 2