Coração Sangrento escrita por Emmy Tott


Capítulo 8
Morrer




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Thomas estava aflito. Algo teimava a bater em descompasso em seu peito, fazendo-o redobrar sua concentração em se manter calmo. Tudo dependia tão somente daquele momento. E tudo só podia dar certo se ele mantivesse o sangue frio. Esfregou as palmas das mãos, esperando ansiosamente. Elas estavam suando, apesar do frio cortante que fazia na entrada da noite. A neve já dominava toda a vegetação do lugar, tornando mais branca aquela noite sem lua. Inquieto, a única parte que permanecia imóvel em Thomas eram seus olhos, fixos à frente, ávidos para encontrá-la novamente. Ainda podia sentir na pele a sensação do corpo dela sobre o seu, quando se entregaram à paixão ardente. Suas narinas ainda aspiravam ao seu cheiro. Suas pernas moviam de um lado a outro, tão nervoso que não pôde perceber que estava sendo observado de perto, por alguém que se ocultava entre as folhagens e com o sangue muito mais frio que o dele. Imóvel, ele esperava.

Na medida em que o tempo passava, mais impaciente Thomas ficava. Afinal, onde estava Lady Sophia? Ele pedira para que ela não demorasse muito, e pelos seus cálculos, já a estava esperando há duas horas e pouco. Um sorriso nervoso esboçou em sua face enquanto ele se movia, tentando se aquecer para que a neve não congelasse seus nervos. Ela devia estar tentando despistar o pai, ou então atolada nos preparativos do casamento, que seria no dia seguinte. Olhou para o interior do estábulo novamente, se certificando de que os cavalos estavam bem, e sentiu uma ponta de desespero lhe invadir. E se algo tivesse dado errado? E se ela não conseguisse sair? Ou pior, se o Conde tivesse descoberto de alguma forma os planos de fuga da filha? Certamente ele ficaria transtornado, e Thomas temia o que poderia acontecer com ela caso isso ocorresse, pois conhecia o gênio tirânico e possessivo de seu Senhor.

Mil coisas passavam pela cabeça de Thomas, atormentando-o, zunindo em sua mente, e quando julgou que ficaria louco se tivesse que esperar por mais algum tempo, finalmente percebeu alguma movimentação vinda da estrada. Seu coração disparou, enquanto um enorme sorriso de felicidade e alívio se desenhava em sua face. Era ela! O plano daria certo afinal, e eles teriam uma longa vida para compartilhar juntos.

Thomas saltou para a estrada, acenando para que ela o visse. Porém, assim que o barulho tornava-se mais nítido, percebeu que o que ouvia era um trotar de cavalos se aproximando. Seu sorriso instantaneamente se apagou, e ele mal teve tempo para racionar. Quando os cavalos apontaram da estrada, Thomas pode ver o rosto da figura montada sobre o do meio e reconheceu-o no mesmo instante, pois estava no campo quando ele fizera sua visita de cortesia às terras do Conde para marcar território. Sentiu então o sangue congelar dentro das veias, percebendo o que aquilo significava. Engolindo em seco e sentindo a náusea crescer dentro de si, abandonou qualquer esperança de ver Lady Sophia naquela noite. Paris não iria chegar, porque ali, na sua frente, parava imponente o cavalo de Sir John Redruth, ladeado pelos seus capangas mal-encarados e olhando Thomas de cima com a sua pose de superioridade.

–É você, servo! – gritou ele, apontando acusadoramente para Thomas e juntando todo o desprezo de que era capaz em sua fala.

–Eu o que? – gritou ele de volta, encarando-o desafiadoramente, tentando camuflar o medo que lhe invadia.

Sir John saltou de seu cavalo e, com apenas um gesto, pegou Thomas pelo colarinho e o apertou com força, quase o erguendo do chão. Enquanto ele arfava, tentando se desvencilhar, pôde ouvir as gargalhadas dos homens que o acompanhavam.

–Achou que fosse escapar? – disse com um sorriso cínico.

Thomas tentou inutilmente se livrar do aperto, porém Sir John era muito mais forte do que ele, além de estar em vantagem. Quando conseguiu respirar, só pode articular algumas palavras.

–Não sei... Do que fala...

O burguês aplicou-lhe um soco na boca do estômago que fez Thomas se dobrar de dor. Enquanto isso, seus capangas desciam dos cavalos, se divertindo com o que viam.

–Cale a boca, pois você não passa de um inseto – insultou-o Sir John, vendo-o cair ao chão com o golpe que desferira.

–Assim não tem graça, mestre – disse um de seus empregados, se aproximando dos dois.

–É, o rapaz é fraco, logo estará acabado e não sobrará nada para nós – reforçou o outro, fitando Thomas com seu olhar de raposa velha.

–E o que mais eu deveria fazer com o homem que desonrou minha noiva? Com esse tipo de lixo que trai a família e a terra em que vive? – acusou ele, olhando-o com desprezo.

Thomas, ainda no chão, o olhou de volta, esforçando-se para esboçar alguma reação apesar de estar tremendo e de duvidar ser capaz de se manter de pé.

–Sua noiva? – chiou ele.

–Não se faça de desentendido, pois sabe muito bem do que falo. Você pretendia fugir com ela, não é isso? – esbravejou, deixando transparecer todo o ódio que sentia. – Está aqui há essas horas, aonde ninguém mais vem, coberto de neve e estalando de frio, esperando que ela venha! – concluiu, agachando-se junto a ele e o agarrando por trás dos cabelos com força.

Thomas agarrou o braço que lhe puxava e machucava seu couro cabeludo, tentando puxá-lo para baixo em desespero.

–Atreva-se a negar e eu lhe corto a garganta – emendou ele, olhando-o com frieza.

–O que fez com ela? – conseguiu dizer em um fio de voz assim que sentiu que o outro lhe dava alguma brecha.

Sir John olhou-o com ar de superioridade, forjando seu melhor sorriso de presunção.

–Assim estamos melhores, sem fingimentos. Ela está lá, dormindo como um anjo e pronta para se casar comigo, amanhã ao meio dia, como o combinado. Já você, irá comer poeira em minhas mãos.

Thomas tentou ignorar o tom de ameaça de Sir John e os murmúrios de seus capangas logo atrás. Precisava entender o que havia acontecido de fato. Com muito custo, conseguiu se levantar do chão para encarar seu algoz de perto.

–Isso não faz sentido.

–Se pensar bem, verá que faz todo o sentido. Ou você achou mesmo que alguém da classe dela iria abandonar um partido como eu para se juntar a um reles camponês, que não tem nada a oferecer além das mãos cheias de calos? Não me faça rir – desdenhou ele.

–Como soube? – quis saber Thomas, tentando absorver o discurso improvável.

–Ela mesma me contou. Veio me procurar hoje aos prantos, se dizendo muito arrependida de ter se deixado levar por você. Confessou-me tudo, inclusive a maneira vil com que a seduziu, fazendo-a entregar sua pureza antes do casamento. Estava desesperada, com medo de que eu a repudiasse diante de todos e implorou que eu a perdoasse, pois não suportaria viver com você na miséria, longe de todo o luxo que está acostumada, longe da família e vivendo em pecado, como uma herege...

–Isso é mentira! – gritou Thomas de repente, não aguentando mais ouvir aquele monte de baboseiras. – Lady Sophia jamais faria algo assim, eu a conheço!

–Ah! – exclamou Sir John, sorrindo cinicamente. – Será que conhece mesmo? Será que um servo ignorante pode saber o que se passa na mente de uma dama de sangue azul, delicada e bem educada como ela? O que é que você sabe sobre a nobreza?

–O suficiente para saber que Lady Sophia só se casaria com um arrogante e prepotente feito você se fosse obrigada a isso.

Sir John sentiu o sangue ferver de raiva com tal insulto, puxando seu punhal da cintura e partindo pra cima de Thomas.

–Vai pagar caro por isso, desgraçado!

Thomas conseguiu desviar do primeiro golpe, e enquanto Sir John recuperava sua arma, aplicou-lhe um soco certeiro no rosto. Por um segundo, Thomas sentiu-se vingado e achou que tivesse alguma chance de vencê-lo. No segundo seguinte, porém, uma dor aguda e latente o atingiu em seu ombro direito, e quando ele tocou no local com os dedos, sentiu algo viscoso molhar sua mão. Sangue. Misturado com a ponta afiada do punhal que agora atravessa sua carne. De algum modo, Sir John, que era muito habilidoso devido à vasta experiência que extraíra de suas viagens, conseguira cravá-lo em Thomas com precisão, e ele teve que ser forte para não sucumbir à dor.

Olhando para trás, viu que os capangas se aproximavam para ajudar o patrão a pegá-lo. Pensando rápido, avaliou sua situação atual e concluiu que se ficasse parado, seria surrado sem chances de se defender. Ignorando a dor em seu ombro, Thomas jogou todo o peso de seu corpo em cima de Sir John, empurrando-o para longe e abrindo espaço para que ele corresse, fugindo em direção da floresta.

–Mestre? – chamou um dos homens de Sir John.

–Peguem-no! – ordenou ele com expressão assassina.

Os dois se olharam, sorrindo de satisfação por finalmente poderem entrar em ação, e seguiram para onde Thomas havia se embrenhado na mata.

Com a mão esquerda sobre o ferimento e correndo muito além do que podia, Thomas contava com o fato de que conhecia aquele lugar como a palma de sua mão, tentando acreditar que poderia lhe dar alguma vantagem sobre os capangas de Sir John. Perdeu as contas de por quantas árvores passou, e quando sua visão começou a escurecer, viu-se obrigado a diminuir a marcha. O sangue continuava a descer farto e seu corpo já sentia o efeito. Seus passos vacilavam e a neve apenas piorava a situação, fazendo com que seu ombro ardesse em brasas. Quando viu que iria cair, teve que parar, escorando-se em uma das árvores. Passou a mão novamente na ponta de metal atravessada e respirou fundo, levando a mão para as costas e puxando o punhal pelo cabo até que conseguiu desprendê-lo da carne e tirar de seu corpo por inteiro. Quase gritou de tanta dor, mas fez o possível para sufocar sua agonia.

Jogando o objeto ensanguentado sobre a neve, tentou retomar seu caminho, porém os passos de seus perseguidores já estavam bem próximos, e tudo que ele pode fazer foi tentar se ocultar nos troncos das árvores, na esperança de que passasse despercebido. Ouvindo-os de perto, ficou imóvel, sem fazer um único barulho, e esperou que eles passassem. Infelizmente, seu sangue sobre a neve branca já o havia denunciado.

Assim que os viu, Thomas soube que a guerra já estava perdida. Não adiantava mais fugir para lugar nenhum, pois além de estar em desvantagem, seu ferimento o enfraquecia, tornando qualquer reação impossível. Estava totalmente à mercê de Sir John e sua morte era apenas questão de tempo.

–Ele está aqui, mestre! Nós o encontramos! – gritou um deles para a floresta, enquanto o outro se aproximava devagar, apreciando o sabor da vitória.

Apesar de sua péssima condição, Thomas os encarou com dignidade, e eles vieram para segurá-lo junto do tronco, aguardando pela chegada do patrão. Se tinha que encarar a morte, a encararia de cabeça erguida, sem arrependimentos.

Quando Sir John os achou, ainda tinha o sorriso presunçoso estampado na face. Olhando para Thomas como se ele fosse um inseto, se aproximou de forma ameaçadora.

–Segurem-no bem, quero olhar para o rosto desse infeliz enquanto lavo a honra de minha noiva – ordenou ele, arregaçando as mangas e sem se importar com o fato de sua presa mal conseguir ficar de pé.

–Se vai me matar, faça logo – disse Thomas, enchendo-se de coragem.

–Porque a pressa? – zombou o outro com uma gargalhada de escárnio. – Quando eu acabar você estará morto, mas antes quero que sofra até o último suspiro.

O primeiro soco o atingiu no rosto, do mesmo modo como Thomas o atingira anteriormente. Ele sentiu dois de seus dentes quebrarem em sua boca, e os cuspiu na neve junto com um punhado de sangue.

–Esse foi por ter me acertado – anunciou Sir John, logo em seguida o chutando entre as pernas. – Esse foi por ter se deitado com a minha noiva. E todos os outros que irá receber agora serão para aprender o lugar ao qual pertence – concluiu, sem emoção alguma, indicando que seus homens o segurassem com mais força.

Thomas ainda tentou lutar, inutilmente se contorcendo e puxando seus braços pra baixo, pois cada um deles era esticado em sua extremidade, o obrigando a ficar de pé e de peito aberto para receber sua sentença final.

Sir John honrou a fama de guerreiro, atingindo Thomas com uma sequência ininterrupta de socos e chutes, e só descansou quando achou que sua vítima fosse desmaiar. Sorrindo friamente, ergueu a cabeça de Thomas com as pontas dos dedos e se aproximou de sua orelha.

–Se acha que conhece Lady Sophia, saiba que foi ela quem o entregou a mim. Ela me disse onde o encontraria, caso contrário jamais teria estado aqui. Apenas me pediu para ter compaixão e deixá-lo vivo, mas ela não precisa saber o que houve aqui – e olhando nos olhos torturados de Thomas, aplicou-lhe o golpe final. – Ela traiu você, da mesma maneira com que traiu a mim.

Ele não mais sorria. Apenas olhava, vazio de emoções, para a figura deplorável em que Thomas se tornara. Cada parte de seu corpo ardia terrivelmente, e cada ferida aberta se esvaía em sua tortura. A dor era insuportável e Thomas sentia sua vida indo embora junto com o sangue quente que lhe escapava e escorria pela neve, manchando o branco com o seu próprio sofrimento. Contudo, aceitaria seu destino de bom grado não fosse pela punhalada em sua alma ao saber que Lady Sophia o traira.

Mal sentindo suas próprias pernas, Thomas abandonou o corpo, deixando que o pendessem em seus braços. Em um gesto de autorização de Sir John, os homens o jogaram ao chão e o chutaram a seu bel prazer, gostando de ver o sangue se espalhar ao seu redor. Thomas, porém, sentiu apenas uma meia dúzia deles. Fraco como estava e totalmente sem esperanças, desistiu de lutar para manter sua consciência, e logo já não podia sentir mais nada porque sua alma não habitava mais aquele lugar. Estava morto, e tinha perdido Lady Sophia para sempre.

Os homens olharam para Sir John quando enfim se cansaram de chutar o peso morto, esperando que ele desse novas ordens.

–Verifique o pulso – disse a um deles.

O homem examinou Thomas, o cutucando e pressionando seu pulso. Não sentiu nada.

–Está morto – oficializou.

Sir John sorriu, satisfeito e orgulhoso por mais uma vitória.

–Vamos embora, ainda tenho um casamento para comparecer amanhã.

Os homens assentiram e os três voltaram para junto dos cavalos, deixando o corpo de Thomas e a floresta para trás. O que nenhum deles poderia imaginar era que o crime que praticaram tivera testemunha, uma que os observava de longe, atraída pelo cheiro do sangue fresco exposto. Um urubu à espreita.

***

Lady Sophia Straw se casou no dia mais frio daquele ano. Enquanto entrava na igreja, andando com dificuldades devido à dor que ainda sentia em cada parte do corpo, julgou que pelo menos aquilo serviria para esconder seus hematomas. De véu e com seu vestido de várias camadas, ninguém perceberia nada. Olhou para o lado. Seu pai sorria alegre como se nada tivesse acontecido. A verdade era que quando chegara em casa de seu encontro com Thomas, o conde a esperava totalmente transtornado e com a cinta nas mãos. Sophia até tentou fugir, mas nunca na vida tinha visto o pai tão determinado e com tanto ódio. Após persegui-la pela casa, ensandecido e xingando-lhe por nomes horríveis, a trancara em seu quarto e aplicara-lhe a pior de todas as surras de que se tinha notícia. Só parou quando suas próprias mãos, que tremiam de raiva, começaram a sangrar pela força e intensidade com que segurara a cinta durante o processo. Quando seus berros de súplica e de perdão se fizeram ouvir como uma maldição, todos na casa ficaram espantados com a crueldade do conde, inclusive Berith, que fora quem a denunciara. Jamais havia visto o pai tão fora de si. Por pior que fosse o crime de Sophia, jamais imaginou que ele pudesse ter uma reação tão exacerbada, e sua cólera a assustava. O único que se atreveu a intervir fora Paul, tentando afastar o pai da irmã. Porém, o mesmo acabou apanhando também.

Sentindo o puxão do pai, Sophia se viu sendo arrastada até o altar, mal notando o lugar e as pessoas a sua volta. Só queria que aquilo terminasse logo. Ao ser entregue para Sir John, fitou-o por debaixo de seu véu, sabendo que ele seria o único que veria seu estado deplorável ao erguê-lo para beijá-la. Após ser trancada no quarto por seu pai, Sophia desabou ao chão, lavando os tacos de madeira com o próprio pranto. Algum tempo depois, alguém tivera a ideia de chamar seu noivo e contar-lhe o que tinha acontecido. O conde autorizou somente a sua entrada no quarto e Sophia, temendo o que o pai pudesse fazer contra Thomas se o achasse, fez um acordo com Sir John. Se ele fosse até o local da fuga e o avisasse do perigo que corria, permitindo assim que Thomas fugisse sem ela e que se salvasse, ela se casaria com ele, aceitando enfim o destino que a vida lhe impusera.

Assim, ao aceitá-lo diante de padre Bernard, e de toda a Saint Shadow, Sophia ignorava o fato de que o único homem a quem amara estava morto e que fora assassinado por seu futuro marido, o mesmo homem que agora lhe oferecia palavras vazias e sorrisos dissimulados.

A cerimônia seguiu-se apática, e Sophia mal se lembraria dela anos mais tarde, tendo aquele dia passado por ela como um borrão surreal que não tivesse feito parte de sua existência.


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