Coração Sangrento escrita por Emmy Tott


Capítulo 6
Quanto mais rápido, melhor




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Estabelecido em Saint Shadow com os dois cães de caça que eram os seus empregados, Sir John tinha pressa. Detestava ter que ficar em cidade tão desprovida de divertimentos e de gente importante, sobretudo tendo que dormir na estalagem local, lugar simples e de poucos recursos, mas por aquele casamento seu sacrifício valeria à pena. Depois do matrimônio, seria recebido de braços abertos pela Corte e teria enfim a realização de seus propósitos e uma vida gloriosa. Lady Sophia Straw era o seu esteio para a alta sociedade, por isso ele precisava acelerar o processo.

Naquela manhã, o burguês não fez questão de ver sua noiva. Não tinha tempo para flertes, nem paciência para romper o enorme muro de bloqueio que Sophia havia posto entre eles. Ao ser recebido por Nancy, pediu que falasse ao conde, sendo atendido com prontidão. O conde, por sua vez, faria o que fosse possível para agradá-lo e para não correr o risco de que o pretendente desistisse de sua filha.

–Milord! – cumprimentou ele com uma reverência.

–Como vai, meu caro? Espero que suas intenções continuem firmes, pois ouvi dizer que não quis ver minha Sophia hoje.

–Pelo contrário, milord. Apesar de sua filha se mostrar um tanto arredia em minha presença, quero que esse casamento saia o mais breve possível.

–Sophia está melancólica com a ideia de se casar, mas isso são coisas da juventude e tudo se arranja – desculpou-se o conde com um sorriso afetado. – Mas me alegra o entusiasmo demonstrado, que de minha parte também espero que tudo se dê no mais curto prazo. O que vem de Deus nada pode atrapalhar, meu jovem.

Sir John concordou com a cabeça em um gesto curto e firme.

–Nesse caso, devemos falar com o padre da paróquia para acertarmos a data e iniciarmos logo os preparativos.

–Nada me alegraria mais! – exclamou o conde exaltado. – Venha comigo que mandarei Qwilleran preparar o Landau.

Os dois saíram do recinto apressados, Sir John logo atrás de Stanislau, que por sua vez fora acompanhar de perto o trabalho do velho Qwilleran. Nenhum dos dois, em sua caminhada particular por seus próprios interesses, reparou que Sophia os assistia de longe com tristeza na alma. Estavam indo decidir sobre o seu futuro e sequer perguntavam sua opinião sobre aquilo tudo, como se ela fosse feita de algum material invisível e insondável. Só lhe restava esperar em casa pelo veredicto final de morte. Em sua mente, a visão de Paul se torturando na calada da noite ainda lhe doía como fogo em brasas, e ela estava dividida entre o irmão e o sonho de liberdade. Quando o Landau enfim partiu, deixando pra trás uma Sophia de cinzas, nenhum daqueles homens poderia supor que em seu peito, seu coração sangrava em silêncio.

***

Àquela altura, a sacristia estava mergulhada em completo silêncio. Viv’alma não havia, e o conde teve que mandar chamar ao padre Bernard. Enquanto esperavam, Sir John pôde notar o luxo da igreja. Apesar de se localizar em um lugar tão miserável, os quadros, imagens, crucifixos e demais adornos eram todos ornados em ouro, para mostrar a potência da Igreja Católica. Do teto abobadado, anjos e querubins os observavam com olhos de safira, que certamente valeriam mais do que qualquer outra peça que pudesse ser encontrada em alguma parte das redondezas. E como sempre fora, enquanto em casa o povo passava fome e frio, a igreja pregava sermões vestida de seda e rubis. Aí estava a sua justiça divina e a caridade cristã.

Alheio a tais observações mundanas, o pároco os recebeu de braços abertos e um sorriso bondoso estampado na cara. O conde e seu convidado, muito católicos, beijaram as mãos estendidas do padre, pedindo a bênção de Deus.

–Deus os abençoe, meus filhos – sacramentou ele, demonstrando-se muito satisfeito ao ver em sua casa seu fiel mais ilustre (e o mais generoso deles). – Que bons ventos os trazem à casa de Deus assim tão cedo?

–Viemos para tratar de um assunto muito importante e que afeta diretamente a todos nós – começou o conde, com pompa e circunstância. – Permita-me que lhe apresente Sir John Redruth, burguês muito bem estabelecido em Bristol, cavaleiro da Rainha e mais recentemente, noivo de minha filha Sophia – concluiu com um gesto indicando o homem ao seu lado, muito orgulhoso de sua escolha.

–É um imenso prazer conhecê-lo, senhor pároco – cumprimentou Sir John com um sorriso brilhante.

O padre então exibiu seu sorriso amarelado de condescendência.

–A recíproca é verdadeira, meu rapaz. E se o assunto está relacionado, devo supor que muito em breve teremos uma grandiosa cerimônia, estou certo? – perscrutou o padre, voltando-se para Satanislau.

–Perspicaz como sempre, senhor pároco! – exclamou o conde. – Estamos aqui justamente para deixar reservado a data mais próxima, que aqui nossos pombinhos têm muita pressa em contrair suas núpcias – acrescentou, com uma piscadela de cumplicidade para Sir John.

–Realmente estou ansioso para desposar tão fina dama e começar logo a vida de casado, com filhos e a bênção da igreja.

Padre Bernard fez um gesto brando com as mãos.

–Meus filhos, não precisam me pedir duas vezes, que faço tanto gosto nesse casamento quanto os senhores. Deixe-me apenas pedir ao coroinha que busque a agenda e veremos a data que seja a mais próxima possível.

O coroinha incumbido, que era um molecote de doze anos, foi e voltou com o caderno num piscar de olhos. O padre indicou aos homens que se sentassem enquanto ele fazia o mesmo e ajeitava óculos para examinar o conteúdo de suas anotações. Ao percorrer as linhas com o dedo gordo, lendo em voz em voz baixa, o conde reparou em como o sacerdote tinha envelhecido. Sua pele enrugada e as manchas nela amarronzadas denunciavam sua condição precária, e o conde temeu por sua própria aparência. Embora fosse anos mais jovem que padre Bernard, por tanto tempo fora desleixado com sua figura, que a idade já lhe cobrava o peso em suas costas.

Após folhear o caderno, riscar alguns eventos e remarcá-los em outro local, o pároco parecia enfim ter achado o dia certo para o matrimônio.

–Aqui está! – anunciou ele, estendendo o caderno para que seus visitantes pudessem vê-lo. – Vejam se estão de acordo.

–Parece-me bem razoável – aprovou o conde, logo lançando um olhar indagador para Sir John.

–Embora tenha vontade de me casar amanhã mesmo, sei que ainda temos muito o que arranjar e nesse prazo daremos conta do recado – concordou ele, sorrindo e dando o assunto por encerrado.

O padre lhes sorriu de volta, tirando os óculos com alguma dificuldade. O conde pôde notar seu aspecto cansado ao fazê-lo.

–Será uma honra e um privilégio poder celebrar esse casamento – disse com voz sonhadora e distante. – Acompanho o desenvolvimento de Lady Sophia desde quando nasceu e agora poderei encerrar minha carreira com a consciência do dever cumprido, estando ela muito bem encaminhada.

Aquilo era inesperado.

–O que quer dizer, senhor pároco? – Quis saber o conde, confuso com tais palavras.

–Eu estou velho e minha saúde já não ajuda mais, como vê. Escrevi para o Vaticano recentemente pedindo o afastamento, então seguirei com minhas obrigações até que eles enviem um novo sacerdote que possa ocupar meu lugar.

–Não fazia ideia... – tornou o conde, muito abalado. – Será uma grande perda não ter mais suas palavras de alento, sempre tão solícito e generoso, o que será de Saint Shadow sem o seu líder religioso a lhe guiar com mãos firmes?

–Não seja tão pessimista, milord, que não deixo a cidade à mercê da própria sorte. Tenho absoluta certeza de que o Vaticano nos mandará um homem muito bem preparado e formado para guiar nosso rebanho pelos caminhos de luz. Além do mais, Saint Shadow jamais estará desamparada, lembre-se de que Deus não se esquece nunca de seus filhos, que está nos olhando de cima com benevolência a quem segue seus trilhos e suas palavras.

O conde considerou aquilo, mas não pôde deixar de se abater com a notícia.

–O senhor tem razão, é claro... Mas ainda assim, é uma lástima ter que nos deixar, e duvido muito que outra pessoa consiga ocupar o lugar do senhor pároco com tanta sabedoria. Por esses anos todos, sempre cuidando de seu povo, acalentando aos necessitados, dando conselhos e cuidando para que as famílias não se desvirtuassem.

O padre ficou tocado com o discurso do conde, e não adiantou reforçar, dizendo que não fizera mais do que seu dever de cristão, e que não era tudo aquilo que o outro estava dizendo, pois o novo padre agiria da mesma com que ele procedia há anos. O fato é que nada conseguiu consolar Stanislau, e ele partiu junto de Sir John arrasado com a notícia da perda daquele que julgava o melhor líder religioso de todos os tempos.

Ao chegar em casa, Sophia e Berith esperavam na sala, mas o conde passou direito por elas, indo se trancar em seus aposentos para se lamentar pela saída do pároco.

–O que houve com ele? – Quis saber Sophia, mostrando-se preocupada.

–Tivemos notícias de que o pároco, padre Bernard, vai se aposentar porque está com a saúde debilitada. Seu pai ficou muito sentido ao saber que terá de ser substituído por outro sacerdote – explicou Sir John às moças.

–Sempre tão melodramático – reprovou Berith.

–Não diga uma coisa dessas, Berith – retorquiu a irmã. – Papai só está preocupado com o futuro de Saint Shadow.

Ela deu de ombros, como se não se importasse.

–Mas então isso significa que teremos que adiar o casamento? – perguntou ela a Sir John, sentindo as esperanças crescerem dentro de si.

–De forma alguma. Teremos tempo o suficiente para arranjar tudo antes que ele deixe o cargo. Padre Bernard faz questão de celebrar o matrimônio como último ato de suas atribuições – concluiu ele com um sorriso triunfante.

Sophia apenas balançou a cabeça em concordância, abandonando suas esperanças.

–Agora se me permitem, ainda tenho muito a fazer – disse ele a guisa de despedidas. – Até mais ver, senhoritas!

–Até mais ver – respondeu Berith no lugar da irmã, pois esta parecia distante demais para pensar em se despedir do próprio noivo.

Bastou ele dar as costas para Berith se virar para a irmã com pose superior e começar a destilar o seu veneno.

–Tem gente que não sabe mesmo dar valor ao que tem. Se fosse comigo, jamais deixaria meu noivo sair assim sem ao menos despedir-me dele.

–Não mesmo, pois se fosse você, teria se atirado aos braços dele, não é, Berith? – devolveu Sophia, perspicaz.

A moça então armou-se de um sorriso pretensioso.

–Antes pecar pelo exagero de demonstrações afetuosas que pela ausência delas. Mas não parece temer que ele perca o interesse em você, deve ter feito um trabalho muito bem feito no dia do baile para estar tão segura de si.

–Do que é que está falando? Sabe muito bem que nunca quis esse casamento – replicou Sophia.

–Isso é o que diz, mas a verdade é bem outra. Gostaria de saber o que Sir John faria se descobrisse a farsa que você é. A santa e imaculada Sophia – ironizou ela.

–Agora está delirando.

–Não é delírio, são os fatos irmãzinha.

–Que fatos? – tornou ela, perdendo a paciência. – Vamos, diga logo o que está tentando insinuar!

Berith riu com malícia, deliciando-se pela reação da irmã. Sophia era tão tonta que mal se dava conta da armadilha que preparavam para ela até que já estivesse completamente dentro dela, e Berith adorava fazê-la sair do sério.

–Acha que não vejo quando sai à noite? Acha que não percebo o quanto fica tensa e espera até que todos estejam dormindo profundamente para burlar as regras de papai? Pra onde você vai, Sophia? Pra onde a santa Sophia vai na calada da noite, sem que ninguém saiba?

Sophia estava branca como papel. Não poderia imaginar que a irmã fingisse dormir para poder espioná-la, e o fato dela saber sobre o seu segredo colocava a ela e Thomas em um perigo terrível. Com as ambições de Berith, não era muito difícil que ela contasse algo para o pai ou para Sir John.

–Isso não é verdade... – começou ela, tentando dobrar a outra. – O que você viu deve ter sido sonho ou...

–Não tente me enrolar, pois sei muito bem o que vi para saber que se trata da mais pura verdade. Está se encontrando com ele de novo, não está? Com Thomas! Não tem vergonha?

–Por favor, Berith, não conte nada a ninguém, eu lhe imploro!

–Porque eu faria algo assim por você? Não vê que está atirando o nosso nome na lama? Como pode estar de casamento marcado com um e ir se encontrar com o outro? Ainda mais, com ele! Ele é um camponês, que horror! – reprovou ela, com voz horrorizada.

Sophia olhou para os lados, amedrontada.

–Não diga algo assim aqui, por favor, alguém pode nos ouvir – pediu ela em um fio de voz.

–Pois era o que devia acontecer para todos saberem a bela bisca que você é!

–Mas se você contar, Sir John nunca mais vai querer saber de nenhuma de nós.

–Como assim? – surpreendeu-se ela com o novo rumo da conversa.

–Não queria se casar com ele? Pois então, não conte nada sobre Thomas e tem a minha palavra de que não irei me casar.

–Como é que pretende fazer isso? Não me diga que vai fugir com ele... – começou ela em tom desdenhoso, até perceber que o que acabara de dizer fazia sentido. – Você vai fugir com ele? – repetiu, extremamente chocada.

–Sir John quer se casar pelo nosso título de nobreza, ele quer fazer boa figura diante da Corte para conseguir o que quer, ele vai acabar aceitando casar-se com você quando constatar que não poderá mais ter a mim.

–Fugir com o camponês, que horror... – repetiu ela, distante.

–Berith! – exclamou Sophia, chamando a irmã à realidade. – Ouviu o que eu disse?

–É claro, não sou surda – indignou-se ela. – Mas nada lhe garante que ele vá mesmo se casar comigo, ele pode simplesmente desistir e ir embora. Não somos as únicas com sangue azul na Inglaterra.

–Sir John é um homem prático, não vai querer perder mais tempo procurando pela noiva ideal quando pode resolver tudo se casando com você. Não viu hoje o quanto ele tem pressa?

Berith considerou aquilo por um momento. Quando enfim resolveu falar, sua voz era firme e ameaçadora.

–É melhor estar certa, Sophia, caso contrário, não irei perdoá-la jamais!


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Notas finais do capítulo

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