Coração Sangrento escrita por Emmy Tott


Capítulo 10
A transformação




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"Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênese da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.

 

Produndissimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância...

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

 

Já o verme - este operário das ruínas -

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!"

Augusto dos Anjos – Psicologia de um vencido

 

Deixemos um pouco de lado a triste vida que Sophia teria ao lado do marido para nos voltarmos a um aspecto mais interessante de nossa história. O leitor deve estar se perguntando por que Thomas, que era uma das figuras centrais de nossa narrativa, teve de morrer. Bem, de fato ele encontrou seu fim muito precocemente, mas isso não é tudo. Às vezes, temos que morrer de certa forma na vida para renascer de outro modo. Assim é que a morte, o fim para muitos, para outros não passa de um novo berço. Sim, Thomas estava morto. Porém a morte era apenas um lado da moeda, uma vez que ele renasceria como um ser totalmente estranho para si próprio. Se vier comigo, eu lhe mostrarei agora o outro lado da moeda para Thomas...

Não fazia a mais ínfima ideia de quanto tempo esteve inconsciente. Tudo que lhe acontecera parecia-lhe agora muito distante, como se tivesse sido parte de uma outra vida, de um outro Thomas. Não sentia mais frio e as dores em seu corpo haviam cessado completamente. Aliás, não se lembrava de algum dia ter se sentido tão leve quanto agora. Era como se seu corpo fosse feito de plumas. O único incômodo em seu novo estado era uma estranha ardência em sua garganta, que queimava como que o alertando para algo que Thomas não entendia, nem sabia como explicar. Ao apalpar seus braços, dorso e pernas, em busca de algum ferimento ou cicatriz deixado por Sir John, deu-se conta de que seus olhos ainda estavam fechados e só então se lembrou de abri-los. Ao fazê-lo, notou que, apesar da escuridão que pairava a sua volta, seus olhos podiam captar com clareza cada detalhe do ambiente em que estava.

Era um quartinho lúgubre e minúsculo, e Thomas pôde ver cada poro dos tijolos das paredes toscamente emparelhadas. Pôde ver além: três aranhas teciam seus ninhos logo acima de sua cabeça, formigas carregavam terra em fileira para um buraco ao lado esquerdo da única porta do recinto, e uma ratazana enorme e peluda roía o que parecia ser os restos de um queijo duro e fedorento. Thomas piscou várias vezes, tonto por aquela visão quase mágica. Seus ouvidos captavam vozes alegres e bêbadas, que apesar de estarem longe, para os seus novos sentidos era como se estivessem bem atrás da porta descascada pelo tempo. Podia até mesmo sentir seus batimentos cardíacos. Tudo a sua volta pulsava com vida e intensidade que Thomas jamais imaginou ser possível. Examinou seu corpo ainda deitado, constatando que realmente não havia nenhum sinal ou marca da violência sofrida. Talvez estivesse mesmo morto, afinal. Fechou os olhos novamente, deixando-se invadir pela estranha sensação de conforto ao estar mergulhado em trevas. Só então sentiu outra presença, quase imperceptível, no quarto. Estava imóvel, parado logo atrás da cama em que o colocaram, mas ao inclinar-se sobre ele, Thomas percebeu claramente que não estava sozinho e saltou para fora da cama de um pulo, pronto para atacar quem quer que fosse.

Duas mãos de papel o seguraram antes que Thomas despencasse ao chão pela tontura com o movimento brusco e só então ele o viu. Vestia um sobretudo extravagante e tinha uma cartola na cabeça. Seus grandes olhos avermelhados o fitavam sem vida e em seus lábios desenhava-se um sorriso que beirava à loucura. Era ninguém menos que Jack Hawkins.

—Vá com calma, que estava muito fraco quando o resgatei – recomendou ele, guiando-o de volta para a cama. – Cheguei a pensar que o havia perdido, veja só. Você sabe, não são todos em seu estado que aguentam passar pela transformação.

Sentado sobre a cama, Thomas o olhava atônito.

—Quem é você? E de que transformação está falando?

—Ah, que falta de modos a minha! – disse ele com falso arrependimento na voz. – Tenho o observado por tanto tempo que acabei por esquecer que ainda não fomos oficialmente apresentados: Sou Jack Hawkins, ao seu dispor – anunciou, tirando a cartola em uma dramática reverência.

—Me observado? – repetiu Thomas, ficando imediatamente em alerta. – Então só pode ser um dos homens de Sir John. O que ainda querem comigo depois de quase terem me matado?

Jack Hawkins revirou os olhos, adotando um tom cansado de quem tem que explicar o óbvio.

—Meu jovem, caso ainda não tenha percebido, se não fosse por mim você estaria mesmo morto há essas horas. E eu o observava porque praticamente estava pedindo para morrer ao se encontrar com aquela moça.

—Sophia... – murmurou Thomas com o olhar distante. Depois de tê-lo delatado para Sir John, ele não conseguia mais chamá-la por Lady.

—Sim, esse era o nome – disse Jack, dando ares de pouca importância. – Mas voltando ao tópico em questão, você só está aqui agora graças a mim.

—Pois seria melhor que me tivesse deixado morrer – tornou Thomas com amargura. – Minha vida pouco me importa agora.

—Não seja tão dramático, que não o resgatei para isso – disse, sentando-se ao lado de Thomas e o envolvendo pelos ombros com intimidade. – Você não precisará mais de sua vida antiga, pois lhe mostrarei um mundo totalmente novo, e você ficará tão chocado que logo não se lembrará mais do que lhe ocorreu no passado.

—Do que está dizendo? – questionou Thomas, retirando a mão de seu ombro. – Isso tem a ver com aquela transformação que disse?

Jack soltou uma risadinha maliciosa, o encarando misteriosamente.

—Ah, tem sim – disse, evasivo.

Thomas olhou para o seu corpo, e de novo para Jack, tentando entender.

—Sinto como se algo tivesse mudado dentro de mim. Como se esse corpo não pertencesse mais a mim, mas a um estranho. Meus sentidos estão aguçados e não sinto mais dor alguma. O que fez comigo?

—Sim, e o que mais? – disse Jack, ignorando a pergunta. – Sua garganta, como está?

Thomas imediatamente levou a mão direita para ela.

—Queimando como brasa.

Jack sorriu felinamente para o que pretendia transformar em seu novo pupilo.

—Isto é sede – indicou ele.

Sem mais delongas, Thomas correu para fora do quarto, indo mergulhar sua cabeça em um lago ali perto, que pôde sentir pelo balanço da água. A água desceu em seu corpo como chumbo e, por um breve momento, pensou que estivesse envenenada. Sua garganta continuava a arder como antes.

A gargalhada de Jack o fez se virar para encontrá-lo ao seu lado, com uma expressão de diversão em sua face.

—Eu disse sede. Não de água – disse, fazendo uma pausa dramática. – De sangue!

—Como é? – Tornou Thomas muito assustado, julgando que decerto deveria ter ouvido errado.

Para o seu horror, viu Jack arreganhar os lábios, deixando a mostra seus caninos, que agora sobressaiam aos demais, pontudos e salientes. Ele os levou até o pulso esquerdo, mordendo com força e fazendo brotar um filete de sangue, ignorando os protestos escandalizados de Thomas.

—Beba – ordenou Jack autoritário, aproximando o pulso sangrento de Thomas.

—Você é um monstro! – acusou ele, olhando assustado para o pulso do mesmo.

Jack sorriu pretensioso.

—Eu nunca disse o contrário – e balançando o pulso levemente nas narinas de Thomas. – Agora vamos, não queremos desperdiçar uma gota do nobre líquido.

Com espanto, ao aspirar o odor de ferrugem que o fino carmim exalava, percebeu que ele lhe atraía, e vendo que escorria pelo braço de Jack, foi arrastado por uma força invisível a agarrar aquele pulso e fincar suas presas, que sentira crescerem ao inalar o cheiro forte, na carne gélida de Jack. Então sugou todo o sangue que podia para si.

Sentiu imediatamente um alívio na garganta, e na medida em que o líquido quente ia descendo, se espalhando pelo corpo, sentia como se cada célula vibrasse com a irrigação do sangue. Seu coração, que não se recordava tê-lo sentido vivo desde quando acordara, voltou a bater, comandando as engrenagens de todo o seu organismo. Ele, porém, continuou a beber, sentindo-se mais vivo a cada sugada. Ansiava por aquela sensação de êxtase que o sangue lhe proporcionava, e para isso tinha de absorvê-lo por completo. Quando Jack tentou afastá-lo, agarrou-se mais junto ao seu braço, recusando-se a deixá-lo. Deixou que o torpor tomasse conta de seu corpo e lentamente sua consciência ia lhe abandonando, deixando em algum lugar esquecido entre a vida e a morte. De repente, uma forte pancada o atingiu na nuca, o derrubando ao chão e fazendo-o voltar à tona. Foi só então que viu Jack parado, fazendo alguma coisa com o pulso para que parasse de sangrar e o olhando com reprovação.

—Você tem que saber a hora de parar – falava ele. – Muitos vampiros enlouqueceram por tomar o sangue de suas vítimas até a última gota. Pare quando se sentir satisfeito, prolongar é tolice.

Thomas o olhava enfeitiçado. Só conseguira distinguir uma única palavra de tudo o que Jack lhe dizia.

—Vampiros? É isso o que você é, um vampiro?

Lembrava-se de ter ouvido algo sobre vampiros em sua infância, de que eram seres sem alma que vagavam pela noite, matando e sugando o sangue dos que andavam distraídos, mas até aquele momento isso era fantasia. Não passavam de histórias assombradas que os senhores contavam para amedrontar as crianças e assim inibir que andassem pela noite cometendo pequenos furtos e fazendo traquinagens. Jamais imaginou que tais histórias pudessem ser reais, e a menos que não tivesse presenciado com os próprios olhos, diria que aquilo era um absurdo sem tamanho.

—Sim, é o que sou: um vampiro – anunciou Jack, analisando atentamente as reações de Thomas. – E desde que o resgatei, é o que você também é.

—Impossível! Isso simplesmente não pode ser real.

—Não só pode como é, meu caro. Mas não me olhe com essa cara. Sua pulsação estava tão fraca quando aqueles humanos o deixaram que eles mal conseguiram senti-la. Não teria chances de sobreviver se eu não tivesse feito o que fiz.

Thomas considerou aquilo por um momento, lutando internamente contra a verdade explícita das palavras de Jack.

—O que isso significa exatamente? – disse lentamente. – O que significa ser... Como você? – completou, preferindo não se referir a ele como vampiro.

—Eu poderia dar milhares de explicações, usar diversas definições, de diversos modos, sem que nenhum deles estivesse totalmente correto. Por hora, o essencial é saber que deve se alimentar regularmente de sangue e toda noite, antes do sol nascer, deve se esconder da claridade em seu caixão, pois os raios solares o queimariam até que virasse cinzas. De resto, terá a eternidade inteira para descobrir as várias significações do que é ser vampiro.

—Desculpe, caixão? – perguntou Thomas, julgando que a ideia de dormir em um lhe parecia inconcebível.

—É claro, eles são muito úteis se não quiser fritar no sol, e também para poupar energias e ficar oculto para os humanos – explicou ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo se esconder em um caixão durante o dia. – Eu tomei a liberdade de arranjar um pra você, está escondido no porão do quarto.

—Obrigado, eu acho – disse Thomas, sem muita convicção.

—Ora, vamos, você só precisa se acostumar com a ideia.

—Pode ser... Mas como é que ninguém desconfia de nada?

—Eu pago muito bem ao estaleiro para que ele não faça perguntas. E mesmo assim, se fizer, eu tenho meios de fazê-lo ficar calado. – Completou Jack com um riso feroz.

Thomas o olhou com atenção. Ele não tinha dúvida alguma dos meios de Jack. De repente, uma ideia lhe saltou à mente.

—Eles se casaram mesmo, não foi? Sophia e Sir John?

Jack parou de rir no mesmo instante.

—Porque está perguntando isso agora?

—Apenas responda.

O vampiro o fitou com olhos insondáveis. Após um longo minuto que a Thomas pareceu uma eternidade, disse finalmente:

—Suponho que sim.

—Não entendo bem no que me tornei – começou ele lentamente. – Mas me sinto forte, mais veloz e mais letal do que qualquer coisa que tenha visto, e só de pensar em Sophia casada com ele me dá vontade de estraçalhar aquele miserável.

Jack o observava atentamente e negou com a cabeça.

—Vamos com calma, está muito cedo para vinganças. Você acabou de passar por uma transformação complicada, eu mesmo cheguei a acreditar que não voltasse.

—Mas...

—Mas nada – cortou Jack. – Ainda está fraco e tem muito que aprender sobre a sua nova condição. Tempo é o que não lhe falta agora, então saiba esperar pelo momento certo.

—E quando será isso?

Jack segurou em seu ombro e fitou seus olhos de maneira sombria.

—Algum dia – disse, em tom que não dava brechas para contestações. – Agora, se me fizer o favor de voltar para o quarto e se trancar em seu caixão, eu ainda tenho que sair para caçar alguma coisa, sabe, alguém quase me esgotou hoje mais cedo – satirizou ele.

—Quando você diz caçar... Quer dizer uma pessoa?

—Exato.

—Então para sobreviver precisamos matar outras pessoas? – quis saber ele, muito espantado.

Jack o avaliou por um momento, como se decidisse se contaria logo a verdade ou não, uma vez que Thomas ainda estava muito ligado a sua humanidade e poderia se chocar com o que ouviria dele.

—Nem sempre – respondeu por fim.

O novato pareceu mais aliviado diante de tal resposta, mas ainda assim seus olhos espertos indicavam que ele teria que ver para crer.

—E porque eu não posso ir junto? – disse, confirmando as suspeitas de Jack.

Ele, por sua vez, apontou para a linha do horizonte às costas de Thomas.

—Não vai demorar muito para o amanhecer, se viesse comigo só iria me atrasar e provavelmente acabaríamos em apuros. Poupe suas energias por hora e acorde assim que escurecer, teremos muito o que fazer amanhã.

Thomas olhou para a direção que Jack apontava, mas não conseguiu distinguir que a noite estivesse próxima do fim. Então sentiu um medo repentino lhe invadir.

—Como saberei quando o sol tiver ido? – perguntou, preocupado.

—Você saberá – respondeu Jack simplesmente, desaparecendo como em um passe de mágica e deixando para trás um confuso Thomas.


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