Entre as Paredes de Gelo escrita por Dani


Capítulo 1
Entre as Paredes de Gelo


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura a todos!



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Era noite silenciosa, apenas o ruído de passos de cavalo a dilacerar a quietude proporcionada pelo correr do tempo. Era um horário incomum para que uma carruagem carregasse um visitante, mas certas mentes não adormecem juntamente com as demais; quiçá inquietantes e sonoras, um antro de ideias ainda não expostas. Subjugados por um pequeno espaço, os pensamentos do transportado pareciam rugir, ecoar, em seus próprios ouvidos. Os olhos, de um tom de azul claro tal como o límpido do céu de verão, pareciam ir além daquela vidraça que o separava do exterior, além do manto negro trazido com a lua, e pousavam em um local não tão longínquo, porém a cada avançar dos cavalos causava-lhe uma estranha sensação de distância imensurável.

Os deuses sabiam o quanto sua vontade era de estar em outro cômodo, mórbido e gélido, doentio demais, mas era lá que também se encontravam seus sentimentos, e não cavalgando para longe a negócios. Sua mente enevoada atrapalhava-se a cada curva do percurso, perdia-se em cada rocha e estremecia-se a cada soprar do vento noturno. Em Darkwell uma noite praticamente estática e eterna pesava sobre a vida naquele território, misturava-se ao negrume padrão das construções; poucos raios solares conseguiam transpor o manto magicamente forjado e tocar a terra íngreme, porém a corrente de vento a bailar pelos ares em domínio da lua e estrelas sussurrava junto aos ecos de fantasmas de outros tempos. E com isso os pensamentos já conturbados de Mortty Giovanni Vanh’Dark mesclavam-se aos moldes de um passado. Gritos, rugidos, lembranças antigas e novas, inquietantes, perambulavam em seu próprio âmago, silenciando-se apenas com a brusca inquietação dos ruídos de cascos.

Súbita a portinhola abriu-se com brusquidão, deixando-o à mercê, em contato direto, com os horrores daquela conturbada noite. As abas da cartola foram pressionadas por dedos trêmulos antes de assim repousarem sobre o negro e liso cabelo. Em questão de instantes seus passos apressados venceram os ínfimos degraus e pousaram com a sola do luxuoso sapato sobre a terra rochosa.

— Senhor Vanh’Dark — ouviu-se a voz do servo seguida de uma solene mesura —, acompanhe-me, por favor.

A cada passo à frente a casa diante de si tornava-se ainda mais grandiosa, forjada sob os mais elegantes e sombrios moldes da época, tochas explodiam-se no negrume da noite a iluminar o exterior e também criar sombras bruxuleantes nas pedras em redor. Um lance de escada de mármore separava o visitante da porta de madeira escura, esta protegida por duas estatuetas em formato de gárgulas. Ao penetrar na passagem aberta pelo servo, um lampejo serpenteou e reluziu pelo manto soturno, cortando-o, fragmentando-o em uma miríade de noites; pois aquele não era o mesmo céu para cada olhar. Mortty foi conduzido por um longo corredor — trajeto este já memorizado na mente, no entanto faziam questão de que fosse acompanhado por um servo em suas visitas — até a sala, onde seu anfitrião o esperava.

O anfitrião o esperava de costas, direcionado para uma das grandes janelas daquele cômodo — a única não obstruída por uma cortina de seda —, seu olhar trespassava a vidraça e vagava para longe, noite taciturna adentro. Crepitantes, as chamas afastavam o incômodo frio do ambiente; sofás dispunham-se ao redor de um piano silencioso e garrafas de bebidas diversas reluziam a um canto soturno sobre uma bancada. Pelo reflexo, Mortty pôde observar um sorriso formar-se nos lábios do dono da casa, rompendo com a imagem estática, semelhante a uma pintura, até então formada. O homem possuía cabelos longos e claros tal como a pele, contrastando com os olhos escuros, estes rodeados por poucas rugas. Seus trajes também esbanjavam sua soberba elegância e o tenro sorriso, sua etiqueta.

— Seja bem-vindo, meu caro Giovanni — disse ele ao voltar-se na direção de seu convidado. Realizou uma rápida referência e prosseguiu: — O senhor aceita uma bebida? Talvez um conhaque de Yyrid nesta noite fria?

— Grato por sua hospitalidade, meu caro Hector. — Mortty imitou a referência. — Nada como um bom conhaque para acompanhar uma noite fria.

O ruído de palmas, tais rápidas e ecoantes, anunciou a tarefa ao servo. Este que voltou a aproximar-se com uma bandeja e dois copos servidos, atribuindo-os para cada homem de negócio presente. Ao movimento de uma profunda reverência deixou o cômodo.

— Eficiente... — elogiou Mortty. — Meus servos caveiras nem sempre são assim...

Necromantes... – riu o anfitrião. — Por que não és servido por mortais?

— Sinto-me mais seguro com criaturas que sabem que são estúpidas. — Um gole. — Bem, não estou com tempo para discutir ninharias, aos negócios. Suponho que eu esteja aqui para falar sobre a expedição? Caso o seja, já soubeste minha resposta. Sejas breve, por favor.

— Sim, sobre a expedição. Mas te trouxe novas propostas sobre isso.

Ponderados, os olhos de Mortty vagaram pelo cômodo, enquanto seus passos o levaram até a janela. Via além da vidraça uma noite escura e tempestuosa, mas não daquele momento; tempos atrás uma noite semelhante pairava por um diferente céu, pois os olhos não eram os mesmos que agora o contemplavam. Inocência sempre trouxera uma nova perspectiva, porém Mortty lembrava-se com assombrosa precisão, embora contasse poucos invernos de existência naquela época. Por alguns minutos, tais que se arrastaram, perturbados, a resposta já pensada estivera presa entre dentes.

— Não estou interessado — pronunciou por fim.

— Mas seu pai já não estivera em tais expedições?

— Os riscos são altos demais para eu arcar com as consequências no momento.

— Quer dizer que seu pai nunca mais retornou?

Um sorriso macabro formou-se nos lábios de Mortty, quase doentio, semelhante a uma careta de escárnio.

— Oh, não, aconteceu algo muito pior: ele realmente retornou. Mas não desejo falar sobre isso, senhor. Assunto encerrado.

— Pense, por favor, em tudo o que pode ser descoberto nessas expedições. Segredos além da compreensão mortal. — O anfitrião fez uma rápida pausa. — Faremos provisões, senhor, seremos cautelosos.

— Assunto encerrado. — Seu copo, esvaziou-o com apenas mais um gole. — Bom negociar contigo, tenhas uma noite agradável. Eu conheço a saída.

A chegada até a casa demorou alguns minutos, após passar por curvas, tais que serpenteavam pelo percurso, e pelo solo predominantemente rochoso, em meio ao negrume erguia-se a mansão de aspecto luxuoso e sombrio. Dos céus escuros, fragmentados por trovões, a chuva iniciou sua queda, o que acentuava a estranha sensação carregada no âmago de Mortty de já conhecer minuciosamente aquele cenário. Olhos azuis encontraram-se apenas com as sombras, mas delas imagens eram formadas: conseguia ver um sorriso mordaz de anos atrás, trazido com o gélido e pujante sopro da morte, e o sangue misturava-se às poças, e com a vida escoava por feridas jamais fechadas.

O tremor ecoou em seus ouvidos, percorreu seu corpo e atingiu seus pensamentos deveras tempestuosos. Algo naquele cenário brincava com sua mente, o que excedia os limites de sua paciência não tão vasta. Elevou os dedos até as têmporas, massageou-as, e não mais destinou seu olhar para o exterior. Esperou os últimos segundos de percurso e dispôs-se a sair rapidamente daquela carruagem; os deuses haveriam de saber o quanto ele se sufocava em cogitações e amargas lembranças naquele minúsculo espaço. Sentiu com extremo prazer quando as gotas lhe tocaram a pele alva e desta furtaram os resquícios de calor e vagas ponderações. Movimentos ainda trôpegos, apesar de ágeis, levaram-no até a grande porta de entrada, esta a abrir-se sem delongas a passagem ao dono.

Habitado apenas por uma moça, a qual parecia contar uns quatorze ou quinze invernos, o saguão de entrada encontrava-se no mais arrastado e mórbido silêncio. A latente inquietação no âmago de Mortty bailava de forma caótica, tal como a dança bruxuleante das chamas na lareira. O necromante direcionou um olhar irritado para a jovem acomodada em um dos assentos e dominada por um semblante pensativo.

— O que fazes acordada até agora, Mégara? — quis saber.

— Esperando o senhor, papai. Sabes que sofro de insônia. — De um azul tão intenso os olhos da menina encontraram-se com os do pai.

— Sabes bem que deves tratar do problema. — Mas Mortty não sustentava forças para discutir sobre a saúde de sua filha naquele momento. Ao depositar o casaco no cabide, ele sentiu seu corpo pender para frente, dominado por uma passageira e pungente vertigem. O equilíbrio foi recuperado após alguns segundos; então acumulou energias para disparar a inquietante pergunta já gritando em mente: — Como ela está?

Três palavras. Apenas uma pergunta, receada por Mégara, foi o suficiente para que a tensão imperasse no ambiente. A jovem limitou-se ao pesado silêncio, enquanto o azul de seus olhos misturava-se com sombras; tal peculiar resposta foi a única necessária para que Mortty compreendesse a precária situação que já o assombrava em pesadelos, tão reais quanto o sangue que lhe corre quente por veias e artérias, durante noite e dia. Seus passos vacilantes arrastavam-se por meros degraus, os quais pareciam durar imensurável tempo até serem ultrapassados. Esse estado de seu corpo traduzia com precisão os pensamentos conturbados que lhe gritavam em mente. O cenário pintado em suas ponderações era uma mescla de tons de ódio, preocupação e desolação de um negrume tal qual é o do ébano e de uma noite sem lua e estrelas.

Enquanto seus passos o levaram até o quarto circundado por paredes tão frígidas quanto o gelo, suas lembranças o carregavam para uma noite de outros tempos. Aquela não era a mesma noite, embora o frio, o medo e os sentimentos fossem os mesmos. Na ocasião de outrora, já tão distante, Mortty ouvira hediondos gritos sufocarem-se no sangue ainda quente e borbulhante, oriundo de feridas abertas jamais cicatrizadas. Mas ali, diante daquela passagem, com as mãos trêmulas agarradas à maçaneta, havia apenas um silêncio quase papável e mórbido.

Seu coração, munido de forças hercúleas, pressionava-se contra seus músculos rígidos no momento em que penetrou no quarto; o silêncio, ainda mais desolador, pesava com os ecos provenientes do próprio Abismo. Prometera a si mesmo que não mais estaria entre as paredes de gelo, mas algo reverberou em seu âmago, talvez resquícios de chamas outrora intensas, agora cinzas, algo que lhe trazia dúvida. Jazia em uma cama luxuosa e espaçosa uma mulher ainda jovem, cujas madeixas lisas como a seda e negras esparramavam-se pela extensão macia. Os lábios e olhos cerrados atribuíam-lhe um aspecto sereno e eternamente estático; as mãos, de uma palidez doentia, estavam juntas sobre o peito e seguravam uma única, solitária, rosa negra.

Mortty aproximou-se cautelosamente e minuciosamente analisou a mulher que ali jazia. Por um ímpeto doentio, ele sentiu a necessidade de fazer inúmeros cortes naquele rosto eternamente estático, deformá-lo, macular a pureza daquela pele álgida com o sofrido escarlate. Tal como se apoderou de seus pensamentos, rapidamente aquela ira se desfez; sua única ação foi segurar aquelas mãos tão pálidas, frias. Suas pernas cederam, como se já não conseguissem sustentar o corpo. Ajoelhado, apoiou a testa na beirada da cama, enquanto odiava-se e punia-se interiormente por tamanha fraqueza. Deixou escapulir apenas uma solitária lágrima, a qual lentamente rolou por seu rosto até o chão atingir, mas sequer uma palavra lhe proferiu os lábios.

Súbito levantou-se, com os movimentos ainda trôpegos aproximou-se de um piano que jazia, silencioso, não tão distante da cama. Acomodou-se no banco e ali se deixou permanecer, imóvel; e os pensamentos vagaram até o limiar entre aquelas paredes de gelo. Apenas algumas velas iluminavam o cômodo, de modo que a maior parte de sua extensão encontrava-se em sombras absolutas. No escuro, os dedos ágeis de Mortty fizeram soar as primeiras notas, a última melodia.

As últimas notas penetraram com pesar em seus ouvidos, quase permitindo que mais uma lágrima lhe escapasse pelos olhos desolados; por fim distorceu-se bruscamente a melodia, rompendo com a melancólica harmonia. Uma dor lancinante apoderou-se, sobretudo, do peito de Mortty, contorcendo seus músculos e deformando seus lábios em uma sôfrega careta. Em sua língua sentiu o nauseante e ferroso gosto de sangue, o qual se fez presente em um filete a escorrer do queixo até a branca tecla do piano. Escutou os até então sufocados e hediondos ecos do Abismo a reverberar entre as paredes de gelo, atraindo seu olhar em direção ao inerte negrume. Sentiu o álgido e pujante toque apertado em seu coração. Já não dispunha de forças para gritar quando seus olhos encontraram-se com as penumbras, e destas viu o horror formar-se em um sorriso mordaz, insano, cruel. Das mesmas sombras, daquela mesma noite de muitos anos atrás.


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Notas finais do capítulo

Quem leu até aqui, espero que tenha gostado! E, se possível, deixe um comentário. Não levará tanto tempo e ainda deixará uma autora feliz! Obrigada por ler. (:



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