Amante do Sangue escrita por Loren


Capítulo 1
Capítulo Único.


Notas iniciais do capítulo

haaaai (:



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A linha do horizonte estava visível, mas os enormes picos escondiam as praias gélidas e pedregosas que atrás estavam escondidas. As elevações de rochas ásperas e irregulares estavam cobertas por um manto branco e macio. O frio era impiedoso durante os anos. Este era um dos motivos pelos quais aquelas terras não eram habitadas. A solidão, a escassez e os perigos escondidos, no entanto, não a assustavam. Pelo contrário, era o lugar ideal. Para que se preocupar com os alimentos? Tinha poder sobre as outras terras. Em poucos meses o estoque iria chegar. Para que se preocupar com os perigos? Ela era a líder. Para que se preocupar com a solidão? Era seu conforto. Para que se preocupar se iria para o inferno? Já estava nele.

Só faltam alguns detalhes..., ela pensou com os olhos fixos para a tempestade que começava afora da fortaleza. A porta do cômodo se abriu com um rangido e a corrente de ar que entrou, tremeu a chama das velas espalhadas pelo quarto real.

–-Majestade?- o garoto magro e baixo, com o rosto sujo e mãos machucadas disse, reverenciando a mulher de negro.- Já está a sua espera, o Capitão Dourado.

Ela deixou uma risada escapar pelos lábios carnudos. O nome era patético.

–-Diga que estou a caminho.- sua voz era baixa e mansa, quase dócil. O oposto de sua alma.

Por mais que o garoto tivesse sido cuidadoso ao fechar a porta, a mesma não deixou de ser barulhenta. Com o coração na garganta, o garoto se afastou às pressas pelo corredor antes que ela o chamasse de volta, mas ela não o fez. Estava de bom humor. Havia conseguido. Tinha o casal em suas mãos. A pantera surgiu da escuridão, com passos silenciosos e as garras guardadas. Encostou o focinho na mão pálida e ossuda da dona e ronronou de olhos fechados.

–-Chegou a hora, querida.- seus olhos faiscavam de triunfo e seu sorriso de lobo parecia ansioso para provar do sangue das suas presas.

*

–-Perdoe-me pela demora, senhor William.- disse para o homem gordo e careca enquanto atravessava o salão em direção ao trono acompanhada do animal.

–-Não se preocupe, majestade. Conheço uma mulher.- respondeu, sorrindo com seus dentes amarelados, roupas de pele e as mãos no cinto que parecia prestes a explodir.

–-Estou surpresa.- ela disse, ao sentar-se com uma sobrancelha levantada e o sarcasmo banhado na língua.

Com o orgulho ferido, o gordo limpou a garganta e assobiou. De uma porta lateral, quatro homens robustos de feições duras e barbudos saíram, cada dupla arrastando um corpo. Ele era alto, forte, com a pele queimada do sol e cabelos louros escuros. Ela era alta, com cabelos castanhos avermelhados, pálida e com formas avantajadas. Os capatazes jogaram os corpos como sacos de batatas. O som dos dois chocando contra o chão liso do salão cinzento, veio como um sussurro. A mulher de negro sorriu com os olhos baixos.

–-Quem diria que era capaz, senhor William?- seus olhos ainda estavam fixos nos corpos imóveis.

–-Majestade, permita-me lembrar que é Capitão Dourado.- o homem disse e tamborilou os dedos no brasão de ouro que estava no cinto.

–-Não foi esse o nome que seus pais lhe deram.- ela sussurrou sem mover o olhar.

–-Majestade, me comprometi a cumprir o que a senhora quisesse, mas exijo respeito para com minha honra.- começou a dizer e a enrubescer violentamente.

Segurava a raiva com todo esforço e sorriso falso que possuía.

–-Você não tem que exigir nada, senhor William. Um ladrão como o senhor não tem honra alguma.- ela disse.

Somente seus lábios se moveram. A pantera parecia adormecida aos seus pés, se não fosse pela incessante cauda.

–-Veja lá o que fala de mim, sua...- ela se moveu tão rápido quanto um guepardo e antes que o gordo pudesse ter feito qualquer movimento, a adaga de gume fino encostava suave na sua garganta.

–-Dobre essa língua, senhor William, ou eu farei isso pelo senhor.- ele mal respirava. Qualquer movimento e a lâmina entraria em sua carne.- Não tente me enganar. O senhor é um ladrão e mais nada.- sua voz era um sussurro rouco. Seus olhos amarelos pareciam possuídos pela loucura. Seu sorriso cínico confirmava essa hipótese.- Porém, não vou negar a promessa que fiz. Pagarei o senhor e seus homens pelo serviço, mas, se tentarem levar mais que o preço prometido, meus homens os trancaram nas masmorras e mesmo que consigam escapar, Enloquecida estará à espera de vocês.

–-Quem?- o homem perdeu qualquer vestígio de cor no rosto.

–-Sua querida mãe não lhe contava sobre as lendas da Serpente do Gelo?

–-Ela existe?- sua voz tornou-se aguda e com os olhos arregalados e o espanto na face, lembravam uma criança medrosa e bobalhona.

–-Sim. E eu ainda não levei o jantar dela. Gostaria dessa honra?

Ele fez um leve movimento com a cabeça, negando o pedido da mulher. Ela baixou a adaga e desfez o sorriso.

–-Que lástima! Ela ia adorar conhecê-lo.- virou-se e passou por entre os corpos que murmuravam coisas sem sentido.- Agora, suma daqui.- disse com tédio e os olhos voltados para as janelas altas com cortinas rasgadas.

–-Obrigada, majestade.- gaguejou em um murmúrio baixo.

Reverenciou, voltou-se para saída e desapareceu com passos rápidos. Seus capatazes logo atrás. Quando as portas se fecharam, o corpo maior se remexeu. Ela manteve-se séria. Por dentro, transbordava de prazer. As mãos do prisioneiro estavam atadas nas costas, como a da companheira. Levantou o rosto e deixou a boca pender em um “o”.

–-Você?- murmurou, atordoado.

–-Surpreso?

–-Mas... Achei que estivesse nos ajudando!

–-Derek...- o corpo ao lado resmungou, todavia com o rosto pegado no chão.

–-Melanie!- ele se agachou e tirou os fios castanhos avermelhados com o nariz.- Como está?

–-Seja como for, não durará por muito tempo.- a mulher de negro respondeu, voltando a atenção para si. O rapaz virou o rosto e em seus olhos castanhos a ira desabrochava.

–-Por que fez isso? Por que mentiu?! O que fizemos para você nos odiar?! O que quer?!- suas palavras reverberaram pelo salão.

Ela acariciava a pantera com as costas dos dedos. As unhas eram longas, porém, com as pontas quebradas. Podia-se ver com nitidez as veias sob a pele pálida. Seus olhos amarelos como o sol distante contrastavam com os fios longos da cor da neve afora e sujos como o piso do salão. Seus lábios carnudos e vermelhos eram o convite da perdição e o sorriso desenhado neles, era a prova do que sua alma realmente era.

–-Me responda!- gritou Derek.

–-Acalme-se, rapaz. Terá todas as respostas que deseja.

A garota ajoelhou-se e deixou a mostra seu rosto. Do canto da boca, um filete de sangue seco escorria e os olhos verdes mostravam cansaço e medo. A pele era um pedaço fino que repousava sobre seus ossos, demarcando as linhas das clavículas, ombros e queixo. Respirava entrecortadamente.

–-Por que, senhora?- ela sussurrou.

–-Porque meu desejo, é ser beijada pelo Fogo do Inferno.

–-Não existe o Inferno aqui. Todos os outros reis me disseram. As portas de lá foram fechadas.- intrometeu-se o rapaz.

–-Serão reabertas.

–-Isso não é verdade!

–-Farei com que seja.- enfim, fitou seus reféns.

Ele engoliu em seco e ela encolheu os ombros. A mulher de negro levantou-se e desceu os três degraus com graça e postura. Todavia sorria.

–-Gostam de histórias?

–-Diga de uma vez!- gritou o rapaz outra vez.

As veias do pescoço estavam saltadas. A garota observava a mulher de canto.

–-Há muito tempo, os cinco reinos da Paz viviam em perfeita harmonia.- ela rondava os dois com olhos famintos.- Mas, é óbvio que os quatro reis desejavam tomar os cinco reinos e formar apenas um. Exceto uma. A única mulher que governava um reino sozinha.

–-Você.- o loiro grunhiu.

–-Não. Minha irmã.- e parou em frente a uma janela.

–-Você não tem irmã. Sabemos que a história de ter uma irmã gêmea era uma mentira! Era você mesma fingindo ser duas pessoas diferentes!- disse Derek.

–-Sim. Gêmea, não. Mas uma irmã mais velha, sim.

–-O quê?- Melanie expressava confusão.

–-A mulher de branco. A Anja da Paz, como gostavam de chamá-la. A beleza dela e o desejo que tinham de desposá-la era outro motivo para a rivalidade entre os reis. Era justa, sensata e gentil.

"Mesmo em uma terra de gelo, conseguia exportar mercadorias como peixes que ninguém sabia como era capaz. Detestava a ideia de guerra. Era sempre a que conseguia transformar ameaças de guerra, em tratados de paz, trocas e leis no Conselho. Os pais morreram cedo, em uma viagem para descobrir terras distantes. Ao atingir maioridade, tornou-se responsável pelo reino. E pela irmã mais nova.

–-Você.- a garota sussurrou.

–-Sim.- virou-se e sorriu, de uma forma que fez o corpo inteiro da prisioneira arrepiar.- A mulher de negro. O detestável jumento da família real.- sua voz tornou-se mais alta e agressiva.- Tudo porque não tinha cabelos negros como a irmã, não possuía elegância nas roupas como a irmã, não sabia controlar a língua e dizer mentiras que todos queriam ouvir como a irmã, não tinha olhos azuis como o céu do reino vizinho do qual a irmã ia desposar com o rei sem nem mesmo amá-lo!- após, ela fechou os olhos e respirou fundo, recompondo-se.- E, principalmente, porque diziam que era amaldiçoada e seus gostos correspondiam com os boatos.

–-Mas a senhora realmente...

–-Talvez. Havia uma antiga profecia, que um camponês à beira da loucura recitou quando entrou no Conselho em uma conferência.

“As portas do Inferno,

Fechadas deverão ser.

Caso contrário,

A Paz irá perecer.

A anja protegida deve estar,

Ou as trevas temidas,

Irão retornar.”

E logo após...

–-Ele morreu.- disse Melanie, com a voz trêmula.

–-Sim. Ninguém poderia negar que era uma profecia verdadeira. As profecias sempre foram seguidas de morte.- voltou a andar, em direção ao trono.- Os cinco reinos se uniram para enfrentar as sombras que assolavam esta maldita terra e fazer com que a mesma, merecesse o nome que tem. E conseguiram.- parou aos pés dos degraus e a pantera desceu ao seu encontro. Esfregou-se nas pernas da dona e após uma volta, direcionou os olhos negros para os prisioneiros.

–-O que, a senhora, detestou.- alfinetou o rapaz.

–-Com toda a certeza!- ela disse, com um sorriso sincero que assustou a garota. Como alguém poderia amar aquilo?

–-A senhora já... Havia entrado lá?

–-Minha querida, eu era bem vinda lá. Por meses eu desaparecia e me infiltrava naquela terra. Meus pais sempre viajavam e minha irmã sempre esteve atolada de estudos. Não percebiam minha ausência. Sempre fui fascinada por aquele lugar!- seus olhos brilhavam com fascínio.- As sombras traiçoeiras, as almas perdidas, os gritos suplicantes, o cheiro do desespero e o Fogo. Ah, o Fogo! Era maravilhoso dançar com seu toque gelado.- o tom era de paixão.

–-Gelado? Aquela porcaria quase nos derrete a pele!- gritou Derek.

–-É claro que para vocês seria quente. O que esperavam? São almas puras! O Fogo do Inferno é justo para com aqueles que lhe são fiéis. Ardente para os bons, congelante para os de sua espécie.

–-E como ele era para a senhora?- perguntou a garota.

–-Mais frio que neve a cair lá fora.- seu rosto estava impassível.- Logo, os desgraçados conseguiram fechar as portas. Nada me enfureceu mais que aquele maldito dia. Perdida foi a única que consegui salvar de lá.- disse e acariciou a pantera.- Meus pais já estavam mortos. Minha irmã acatou com a decisão de eu cuidá-la, afinal, foi o único pedido que fiz para ela.- e calou-se.

–-Senhora, o que houve com sua irmã?- questionou a garota, cautelosa.

A mulher voltou a sorrir. Desta vez, sadicamente. Com a cabeça baixa e os fios brancos na frente do rosto, de onde podia se entrever os olhos amarelos baixo as sobrancelhas grossas.

–-Ela morreu.

–-Céus...- murmurou, desconcertada.- A profecia...

–-Se cumpriu, por completo.

–-Mas como ela morreu?!- o rapaz ainda estava desconcertado de como aquela conversa poderia levar até ele e a companheira, mas estava curioso sobre aquele assunto.

–-Assassinada.

–-Por quem?

–-A história que foi contada, é a de que a princesa de outro reino, cheia de rancor e inveja pela Anja da Paz casar com o príncipe que desejava, levou-a a acatar uma atitude durante uma visita de cortesia do rei e sua família para este reino. Cortou sua garganta durante o sono.

–-A história contada... E qual é a verdadeira?- indagou Melanie.

–-Junto de Perdida, eu pretendia reabrir as portas do Inferno. Minha irmã descobriu e pediu que eu parasse com aquela terrível ideia, senão, teria que contar para o Conselho. Eu disse que sim e ela acreditou. Esse sempre foi um defeito dela: acreditar nas pessoas.- revirou os olhos e fez uma expressão de nojo.- Durante a visita que um dos quatro reis fez, sua filha estava junto e todos sabiam da irresistível paixão que ela nutria pelo noivo da minha irmã. Obviamente, aproveitei a situação.- e sorriu, maliciosa.

Os olhos dos dois arregalaram-se.

–-E qual foi o fim da princesa culpada?

–-Jantar para a Serpente do Gelo.

–-Por isso o rei tinha tanta raiva de você! Você foi a culpada pela morte de sua filha!- gritou o rapaz, revoltado.

Ela subiu e sentou-se no trono, com as pernas cruzadas e o corpo jogado para um lado.

–-Claramente, eu fui coroada a rainha, afinal, era a única descendente viva. Os laços deste reino com o outro foram desfeitos e os outros enfraqueceram. Ninguém aprovou a ideia de eu ser a rainha. Havia aqueles que desconfiavam de que eu havia sido a responsável pela morte da Anja, mas não podiam explicar o porquê da faca do crime estar nos aposentos da princesa. Meu plano de restaurar as portas do Inferno voltaram a todo vapor, mas então, veio aquela detestável criança!

–-Que criança?- os olhos verdes de Melanie lacrimejavam.

–-“A desordem começa,

Mas ressurge a esperança.

O garoto e a garota consigo a levam,

E se inicia a matança!

Ele a coragem, ela a destruição.

Saibam como usá-los,

E trarão a paz eterna,

Ou a temível escuridão.”

–-Somos nós...- murmurou a garota.

–-Depois de gritá-la para mim no meu quarto com os olhos voltados para cima, sangue escorrendo das narinas e os ombros tremendo, a criança correu para a sacada e se jogou dali.- não demonstrava tristeza quanto à isso.- Logo, fui me consultar com Enlouquecida.

"Apesar de ser complexa e bipolar, não existe criatura mais inteligente que aquela serpente. Vive desde que Paz se formou e muito antes de ter ganhado o nome. Ao recitar a profecia, ela riu. E disse que estava impressionada por eu mesma não ter percebido importância daquelas palavras.

–-Não entendo.- disse o rapaz.

–-Paz estava desordenada. Um casal de outro mundo traria a esperança, mas como pode ser usada para um fim, pode ser para outro. A destruição. Exatamente o que eu desejava.- levou seu corpo para frente e suas mãos apertavam os braços do trono.- Há muitos feitiços por aí e com um pouco de dedicação, são fáceis de se cumprir. Ainda mais para mim, não seria problema. Os reis desejavam capturar vocês para cometer um feitiço que traria todo o poder para um só e assim, ser dono de todas as terras. Tive que tirá-los do meu caminho.- a garganta dos dois, secou.- Eu, por outro lado, não só serei a dona de todas as terras e ganharei o poder sobre todos os elementos, como usarei para abrir as portas do Inferno.

–-E como você pretende fazer isso?!- berrou o rapaz.

–-Com a ajuda da sua amiga, é claro.- ela sorriu e relaxou as mãos.

–-Eu?!- seus olhos banhados no medo.

–-Você, minha querida, possui o sangue que o Fogo do Inferno sempre desejou.

–-Mas eu não sou má!- ela protestou, com o pulso acelerado.

–-Não, o que é uma ironia. Não consegui descobrir ainda o que há no seu sangue, mas seja o que for, uma gota só e será o suficiente para as trevas voltarem.

Levantou uma mão e estalou os dedos. Das portas principais, uma dupla de guardas entrou e agarraram os prisioneiros.

–-Não vai conseguir!- gritou o rapaz.

–-Veremos.- encostou suas costas no trono e suspirou.

Perdida deitou-se em seus pés e observou atentamente os prisioneiros serem arrastados para fora do salão, em direção ao exílio que seria a passagem para suas respectivas mortes. Pode se crer que é impossível, mas, curiosamente, a pantera sorria sádica.

Como a dona.

*

–-Merda! E agora? O que vamos fazer?!- gritava o rapaz enquanto andava de um lado para o outro na cela escura e imunda.- Não podemos ficar parados, temos que arranjar um jeito de sair! Mas nem tem uma janela nesta porcaria! Se ao menos...- ao virar-se para a companheira, calou-se no mesmo instante.

A garota estava encolhida em um canto, sentada sobre o feno, abraçada nas pernas com o queixo posto sobre os joelhos. Seus olhos estavam marejados e seus lábios tremiam. Ele suspirou de cansaço, mas aproximou-se em silêncio até ela. Sentou-se ao seu lado com o olhar preocupado e esqueceu-se por um momento, que em horas, minutos ou segundos, iam morrer.

–-O que houve?

–-Ela... Matou a irmã. Culpou uma princesa inocente. Matou outros quatro homens... E ama o Fogo do Inferno! Céus! Que tipo de pessoa é capaz disso, Derek? E não ter remorso?!- sua voz saiu trêmula.

–-Em nosso mundo também existem pessoas loucas.

–-Não é só loucura...

–-O que mais pode ser?- ela hesitou.

–-Má. Muito má.- sussurrou e encolheu-se.

O rapaz se surpreendeu. Estava acostumado com a maldade que havia no universo, fosse em seu ou em outro mundo. Mas sabia como a companheira era. Conhecia Melanie desde pequeno e quando amigos, adorava brincar que ela era uma perfeita mocinha sem graça apaixonada por finais felizes com príncipes montados em cavalos brancos. Ela não negava. Não negava também a ingenuidade que tinha ao acreditar que nem todas as pessoas do mundo, teriam maldade em seu coração. Mas nunca esperava que a crença dela, poderia ser destruída tão facilmente.

–-Ela nos enganou direitinho.- ele murmurou, atordoado.- Não podia ser somente coincidência. Toda vez que um dos reis nos acolhia, ele morria e ela aparecia quando fugíamos após o povo nos acusar de traição e nos oferecia ajuda. E ainda fingindo ser duas pessoas ao mesmo tempo! Nem sei qual é verdadeiro nome dela. Os reis apenas a chamavam de Amante do Sangue. Ela planejou tudo desde o início.

–-É esperta.

–-E mentirosa.

–-Estou com medo.- ele passou um braço pelos ombros dela.

–-Eu também.- e era a primeira vez, que ele admitia algo do tipo.

*

–-Preparada?- perguntou para a pantera e esta assentiu.- Tragam a garota.-ordenou para os guardas altos e fortes, de expressões duras e histórias desconhecidas.

Em alguns minutos, a garota foi deixada no salão. Apenas ela, a rainha e o animal. O manto do céu estava tingido de negro e a única luz que entrava, era a da Lua. No centro, havia um caldeirão que borbulhava sem fogo.

–-É uma feiticeira?- a garota perguntou, sem maldade, apenas, curiosidade.

–-Se aprende alguns truques com algumas almas perdidas no Inferno.- aproximou-se do caldeirão e a luz iluminou seu vestido.

Vermelho, sem mangas e uma gola alta até o pescoço. Os cabelos presos em um coque mal feito. Nos braços, braceletes de ouro. Sorria amavelmente. Melanie sentiu a nuca arrepiar.

–-Se quiser, posso lhe ensinar algumas coisas.

–-Jamais!- disse, automaticamente, dando um passo para trás.

A pantera grunhiu, ofendida com o tom e o tratamento para com sua dona. Fez menção de se aproximar, em posição de ataque, mas sua dona silenciou-a com um aceno da mão.

–-Como preferir. Vamos ser rápidas, então. Não doerá.-o brilho faminto dos olhos voltou.- Não muito.

*

–-Me tirem daqui! Vamos! Qual é o problema?! Estão surdos?! Ei!- chamava, gritava, berrava e esperneava, mas os guardas ignoravam o prisioneiro com total disciplina.

Se afastou das grades e passou as mãos pelos cabelos. A angústia o estrangulavam e sua barriga dava voltas incessantes. Demorou anos para se acertar com Melanie e no mesmo lugar em que isso aconteceu, também iria perdê-la.

–-Não! Não posso. Preciso dar um jeito.

Começou a vasculhar a cela, em busca de algo que o favorecesse. Foi então que um som grave e alto o interrompeu. Quando voltou para as grades, um garotinho de aspecto sujo e miserável descia as escadas com as chaves.

–-Quem é você?

–-Por favor, não a deixe trazer o Inferno de volta.- ele pediu, após abrir a cela.

–-Com toda a certeza, rapaz, com toda a certeza.- ele disse e subiu as escadas às pressas.

*

–-Estenda o braço.- ela disse, com a mão espalmada para cima após ter misturado vários ingredientes no caldeirão ao som de palavras desconhecidas para Melanie.

–-Não.

–-Estenda. Agora.- ela ordenou, rangendo os dentes brancos.

–-Por que não me arranca a força, como fez com a vida da sua irmã?!- o rosto da mulher endureceu.

–-O sangue desejado precisa ser dado por livre e espontânea vontade. Uma besteira, concordo, mas o feitiço não será realizado de outra forma.

–-Me recuso quanto ao seu pedido!- a pantera começou a grunhir e se aproximar e a garota começou a ser tomada pelo pavor.

No mesmo instante, a porta lateral foi aberta e Derek saiu correndo por um lado, enquanto o garotinho, saia pelo outro. O combinado era: o rapaz distraia a mulher e o animal e o pequeno, corria para abrir as portas principais. Enquanto a pantera corria de encontro à um com as afiadas e longas garras de fora, a mulher não deixou ser levada pela coincidência do loiro ter escapado sem ajuda. Ao virar-se, sacou a adaga da cintura e a lançou de encontro à criatura pequena e ágil. A lâmina penetrou no estômago. Seus pés perderam força e seu corpo caiu com um baque baixo. Arrancou a arma e a jogou para longe, enquanto gemia de dor e lágrimas escorriam pela face suja.

Perdida parou abruptamente e voltou para a dona, de cabeça baixa e ombros arqueados. Antes que o loiro se aproximasse da garota, dois guardas surgiram e o agarraram pelos braços. Melanie observava a pantera, que parecia obedecer a mulher pelo pensamento. Continuou o caminho e ao chegar no garotinho que ofegava, parou e o fitou intensamente. Ele tinha olhos castanhos esverdeados.

–-Perdida.- a voz da mulher soou, tediosa, porém, firme.- Jantar.

E a fera, abriu a boca e foi de encontro ao peito do garotinho. Os gritos agudos e chorosos perfuravam os tímpanos da garota, que assustada, caiu de joelhos e tampava os ouvidos mordendo os lábios e desviando o olhar da cena. O rapaz desistiu de se soltar e observava, atônito, a cena de um amigo partindo. Os curtos braços debatiam-se contra o enorme corpo peludo e negro da pantera e as pernas chutavam seu peito. Batia em seu rosto, mas seus atos só enfureciam cada vez mais a pantera. A mesma cravou as garras no rosto delicado e o grito seguinte era sofrido e angustiante.

O rapaz tinha um desejo latente de vomitar, mas não havia nada em seu estômago para pôr para fora. Quando o chão já estava encharcado do líquido viscoso e escarlate e nenhum outro som soava do corpo inerte, a mulher voltou-se para a garota deixando seu animal deliciar-se com sua refeição.

–-E então?

–-Não!

–-Serei bondosa, minha querida. Ou pode negar e deixar que seu “querido”- apontou para o loiro-, tenha uma morte dolorosa e lenta e você não terá no fim outra escolha a não ser me dar seu sangue, ou pode fazer isso agora e deixarei que veja o Inferno voltar, pelo menos, abraçada com seu rapaz. O que me diz?- ela disse com voz mansa e dócil, que foi capaz de acalmar os nervos da garota.

Ela fitou o loiro por um instante, antes de levantar-se, com olhos inchados e vermelhos e estender o braço para a mulher. Esta, segurou o pulso da garota com delicadeza e levou até o caldeirão. Com a própria unha, rasgou a pele da prisioneira e deixou o filete de sangue pingar. Após, soltou-a e fez um aceno com a mão para os guardas sem mirá-los, que soltaram o rapaz. O casal correu de encontro um ao outro e se abraçaram fortemente.

A mulher segurou o caldeirão pelas bordas e murmurava palavras desconhecidas. A mulher levantou os braços para o alto e do caldeirão, saiu uma luz que bateu no teto e fez as paredes brilharem. Aos poucos, a fortaleza se desfez em pó. A mulher sorria exultante. A luz do caldeirão chegou aos céus e se espalhou por todas as partes. Em poucos segundos, o cheiro de fumaça tomou o ar. Virou-se e observou seu feito espalhar-se para todos os cantos da Paz.

Antes que pudesse rir como há tempos desejava, sentiu o ar faltar-lhe e uma dor crescente espalhar-se pelo corpo, nascendo da barriga. Ao baixar o olhar, apavorou-se com o cabo da própria adaga encravado na barriga. O rapaz se afastou rapidamente. Ela arrancou a arma e caiu no chão. Derek abraçou Melanie mais uma vez, ofegante. Com a distração da pantera e a fuga dos guardas medrosos quanto aquela feitiçaria, sorrateiramente, agarrou a adaga e chegou por trás da mulher, dando o bote preciso como o de uma serpente faminta.

–-Não... Pode ser...- ela murmurava.

A visão tornava-se embaçada, mas pôde sentir uma presença quente perto de si. Ao forçar a vista, visou os olhos negros do animal. Sorriu sincera. O olhar do animal expressava tristeza.

–-Foi um prazer tê-la conhecido, Perdida...- o animal lambeu seu rosto.- Lamento, ter feito tão pouco por nosso lar...

A pantera se sentou, encostou o focinho no nariz da dona e colocou a pata no coração da mesma. Mesmo zonza, a mulher deu-se por conta do que o animal desejava fazer.

–-Perdida! Mas você vai...- viu os olhos da pantera fecharem e logo se abrirem, assentindo.- E ainda me perguntavam porque sempre preferi animais aos humanos.- falou, entrecortadamente.- Te buscarei quando puder, minha querida. É uma promessa.- a pantera ronronou em resposta.

A mulher encostou a mão no peito do animal. Os olhos das duas se fecharam e uma luz resplandecente emanou de cada uma. Melanie fechou os olhos, mas Derek manteve-se estático ao ver uma fumaça negra com duas pernas saírem da mulher e outra branca de quatro patas da pantera. As duas dançaram no ar juntas, como velhas amigas e ele pôde jurar que ouviu risadas soarem no ar. As almas se encararam e se abraçaram, antes de entrarem nos corpos opostos. O da mulher caiu no chão lentamente, tão leve quanto uma pluma e o da pantera, cambaleou para um lado. A pantera balançou a cabeça e ao ver o corpo da dona imóvel no chão, rugiu para o céu.

Não. Não era um rugido. Era um choro.

–-É melhor saírmos daqui.- ele sussurrou.

Mas antes que pudessem escapar, o animal os encontrou com os olhos amarelos e rugiu com raiva. O que veio a seguir, marcou a mente dos dois pelo resto de suas vidas. Os picos ao longe começaram a incendiar-se e o fogo espalhou-se de forma rápida até ao redor do que era a antiga fortaleza. O cheiro impregnado no ar era insuportável. Carniça, fumaça e sangue.

As risadas sumiram e gritos agoniados soavam na sombria noite. O fogo engoliu a pantera e Melanie arregalou os olhos, apavorada. Quando o fogo desceu, a pantera estava de pé nas patas traseiras e seu corpo lembrava formas de o de uma mulher. Das suas costas brotavam enormes asas negras capazes de engoli-la e seus dentes e garras estavam à mostra. Ele abraçou ela contra o peito e engoliu em seco.

–-Nunca te disse, Melanie, mas, aquele dia, quando você me convidou para brincar de princesa...

–-Sim?

–-Seria uma honra ser seu príncipe.- ela sorriu, deixando uma lágrima escapar.

A pantera rugiu e levantou uma pata, pronta para desferir o golpe. Mas a luz resplandecente detrás do casal, cegou-a por alguns minutos. Tempo suficiente para eles perceberem que era uma fenda. A mesma fenda que os levou para aquele mundo. Sem esperar, puxou Melanie para dentro e disparou a correr.

Ele não olhou para trás. E nunca soube, diferente de Melanie, que a pantera não fez menção de segui-los. Ela apenas os fitou mais uma vez com seu sorriso sádico e cínico, os olhos amarelos enlouquecidos e virou-se para o fogo crescente detrás de si, com os braços abertos.

Como se estivesse dando boas vindas. Para um velho amigo.

*

Caíram em um chão macio e reconheceram o bosque do internato. Derek ajudou Melanie a se levantar e limpou seu rosto sujo de terra e sangue. Sorriu, apaixonado.

–-Como está?

Ela olhou para trás, com os lábios trêmulos, olhos preenchidos de medo e a pele mais pálida que o normal.

–-Derek...

–-Sim?- ele desfez o sorriso e juntou as sobrancelhas, preocupado.

–-O reino... Paz... O Inferno...

Ele suspirou de olhos fechados e ombros caídos. Não poderia negar, que estava feliz por estar vivo, mas entendia o pavor da garota. Ela nunca tinha visto o terror, a loucura e o medo tão perto.

–-Sim. As portas do Inferno- ela o fitou assustada-, estão abertas. Outra vez.

*


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado >bye (:



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