Sagira escrita por Senjougaha


Capítulo 18
Capítulo 18 - A cidade que nunca dorme




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– Segure com menos força - Hórus desaprova - parece que está tentando matar a espada, e não o inimigo.

Bufo.

– Não preciso de uma kopesh pra matar alguém, sabe disso - retruco.

– Ah é? - ele diz, interessado - então me mostre quão controlada é a sua transformação.

O encaro de soslaio, com raiva contida.

Ele vem me provocando dia após dia desde que lhe contei que era amaldiçoada.

Bem, azar o dele.

Eu certamente me vingarei mais tarde, e apesar de não ser nenhuma Nêmesis na vida, eu sempre dou o troco duplicado.

Suspiro, cansada.

Estou cansada de ficar no Duat e ser obrigada a esperar Hórus chegar de seus afazeres para eu poder falar com alguém.

Todos aqui - com exceção do meu irmão, e às vezes até ele - me tratam como uma pária.

A vontade de gritar aos quatro ventos que eu não estou aqui por querer, é grande.

– Hórus, chega - eu digo, num tom de voz baixo.

– Tudo bem, pode descansar por hoje - ele diz, certamente se achando misericordioso.

Mas não é nenhuma novidade que Hórus, o deus egípcio das batalhas não é nem um pouco misericordioso.

Guerras não são justas. Hórus também não. Simples assim.

– Eu não me refiro ao treinamento - bufo, desgostosa - treinamento pra quê, afinal?

Reviro os olhos.

Hórus cruza os braços e me encara, com a cabeça tombada de lado.

Me lembra um pombo procurando migalhas de pão nos parques de Nova Iorque.

Nova Iorque.

Ah! Lugar para onde eu certamente voltaria caso consiga fugir desses infernos.

Realmente, na concepção humana o Hades e o Duat podem ser considerados “infernos”.

Suspiro.

– Eu me refiro a estar aqui - explico - eu não quero estar aqui.

– Mas está - ele fecha o semblante - e não tem opção.

– Sabe que posso fugir - retruco.

– Não pode - ele nega e infla o peito - não sabe desfazer os feitiços de proteção que coloquei em você.

– Você é tão péssimo em feitiços quanto eu - zombo - não deve ser impossível.

Hórus abre a boca para dizer algo provocativo, mas eu o corto com algo que sabia que funcionaria:

– Se não me deixar ir, chamarei Tanatos - cruzo os braços.

Ele semicerra os olhos bicolores e me encara.

– E como faria isso? Sabe que é proibido - ele sibila.

– Bingo! - rio, vitoriosa - é proibido invocar um deus de outra cultura!

Hórus pisca, confuso.

– Você me invocou, oh faraó - zombo - como se sente quebrando as próprias regras?

O rosto de Hórus fica vermelho na hora.

– Você é egípcia - ele se defende.

– Mas eu não estava em território egípcio quando você EM PESSOA me trouxe para cá - rebato.

“Isso, Sagira! Você é um gênio, eu te daria um beijo!”, penso comigo mesma.

É impossível apagar o sorriso deslumbrante que estampa meu rosto.

Hórus agarra meu pulso, furioso. Ele não está mais pegando leve, muito menos tentando se conter.

– Se contar isso a alguém, garanto que não passará impune, Sagira - ele diz numa voz estranha.

Seus olhos - o prateado e o dourado - brilham de uma forma ameaçadora. A cicatriz que transpassa um deles nunca me pareceu tão sombria.

– Por que é tão importante pra você que eu continue aqui? - sussurro.

Ele afrouxa o aperto e suaviza o olhar.

– Você corre perigo, Sagira - ele diz - eu sinto isso, seu irmão e seu pai também.

Ele dá uma pausa e sua cara se entorta numa careta de desgosto.

– Aquele… Tanatos também sabe - resmunga.

– Então pra me proteger vocês me arrastam pros mundos inferiores e me mantém prisioneira? - pergunto, sarcástica.

Eu estou com raiva. Muita raiva.

Porque esses deuses caquéticos pensam que só porque eu sou milênios de anos mais nova, sou fraca.

Eu não sou fraca, posso me defender sozinha desse tal perigo sem problemas. Afinal, eu vivi entre os humanos - e acredite, “perigo” define as ruas e becos daquele mundinho.

Meus descontroles e instintos à flor da pele estão me matando porque eu estou em cativeiro, embora eu saiba que não é só isso.

Tem algo mais envolvido, algo que eu não faço ideia do que é. Mas que estou disposta a descobrir.

Me solto do aperto de Hórus enquanto ele se distrai tentando me fazer compreender seu lado. Ele urra de raiva e eu corro o mais rápido que posso.

Hórus dá um salto gigantesco e para à minha frente.

Sobressaltada, porém desistente nunca, fecho os olhos e arrisco Viajar.

Eu não sei nada dos hieróglifos que apareceram quando fecho os olhos. Não sei lê-los, tampouco tirá-los de mim.

Mas desejo ardentemente que sumam. A presença deles é sufocante, embora bela.

E eles sumem.

Sorrio, satisfeita, mas esse sorriso sume quando vejo Hórus à minha frente ficando cada vez maior, de raiva.

Suas duas órbitas parecem dois pólos que ameaçam explodir em raios e trovões e eu já posso imaginar ele gritando meu nome de uma forma nada boa.

Fecho os olhos novamente - dessa vez de desespero - e faço um grande esforço para Viajar.

E consigo.

Com um estalo um tanto incomum - porem, não dou a mínima - meus pés logo pisam o chão e eu sinto aquele ar denso do submundo desaparecer ao meu redor.

Demora um tempo para que eu crie coragem de abrir os olhos novamente e encarar a realidade do lugar em que me encontro, mas antes eu o faça, as buzinas e o cheiro de fumaça de escapamento, cachorro quente e suor humano arrancam um sorriso de mim, que vai de orelha à orelha.

Finalmente os abro e encaro a Fifth Avenue à minha frente.

Em transe, desvio de uma moto que buzina irritantemente para mim.

Não me importo com o fato de ter parado bem no meio da rua, tampouco com o fato de que o trânsito parou para que eu pudesse sair de lá logo, de preferência viva, obrigada.

Nada disso importa.

Eu estou em Manhattan.

A sensação de libertação - e algo mais, bem lá no fundo que eu deixo de lado - se apossa de mim.

Abro os braços e corro saltitante para a calçada, ignorando os olhares raivosos dos motoristas sobre mim.

Sei que não viram nada demais: a Névoa cuida disso. Eles não viram uma garota loira, baixinha e branquela aparecer do nada no meio da rua, provavelmente tinham visto uma doida correndo até lá e parando do nada para pensar na vida.

Reviro os olhos.

Embora fascinantes e abençoados, os humanos são bem babaquinhas. A concepção de realidade deles é, quero dizer.

Vou para o único lugar em que posso ir à essa altura: à casa de Chloe.

Chloe é uma semideusa, embora não saiba disso. Eu mantenho essa informação a salvo comigo, assim como a decisão de lhe contar sobre o Acampamento Meio Sangue (até porque eu não faço a mínima ideia de como lhe dizer isso).

Claro que para compensar esse egoísmo meu - afinal, ela é a única pessoa que eu tenho aqui - eu a protejo dos monstros que surgem constantemente.

Repasso mentalmente a imagem que eu tenho de Chloe: uma garota alta e negra, com cabelos encaracolados que vão até o meio das costas. Seus olhos cor de mel têm uma grande capacidade de observação e é o que os humanos costumam chamar de… Nerd.

Aperto o botão do elevador freneticamente, xingando a tecnologia barata do mesmo.

Quando chego ao andar correspondente à casa da semideusa - que na verdade é um apartamento muito bem organizado - suspiro e fito a porta branca com o número 2209.

Toco a campainha e aguardo ansiosa por algum som ou movimento vindo por trás da barreira de madeira - que logo vem.

A porta se abre, e Chloe surge, sonolenta e segurando seus três gatos - mais gordos do que o normal - no colo.

Franzo o cenho.

Chloe está… Mais velha?

Pisco confusa, mas Chloe parece ainda mais.

Ajeita o óculos redondo sobre o nariz e tomba a cabeça de lado, me avaliando.

– Sagira? - diz, hesitante.

– Sim, Chloe - respondo, nervosa - sou eu!

A empurro sutilmente para dentro do apartamento e entro. Fecho a porta atrás de mim e a fito.

Um bolo entala na minha garganta e eu penso se quero ou não saber a resposta para a pergunta que uma de nós fará a seguir:

– Por que diabos você está mais velha? - pergunto.

Minha voz saiu mais fina e estridente do que o normal.

– Eu é que pergunto: por que em dez anos você não envelheceu nada? - ela pergunta irritada - se encontrou a fonte da juventude, por que não compartilhou com sua boa e velha amiga?

Chloe cruza os braços sobre os seios avantajados e me encara numa carranca.

Uno as sobrancelhas. Dez anos? Dou um tapa na minha própria cabeça.

Havia me esquecido completamente da diferença de tempo no mundo humano e no Hades/Duat.

– Err… - passo a mão no rosto, pensando em alguma desculpa esfarrapada para dizer.

Subitamente, Chloe solta uma gargalhada.

– Não sabe o quanto está hilária, Sagira - ela zomba.

– Como? - pisco, confusa.

Chloe revira os olhos e ergue o óculos até o topo da cabeça. Um costume que mesmo após dez anos, ela não perdeu.

– Aquele deus gostoso, Tanatos, passou aqui - ela me lança um olhar malicioso - ele disse que você voltaria pra cá um dia, então nunca vendí o apartamento.

– Espera - peço - Tanatos sabia que eu voltaria?

Uma onda de raiva passa por mim. Desde quando eu sou tão previsível?

– Aham - ela diz e passa a mão nos cabelos - disse pra eu estar aqui quando retornasse.

– E você simplesmente ficou? - pergunto, indignada.

Chloe dá de ombros.

– Não é como se eu tivesse algo pra fazer na vida, Sagira - ela se joga no sofá e cruza as longas pernas - sair com caras mais velhos? Posso fazer isso enquanto espero você, além disso, não é todo dia que se descobre que sua colega de quarto é uma deusa.

Ela move as sobrancelhas para cima e para baixo. Um gesto que eu sempre achei engraçado e sempre tentei imitar.

Reviro os olhos e solto um riso baixo, mas ainda estou irritada.

– Sério, Chloe, por que ficou? - pergunto, séria.

Me sento ao seu lado e aguardo a resposta.

Sei que virá quando vejo os sinais: Chloe franze o cenho e cutuca a unha.

– Tanatos é meu pai, Sagira - ela diz finalmente - é por isso que não sou afetada pela sua presença, minha vida não se vai quando estou perto de você.

Minha boca se abre e um bolo se agita no meu estômago.

Isso é… ciúmes?

Não de Chloe, claro que não.

Nem sei ao certo de quem eu estou com ciúmes.

Mas nesse momento, penso “que seja, deixa pra lá”.

– E desde quando você sabe? - pergunto, curiosa.

Chloe dá de ombros.

Realmente não parece se importar em ser uma semideusa.

– Eu sempre me senti diferente dos demais e vejo coisas - ela confessa - mas soube comente quando ele apareceu.

– Você vê coisas? - minha curiosidade aumenta.

– Vejo como as pessoas vão morrer - ela diz, encabulada - você já morreu umas dez vezes, Sagira, tem noção do quanto é excruciante olhar pra você?

Franzo o cenho.

Se Chloe vê como as pessoas morrem, deve ter visto várias coisas desagradáveis em mim.

– Eu pensava que estava louca toda vez que te via, então agia normalmente - ela dá de ombros, adivinhando meus pensamentos.

Reviro os olhos.

Chloe é uma garota muito auto-confiante, mas ver o podre dos outros a amolece completamente.

– Sagira, é sério - ela diz, agora inexpressiva - Tanatos estava agitado, todo nervoso e perguntava freneticamente coisas sem sentido, ele queria saber onde você estava a todo custo e achava que eu sabia, nem se importou com o fato de eu ser sua filha quando começou o interrogatório sem fim.

Sinto raiva de Tanatos.

Ele interrogou uma mortal - que é sua filha, aliás - e poderia tê-la machucado, só pra procurar por mim.

– Mas por que eu contaria pra você que eu estava no Egito? - pergunto.

Tapo minha boca no instante em que digo.

Essa não é uma informação que eu deva contar à Chloe.

– Egito? - ela revira os olhos - era de se imaginar. Olha, eu não sei de nada e não pretendo me envolver nesse treco todo - ela gira os dedos sinalizando um furacão - mas eu lhe dou um conselho: faça uma visitinha à Tanatos, ele está ficando piradinho.

Reviro os olhos e ignoro seu conselho.

– Obrigada, Chloe - agradeço sinceramente - preciso ir, não posso ficar muito tempo e te envolver mais ainda, obrigada mesmo.

Chloe abre a boca para dizer algo sarcástico, mas Viajo antes que ela possa pronunciar.

Eu também estou curiosa para saber o que ela ganhou em troca de ficar à minha espera.

Deuses não são de pedir favores sem oferecer recompensas exageradas, e Tanatos muito menos.

Bufo e encaro o estacionamento do prédio.

Meus olhos buscam por algo que sinto muita falta, e brilham quando encontro.

Minha Harley Davidson Street 750 me aguarda, chamativa e negra como o céu sem estrelas de Manhattan.

Me aproximo dela de olhos fechados e estico a mão no ar.

Sussurro palavras instintivamente e sinto minha mão agarrar um objeto pequeno, metálico e frio.

Abro os olhos e puxo o braço, encarando a chave.

Sorrio e pulo na moto, dando partida e arrancando no mesmo momento.

Eu não sei o que vou fazer agora.

Mas sei que, cara, é Nova Iorque, a cidade que nunca dorme e eu vou aproveitar.


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