Sagira escrita por Senjougaha


Capítulo 14
Capítulo 14 - Eu não sou a única estranha aqui




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Eu nunca estive no Duat, de fato. Sempre pensei que seria uma versão egípcia do reino de meu pai, Hades, mas quando Hórus diz que eu posso abrir os olhos e o faço, me surpreendo.

Há sarcófagos, antiguidades e tesouros espalhados sim. Mas de alguma forma, sinto que o lugar não parou no passado. É uma mistura de antiguidade com modernidade que faz com que eu me sinta em casa.

Os corrimões de madeira polida e lustrosa nos guia por entre corredores de ritualísticos e eu posso ver khopeshes, vasos para preservar vísceras e diversos outros instrumentos que meu instinto me diz pra que serve, mas não me vêm um nome à mente.

Hórus empurra minhas costas. Acho que ele tentou ser sutil, mas eu cambaleio para frente, quase derrubando um vaso.

– Hórus, eu disse pra não se meter aí no meio - uma voz feminina e irritada rosna.

Encaro a garota aparentemente poucos anos mais nova que eu, mas sei que em questão de idade verdadeira, ela é séculos mais velha. Somos parecidíssimas, a diferença é que sua pele é mais escura e seus olhos estão fortemente delineados, uma autêntica egípcia.

– Kebechet - Hórus cumprimentou com certo desgosto - eu trouxe a sua… tia.

A garota me encara, parecendo desconfiada e surpresa.

– Tem certeza de que é ela? - ela pergunta, exalando dúvida.

– Absoluta, ela é tão detestável quanto o irmão - ele responde e me empurra novamente para frente.

Acho que eu devo dizer alguma coisa. Mas o quê? Sequer me lembrava que tinha uma sobrinha. Sequer me lembrava que meu irmão se casou forçadamente com Anput, sua versão feminina no Duat.

Deve ser um verdadeiro saco.

Volto a encarar Kebechet e deixo meus olhos ficarem completamente negros. Talvez isso elimine suas dúvidas quanto à minha legitimidade. Ela dá de ombros e sinaliza para que eu a siga.

Olho para Hórus automaticamente em busca de instrução e me amaldiçôo por isso no momento em que me dou conta disso: por acaso estou dependendo dele?

Ele franze o cenho e murmura um “vá”, e é o que eu faço.

Sigo minha sobrinha de gênio duvidoso por entre as prateleiras de vasos e os estandes de armas egípcias. Resisto ao impulso de pegar uma kopesh de cristal.

Isso não passa desapercebido por Kebechet.

– Era de Néftis - ela diz - mas nunca foi usada.

– Como assim? - pergunto, curiosa.

Kebechet me encara com seus olhos profundos.

– Ela a abandonou sem nenhum motivo aparente, disse pra doar a quem a quisesse - ela responde e tira a kopesh de cima do suporte.

Mordisco o lábio inferior.

“Não é da minha conta”, penso. “Não é da minha conta....”

– Se a quer, a leve - ela diz, interrompendo meus pensamentos e me lança um olhar sereno.

Kebechet estende a kopesh em minha direção usando as duas mãos e com a cabeça levemente abaixada, como se fosse sagrada. Provavelmente é.

Apanho o objeto com cuidado. Olhando de longe, se parece com algo de beleza mortal feito apenas para se observar pelo canto do olho, pois se olhar diretamente talvez quebre.

Mas em minhas mãos, percebo que não é nada disso. É firme, e nada fria ao toque como pensei que seria.

A kopesh pulsa em minhas mãos como se tivesse vida.

Reparo que seu punhal é negro, com inscrições, e não feito de cristal como o restante dela. Chego a arma mais perto do rosto e semicerro os olhos para confirmar se é isso mesmo o que estou vendo.

– Ferro estígio - sussurro surpresa, para mim mesma.

Kebechet franze o cenho e se aproxima para ver do que estou falando.

– O que quer dizer com isso? - ela pergunta, e é a primeira vez que noto o quão infantil sua voz é, fazendo jus à aparência.

Chacoalho a cabeça, tentando afastar os pensamentos embaralhados. Por que há ferro estígio numa kopesh?

– Nada - respondo num murmúrio - vamos continuar.

Ela dá de ombros e sinaliza para que eu a siga novamente. Seu andar é suave como um coiote pisando as dunas de areia, espreitando a noite fria.

Sim, ela definitivamente é filha do meu irmão.

– … e seu quarto fica ao lado do meu, caso precise de algo é só dizer - percebo que ela fala comigo e espera uma resposta.

– Ah, claro - respondo e sorrio.

Ela me encara. Sabe perfeitamente que não ouvi uma palavra do que disse, mas prefere não jogar na cara.

Acabo de notar que estou perfeitamente à vontade ao lado de Kebechet, apesar de sua frieza.

Olho ao meu redor. Estamos em um corredor de paredes brancas com hieroglifos em alto relevo. É bonito.

A porta à minha frente possui um Udyat ao invés de um olho mágico. Reviro os olhos e giro a maçaneta, empurrando depois.

– Você pode redecorar, mas Anput e eu o arrumamos da forma que meu pai alegou que você gostaria - ela continua.

Parece tensa. Como se estivesse ansiosa, como se quisesse muito que eu gostasse.

Vasculho o quarto, avaliando.

É tudo branco, cinza e preto à primeira vista, mas reparando melhor posso ver pequenos detalhes em cor de rosa. Como um porta-retrato vazio, um despertador, os pegadores do closet…

Eu não gosto de rosa. Na verdade, abomino tal cor e An sempre aprovou minha atitude.

Provavelmente ele pensa que Perséfone me deixou mais… “feminina” e Anput tentou me agradar.

Abafo o riso.

– Está perfeito - digo direcionando um sorriso à garota que aguarda ao meu lado - eu gostei muito.

– Você está meio mentindo - ela torce o nariz - mas sua mentira tem um cheiro bom.

Ela retribui o sorriso e sai, sumindo misteriosamente nas sombras que a iluminação do corredor cria.

É hora do meu merecido banho para me livrar dos grãos de areia que insistem em grudar no suor, e logo depois, dormir.

Fito a cama de madeira negra com dossel branquinho e solto um suspiro de... saudades.

Mas de quê? Não sei exatamente. Tenho tudo o que passei séculos querendo bem aqui, debaixo do meu nariz.

Franzo o cenho e me jogo na cama.

O banho pode esperar um pouquinho mais.


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