Crônicas Parabatai - o lobo e o feiticeiro escrita por Blackshadow


Capítulo 6
A face dos ancestrais




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Ele desceu as escadas, admirado. – Então, este é o salão de baile dos sonhos do Math? Mas o que estou fazendo aqui? – Pedro observava cada detalhe da decoração luxuosa e também as pessoas vestidas com roupas de gala, dançando sem parar, rodopiantes, vibrantes, mas não havia máscaras. Então, viu seu parabatai cumprimentando uma jovem com toda reverência, tocando as mãos dela solenemente, em passos alternados e giratórios para a direita e a esquerda, solenemente.

– Math! Math, estou aqui!

– Ah! Ele não vai te responder – a voz que surgira atrás dele era familiar: Maíra, a garota-fada, caçadora-fada, enfim, a meio-sangue que lhes alertara do perigo antes. – Vocês estão em um sonho compartilhado, não exatamente um sonho, na verdade. Ele pode te ouvir, sabe que você está aqui, mas o subconsciente dele já assimilou as regras e elas dizem a ele para não deixar de repetir os mesmos movimentos.

– Mas... Não entendo. Como eu consegui entrar no sonho dele?

– Como te disse, não é exatamente um sonho. Veja, aqui é um dos salões reais da Corte Seelie, todos os presentes dançando são fadas, exceto por aquele ali – a garota apontou para um sujeito com visíveis marcas de escamas aparecendo no ombro direito, por baixo da capa –, mas você deve reconhecê-lo facilmente, não é?

– Lucas Draco! – os olhos do garoto brilharam de ódio, mas Maíra o interrompeu colocando a mão sobre seu peito. – Acalme-se. Estamos em uma projeção astral da corte, ele também está dormindo, digamos assim, e o atraí para cá em sonho.

– então ele está preso? Precisamos detê-lo, Maíra! Meus pais...

– Ah, detê-lo, claro... Antes, me diga, você sabe por que conseguiu chegar aqui?

– Na verdade, não. Talvez para você me esclarecer isso?

– Os alertas que enviei em sonho para o seu parabatai eram, na verdade, para você, Pedro Blackshadow. A pena que carrega no bolso é um presente dos seus pais dado a mim para que chegasse até você; eles têm esperança que você os encontre no local de onde ela veio.

– Mas por que diabos você não fez esses tais sonhos chegarem até mim, ao invés de ser o Matheus o receptor?

– Como te perguntei antes, você saberia por que conseguiu chegar aqui? Pois bem, não responda, apenas escute... Você tem sangue de fada dentro de você agora, não tem? Como você acha que eu acessaria sua mente tão facilmente? Jamais passaria os feitiços de bloqueios contra a magia de fadas que seus bisavós conseguiram conjurar para a linhagem deles, geração após geração, com o auxílio de feiticeiros poderosos, se não fosse o sangue que Lucas fez você beber; e essa foi a única maneira pela qual eu consegui contatar você por meio de magia, pois a liga diretamente a sua mente, apesar da energia ancestral que anos de prática na cultura africana conseguiram acessar. Um poder tão forte como a magia das fadas e do qual você é um descendente.

– Energia ancestral? Você quer dizer que mundanos também podem acessar alguma espécie de magia? – Pedro arregalou informações que nunca soubera antes que existia.

– Ah, as coisas que descobrimos com nosso sangue, não é? As coisas que os caçadores acham que dominam... Se ao menos considerassem que existe muito mais entre o céu, a terra e o inferno do que julgam existir! – Veja ali, se movimentando perto das cortinas e ali acima – ela apontou para as paredes do salão –, nas expressões dos rostos dos quadros.

– Fantasmas! Então eles...

– Espíritos. Eles entram onde querem e dependendo de quantos séculos acumulando energia, têm poder suficiente para transitar entre os planos superiores e inferiores e para bloquear energia demoníaca, se for preciso. O símbolo da sua família representa, em si, essa dica que estou te dando. – Ela tocou o anel no dedo de Pedro e olhou fundo em seus olhos – pense nisso! – Virou-se, então, em direção ao salão, e apontou do alto da escadaria para o outro caçador – já sobre seu parabatai, posso dizer que a magia das fadas é que sempre esteve protegendo a família dele, mas você sabe como os Nephilins guardam segredos de família uns dos outros, não sabe? Procurei chegar a você vagando pelos sonhos dele e, assim, descobri o seu paradeiro observando seu subconsciente.

– Nossa! Preciso fazer o Math acordar, ele tem que saber disso...

– Em breve ele fará isso, veja – a garota apontou para onde Lucas dançava e o feiticeiro já não estava mais ali e também em nenhum outro local do salão , o feiticeiro já não está mais no mundo dos sonhos, logo ele vai fazer vocês saírem também.

– Não! Não posso sair agora, você precisa me ajudar a encontrar o paradeiro dos meus pais, você sabe onde eles estão, não sabe?

– O reino das fadas é extenso, vai a lugares que nunca pude antes imaginar... O que sei é que em uma dessas aventuras minhas pelo reino, caminhei entre passagens mágicas ligadas a cavernas, mas uma delas em especial me chamou atenção; uma em que ouvi gritos humanos e senti enorme movimentação de energia demoníaca. Araras voavam assustadas em retirada e segui, curiosa, pelo caminho contrário ao que elas faziam. Cheguei a uma espécie de câmara e lá estavam dois caçadores amarrados dentro de um pentagrama circunscrito; seus pais. Sondei o ambiente e não havia sinal de feiticeiros ou demônios, a não ser pelo forte cheiro de enxofre. Corri para desamarrá-los, pois os reconheci por meio de suas mãos: “os Nephilins cujos anéis estampam o símbolo da árvore sagrada, evite-os, mas os auxilie se isso trouxer benefícios para o povo das fadas”. A rainha me disse assim que ingressei na sua corte, talvez ela soubesse que tudo isso aconteceria; ela sabe de muitas coisas antes de acontecer...

– Então você optou por largá-los lá, quando se lembrou do conselho mesquinho da sua rainha? – Pedro indignou-se com a garota meio Nephilim; ela, que já havia sido uma caçadora como ele.

– Eu não os abandonei! Minha magia ainda não é forte o suficiente contra a magia demoníaca. Ademais, também sou uma fada e tenho obrigações a cumprir, que talvez devesse ter mais cuidado para compreender. O que você não sabe é que vi e senti a magia de vários resquícios de sangue de fada espalhados pelas rochas da caverna e o chão. Então, percebi que meu povo também estava sendo ameaçado por qualquer ritual maluco que estivesse acontecendo ali. Seus pais me alertaram sobre ser inútil e perigoso eu continuar ali, mas pediram que, para uma futura cooperação entre fadas e caçadores, especialmente o filho deles, eu levasse uma mensagem e a entregasse em suas mãos. Peguei, então, uma das penas de arara caídas no chão por conta da revoada repentina e coloquei a inscrição que você já deve ter lido. Um presente dos seus pais para que você descobrisse o lugar. Assim que terminei com minha magia sobre a pena, um feiticeiro apareceu subitamente no centro da caverna, com chamas roxas que surgiam em combustão instantânea. Seu coração brilhava como brasa e logo os corações daqueles caçadores ali também brilharam entre seus gritos de dor. Naquele momento eu soube que só poderia ser uma influência demoníaca e quis sair dali pelos mesmos corredores, mas o feiticeiro me viu. Quando ele me reconheceu como fada, deu um passo em minha direção, imediatamente eu estalei os dedos e me teletransportei para a passagem mais próxima e segura da Corte Seelie. Agora estou aqui e já revelei porque entreguei aquela pena em suas mãos. Acho que estamos quites.

– Estamos quites?

– Sim, estamos. Quando o segui seu paradeiro vi o feiticeiro que os acompanhava e o reconheci imediatamente. Você me levou a quem está envolvido no assassinato de várias fadas da Corte Seelie, me ajudou a identificar nome e sobre nome, e eu retribui te entregando aquilo que seus pais me pediram para entregar: uma pista.

– Você tem que me ajudar a chegar lá, Maíra, por essa passagem que você descobriu. Por favor!

– Não, Pedro, eu não tenho que te ajudar, até porque não faço ideia de como cheguei naquele lugar; o susto com o feiticeiro me fez sair dali sem mapear o local. Por outro lado, para que se preocupar se você e seu parabatai já estão a caminho de lá?

– Como? A caminho? Mas...

Outra vez raios dourados envolveram a garota-fada e ela desapareceu. As paredes do salão começaram a ruir e as fadas iam desaparecendo uma a uma em raios de diversas cores. Matheus estava desperto do transe musical e não entendia o que estava acontecendo, apenas que ouvira a voz de Pedro chamando seu nome e procurava pelo parabatai.

A mão de Pedro segurou forte o pulso direto de Matheus e o arrastou para a porta principal em uma velocidade incrível, a qual Math mal pode acompanhar, tropeçando nos destroços de concreto que havia despencado no chão. Então, quando Pedro abriu a porta e a atravessou com o parabatai, caíram imediatamente em um precipício e gritaram!

Milhares de araras em revoada sustentaram os dois caçadores no ar e os conduziram por cima de uma cachoeira enorme, deixando-os cair, em seguida, de encontro ao rio.

***

– Acordem, meninos! – A água gelada foi a responsável pelo susto e as roupas encharcadas dos parabatai, que respiravam ofegantes após terem tido as cabeças enfiadas debaixo de uma cachoeira, de onde eles não faziam ideia que tivesse aparecido. – Bem-vindos ao Buraco das Araras! Caverna e reserva florestal próxima a Brasília. Sua cidade, não é mesmo, Blackshadow? – O feiticeiro Lucas não parecia ele mesmo; falava sarcástico, com uma crueldade na voz demoníaca e olhos completamente vazios. – Ah! Não se preocupem com a bagagem de turistas, ok? A sua maletinha de roupas está ali no canto direito, Pedro, juntamente com as jaquetas horríveis suas e de seus amigos, que, por sinal, estavam cheias de armas! Fiz questão de ordenar a um de meus servos – ele apontou para um homem alto e robusto parado à entrada da caverna, estático como uma sentinela, claramente um mundano controlado por magia para jogar todas elas água abaixo, na cachoeira. Claro que não fiz isso com a caixa contendo o objeto mais cobiçado dos últimos séculos, o Arco do Cupido! – O feiticeiro soltou uma gargalhada estrondosa, que ecoou pela caverna adentro. Em seguida, continuou. – Ora, também não poderia me desfazer disso aqui tirou, então, um livro de capa cinza que carregava debaixo do braço e o levantou. O Livro das Sombras, não é isso?

Quando Pedro ameaçou estender a mão para pegar o livro, Lucas balançou os dedos em faíscas roxas. Agora, vocês me sigam, por favor. Ah! Não esqueçam esses seus amigos desacordados aí fora, ok? Imediatamente Pedro e Matheus sentiram o corpo enrijecer, perdendo o controle dos movimentos e indo em direção os amigos caídos, arrastando um a um para dentro das câmaras interiores da caverna. – Não se preocupem, meus serviçais podem ajudar vocês. – O feiticeiro estalou os dedos e vários mundanos, que mais pareciam zumbis, saíram de dentro da caverna que ele adentrava e se dirigiram para perto dos parabatai, pegando um a um também os Nephilins, a mundana e o lobisomem que antes estavam dormindo na casa de Lucas, mas que agora se encontravam uns por cima dos outros, jogados no chão.

Dentro da caverna, os Nephilins desacordados foram deixados de frente para o círculo de invocação demoníaca, enquanto os “mundanos-zumbis” desabavam no chão como corpos sem vida, apesar de estarem apenas sob controle do feiticeiro. Pedro e Matheus foram liberados do transe após concluir o trabalho de arrastar os demais, e encostaram esgotados em uma das paredes da câmara. Ao centro do círculo, amarrados sobre o pentagrama, Júlia e Ivo Blackshadow respiravam tão vagarosamente que não parecia que estivessem vivos de fato. Seus corpos estavam rígidos e o coração brilhando como brasa em chama, além dos olhos vazios, exatamente como os olhos de Lucas, que se encontrava diante deles entoando algo em uma língua de sons ásperos e metálicos, claramente demoníaca.

– Mãe... Pai... – Pedro apontava lentamente para o círculo desenhado no chão, tentando chamar a atenção do parabatai com a outra mão. Ambos estavam muito fracos.

– Nunca conseguiremos... – Math ainda estava ofegante. – Vo...cê... Você es-estava no meu... sonho – o jovem concluiu com muito custo o que precisava dizer.

– Eu sei, você também... também estava no m-meu. Foi uma pro... projeção da Maíra para nos contar sobre o Lucas. Preciso tom... tomar o livro dele, Math.

– E eu, o Arco. Mas n... não sei como fazer. Vamos nos recuperar um pouco.

As velas colocadas em volta do círculo acenderam-se repentinamente, todas queimando com fogo roxo, que oscilava em altos e baixos, enquanto a entonação do feiticeiro ficava mais forte e mais alta em seu cântico misterioso. Lentamente um cheiro de fumaça sulfúrica tomou o ar e uma explosão de lava e enxofre emergiu do centro do círculo, passando por entre os caçadores amarrados como espectro. Outra vez, diante do feiticeiro que outrora o invocara, a lava tomou a forma de um busto demoníaco, com asas de morcego e pele de dragão. Lá estava Incubus.

– Por que invoca seu senhor?

– Aqui estão, pai, o Arco e o Livro. – Lucas estendeu a mão segurando os instrumentos diante do demônio e os colocou no chão, em frente ao círculo.

– Eu poderia te matar se eu quisesse, Lucas. – O demônio fez o coração do filho arder em chama, brilhando incandescente, enquanto o feiticeiro gritava de dor. Então aliviou a tortura. – Já te falei sobre me chamar de pai, mas vou considerar que você foi um menino útil e que superou sua raça. Não só me trouxe o livro secreto dos Blackshadow como descobriu o paradeiro do Arcus Cupinidis. Não foi uma tarefa tão difícil, foi? Essas duas famílias sempre andaram juntas; encontre uma e encontrará a outra e seus segredos...

– Eu agradeço sua benevolência, meu senhor. – Lucas respirava ofegante, enquanto o demônio concentrava energia com algumas palavras em língua demoníaca, fazendo todos os presentes – mundanos, caçadores e o lobisomem – colocarem-se de pé diante dele, obrigando inclusive os que resistiam.

– Mas o que... Onde estamos? – Felipe foi o último do grupo a despertar enquanto era colocado de pé, ao lado de Mei, Ryo, Luana e Joyce, todos em frente ao demônio, que pairava no centro do círculo.

Pedro e Matheus seguiram contra sua vontade para perto dos amigos, como se tivessem sido atraídos por uma força maior, e todos os mundanos presentes estavam de pé atrás deles, olhando fixamente para o demônio, que sorria aterrorizante. Os olhares dos caçadores, Felipe e Joyce voltaram-se aos parabatai, que cochicharam rapidamente para os mais próximos passarem adiante sobre Lucas estar sendo controlado pelo demônio Incubus ali presente e que eles estavam no cativeiro dos pais de Pedro, feitos reféns por causa do Livro e do Arco do Cupido.

– Silêncio, Nephilins! Vejo que estão muito bem acordados, mas é assim mesmo quero vocês, pois hoje testemunharão a ascensão de um Demônio Maior. Não falo de mim, é claro, serei modesto... Hoje, Asmodeus, nosso grande comandante, será liberto nesta dimensão precária de vocês em sua forma natural, sem precisar possuir qualquer tipo de receptáculo, e unirá os seus domínios; não há nada que qualquer um aqui presente possa fazer para impedir. – O demônio gargalhou satisfeito com suas palavras, gerando eco por todos os túneis e corredores ligados à câmara principal da caverna.

– Você não conseguirá isso sem abrir um portal definitivo entre este plano e o Inferno; só um feiticeiro de sabedoria milenar poderia fazer o serviço sujo que você espera. Que eu saiba, o último que tentou tal feito foi tragado para o Vazio junto com toda a magia usada em vão. – Luana Heronstairs contestou o demônio, sem medo. Ela conhecia a história da ascensão do Hotel Dumont, em Nova Iorque – seus pais já haviam contado sobre o ocorrido – e sabia como um portal de tal nível precisaria de um feiticeiro poderoso como Aldous Nix, que já não andava mais em nosso plano de existência.

– Ah! Claro, um feiticeiro de sabedoria milenar. Bem, digamos que Lucas Draco não seja o mais experiente, mas que ele tenha adquirido certo livro de conhecimentos mágicos e repleto de energia ancestral mundana milenar, poderoso como a mão de um feiticeiro de mais de dois mil anos – o demônio continuou encarando Luana. – Oh! Veja! O livro está aqui! – Ele fez um maneio com uma das asas de morcego em direção ao Livro das Sombras, deixado no chão por Lucas, e continuou. – Digamos, ainda, que a única arma capaz de reduzir a quase nada um Demônio Maior seja a Gloriosa de Miguel – que certamente retornou às mãos do dono após fulminar Lilith por um idiota da sua raça – ou, quem sabe, um arco desaparecido, supostamente o arco do deus Cupido, cujas flechas de adamas carregam dolorosas chamas de fogo celestial. – O demônio franziu a testa, abaixou os olhos e maneou a cabeça em direção ao chão, onde também estava o Arcus Cupinidis. – Ora! Ali está ele! Acho que podemos concluir, caçadora, que tudo o que preciso está aqui: o livro para ter sua magia extraída e o arco para ser destruído. – Ele bateu apenas uma vez suas asas e Luana Heronstais foi lançada contra a parede, soltando um grito de dor. Agora fique calada, sua insolente!

– Não! – Luana Redstorm admirou-se com a preocupação com aquela caçadora, afinal não havia simpatizado muito com a garota. Mas elas tinham o mesmo nome e tinha se esforçado como uma Nephilim que precisava ajudar os pais a consolidar o nome da família. Ryo mesma sabia como era ter aquele sentimento. Não era à toa que se submetia a um disfarce tão torpe como fingir ser um homem no Mosteiro de São Bento, apenas para aprender mais, dia após dia, e ser uma boa caçadora que honrasse o nome da família.

– Lucas, vamos acabar logo com isso! Destrua o Arco!

– Ryo! – Foi Mayara agora quem chamou sua atenção. – Ela gesticulou com a cabeça e os olhos em direção à perna da garota e Luana logo lembrou que sua adaga sempre estava amarrada à coxa, estrategicamente escondida. Sutilmente, a caçadora retirou a arma da perna, enquanto Lucas colocava-se entre o demônio e os demais para recolher os objetos deixados em frente ao círculo e solicitar maiores instruções.

– O que fazer com os dois amarrados no círculo, meu senhor? – Lucas falava de maneira estranha, como se, de alguma forma, tentasse lutar contra a influência do demônio, ao mesmo tempo em que sofria com a dor no peito, enquanto seu coração brilhava e ardia.

– Desamarrem-nos e os controlarei para revelarem os segredos do livro. – Conforme o ordenado, o feiticeiro assim o fez. Júlia e Ivo foram arrastados para fora do círculo e colocados de pé em frente ao demônio. Estavam complemente inertes e seus corações ainda vermelhos como brasa cintilante.

Repentinamente a adaga de Ryo voou como um raio prateado e atingiu as costas do feiticeiro, bem na região do coração. Ele cambaleou de dor e se apoiou em uma rocha próxima ao local onde as armas dos caçadores se encontravam. Ryo, por sua vez, caiu de joelhos com o esforço, e sentia dores nas articulações. Seu corpo ainda muito controlado pela força demoníaca não permitiria mais que um rompante de ação única e ela sabia que teria que ser um ataque perfeito, por isso acreditou e o fez.

Por um breve momento, a influência demoníaca sobre Lucas foi diminuída com o golpe da adaga e ele parecia retornar com algum esforço à realidade e a compreender os horrores que havia cometido, mas as imagens ainda eram turvas em sua mente. Ao ver o feiticeiro golpeado e seu poder sobre ele enfraquecido, Incubus gritou de ódio e começou a agitar fortemente suas asas de morcego, o que provocou um vendaval de cascalhos e poeira no interior da caverna.

Em seu descontrole, a influência sobre os corpos dos presentes parecia estar diminuindo. Os mundanos começaram a despertar atordoados, sem saber onde estavam e aterrorizavam-se com a ventania e os gritos do demônio, correndo como baratas tontas, sem saber em que direção seguir e esbarrando uns nos outros. Pedro e Matheus, por sua vez, sabiam que precisavam com urgência pegar o arco e o livro, mas estavam desarmados e com um Demônio Maior lançando ataques por toda a câmara da caverna. Também Júlia e Ivo Blackshadow despertaram e caíram de joelhos em frente ao Livro das Sombras e ao Arco do Cupido. Estavam esgotados devido ao longo tempo em domínio do demônio, mas reconheceram os objetos a sua frente e sabiam que seu filho só poderia estar ali.

Então, Júlia olhou por cima do ombro e viu Pedro, logo atrás de si, que gritava para que os pais procurassem abrigo, mas os Blackshadow sabiam que não teriam outra chance. Eles se entreolharam e, em um último esforço, Ivo lançou o arco em direção a Matheus e Júlia lançou o livro para Pedro.

– O desenho da árvore, meu filho! – Júlia gritou para Pedro.

Èró Ìrókó ìso! – Ivo lembrou-o da saudação à árvore sagrada e a única lição que realmente importava para sua linhagem e para seu futuro: A calma é de Iroko, que não falha!

Foram suas as últimas palavras.

Imediatamente um turbilhão de vento, lava e fogo foi lançado pelo demônio sobre os pais de Pedro e os transpassou enquanto os girava no ar até fazê-los bater no teto rochoso da câmara e deixá-los cair de ponta-cabeça no chão. Estavam mortos.

Pedro viu a cena do ataque sobre seus pais como um filme em câmera lenta enquanto caíam estatelados. Um desespero súbito tomou seu coração e ele quis correr para junto deles, mas Matheus o impediu, colocando-se a frente do seu parabatai.

– O livro, Pê! Só temos essa chance. – Math não teve tempo para aclamar o amigo, apenas para alertá-lo. Armou, então, o arco sagrado e apontou em direção a Incubus, mas foi impedido de lançar a flecha de adamas por raios roxos lançados contra ele, o que o fez desequilibrar-se e cair com um grito. Math ergueu a cabeça com esforço e viu Lucas diante dele, outra vez com a expressão vazia e o coração em um alaranjado cintilante por baixo da blusa, pronto para desferir o golpe final.

– Saaaai! – Mayara lançou-se do jeito que pôde em cima do feiticeiro, derrubando-o e rolando com ele no chão.

– Pelo Anjo! Essa garota é louca! – Luana Redstorm correu em direção à amiga e o feiticeiro e se jogou sobre eles, ajudando-a a prender as mãos de Lucas. – Matheus, ele vai se soltar! – Mei gritou ao caçador caído, pedindo que fizesse algo, mas não houve tempo suficiente. O feiticeiro movimentou os dedos e, em questão de segundos, os mundanos estavam novamente controlados e praticamente com as mãos em cima delas. Elas gritaram.

– Basta! Vocês também serão controladas como eles! – Lucas se desprendeu das mãos das caçadoras que o seguravam e concentrou chamas roxas nas palmas de suas mãos, mas por pouco tempo.

Luana Heronstairs, antes desacordada com o choque contra a parede, havia recuperado a consciência e se viu no meio de um turbilhão de vento, lava e cheiro de enxofre. Olhou para o centro da câmara e viu o demônio descontrolado, atirando mundanos contra a parede e movimentando cascalhos e rochas no ar e teve a sensação de que todos seriam esmagados ali. Então, analisou a situação: Joyce estava desacordada próxima a ela; Ryo e Mei estavam em apuros, com os “mundanos-zumbis” de Lucas segurando-as pelos braços; Pedro abrigou-se atrás de uma rocha e concentrava-se com o Livro das Sombras, como se estivesse ensaiando palavras e concentrando energia, algo que talvez um feiticeiro devesse fazer. Por fim, observou que Math, caído como estava, preparava o Arco do Cupido e apontava para o feiticeiro, pronto a lançar a adamas de fogo sagrado.

Por um breve instante, a beleza e a determinação do rapaz chamaram sua atenção. Luana ainda não tinha reparado em Matheus daquela forma e esperava que saíssem daquela situação para dizer isso a ele um dia, entretanto tudo parecia um caos naquele momento e a garota sabia que, se quisesse mesmo ver aquilo acontecer, também precisava agir. Ela correu em direção a Lucas, empurrando os seus servos mundanos, e alcançou as suas costas; agarrou, então, os dois pulsos dele e puxou seus braços para trás, prendendo-os. Matheus aproveitou a chance dada por Luana e arremessou a flecha, que voou até transpassar o braço esquerdo de Lucas, queimando-o imediatamente. Era um fogo dourado e intenso, que fazia o feiticeiro gritar de dor.

O demônio teve a atenção atraída pelo grito do filho e viu o rapaz queimar como uma tocha consumida em fogo celestial. Ele cobriu os olhos com as asas e também gritou, mas de ódio, abrindo-as em seguida com um brilho vermelho e alaranjado, intensificando seu poder. Então, a ventania ficou mais forte do que antes e todos foram jogados no chão ou arremessados contra as paredes.

Incubus! – Pedro levantou-se de trás da rocha que se abrigara e o vento o jogou contra a parede logo atrás, mas ele não caiu. Segurava o Livro das Sombras em uma das mãos e, mesmo com certa dificuldade de enxergar por causa do vento intenso, ergueu a outra em direção ao demônio, que o olhou com ar assassino. – Em nome dos meus ancestrais e do poder da árvore sagrada, eu ordeno que pare!

O demônio gargalhou como uma fera que sabe que tem o domínio da caça. – Quem é você e quem são seus ancestrais para me ordenar a fazer algo? Você vai morrer, Blackshadow, assim como seus pais morreram!

– Pedro, o que você está fazendo? – Augusto Blackthorn surgiu correndo de um dos corredores ligados à câmara central da caverna. Atrás dele, dezenas de Nephilins o acompanhavam, além de guerreiros e guerreiras do povo das fadas que vinham ferozmente em seus cavalos bestiais, com rajadas de energia cintilante que tomavam a forma de uma espécie de rede de pesca mágica e iam recolhendo os mundanos caídos e os arrastando pelos corredores de onde haviam saído.

Pedro pôde ver, montada em um dos cavalos dos guerreiros, a garota-fada que conhecera, Maíra, e sentiu-se aliviado. Compreendeu que aquela união entre raças contra um demônio só poderia ter sido articulada por ela.

A esperança, contudo, não vinha a cavalo. A Corte Seelie foi completamente desarmada na última intervenção da Clave e contavam apenas com a sua magia. Pedro sabia que ainda precisava confiar na orientação de seus pais e quis prosseguir.

– Pedro Blackshadow! Pare, eu estou no com...

O líder do Instituto não conseguiu concluir a frase. Um turbilhão de vento o atingira, lançando-o longe contra uma rocha no salão. Os caçadores e os guerreiros-fadas pararam diante do Incubus e se admiraram. Nunca tinham visto um demônio invocado tão grande em suas proporções e com tamanha liberdade de ação em um círculo. Mas não tiveram muito tempo para contemplar o mostro; um bater de asas e os cavalos estavam caídos e caçadores e fadas lançados contra rochas, parede, tetos e chão.

Imediatamente o demônio enviou um turbilhão de lava em direção a Pedro, que encostado na parede e sem para onde ir, considerou ser seu fim. Mas não era. Um uivo de dor saiu da boca de Felipe Wolfmark, que pulara na frente do caçador, em forma de lobo.

– Felipe! Não, não! Por que você fez isso, Lobinho? Por quê? – Pedro tomou o amigo licantrope nos braços e afagava sua cabeça.

– Já disse pra você não me chamar de Lobinho... – Ele estava fraco, desfalecendo, e já tomava a forma humana novamente. Com um último esforço, ainda foi capaz de encostar as pontas dos dedos na testa de Pedro, como sinal de respeito. – Você é nossa única esperança neste momento, não poderia deixar que morresse aqui. Você nos salvará. – Ele fechou os olhos e amoleceu.

Incubus! – Outra vez Pedro ergueu a mão em direção ao demônio e não se intimidou dessa vez. Tinha ódio no tom de voz ao chamar o demônio e não teria clemência pelo que havia feito as seus amigos. Não permitiria que alguém mais se ferisse. – Que a força dos meus ancestrais esteja comigo, que a árvore sagrada me proteja. – Ele fez uma prece rápida e olhou para o livro, na página em que a árvore de Ìrókó estava desenhada, com toda a linhagem de seus ancestrais e palavras em língua Iorubá em volta. Jogou, então, o livro arrastado pelo chão até que chegasse próximo ao demônio.

– Idiota! Acha que um livro pode fazer algo contra mim, vou destruir todo esse seu conhecimento inútil! – Quando Incubus preparou o fôlego para sobrar algo com seu poder sobre o livro, Pedro por três vezes gritou as palavras que estavam escritas ao redor do desenho.

Igi t'Olórun gbìn kò sí eni ti o le fà a tu!A árvore que Deus planta não há quem possa arrancar.

O livro começou a girar repentinamente e o próprio demônio segurou o fôlego. Em segundos, uma energia holográfica começou a surgir da página do livro aberta e tomar a forma de uma árvore que subiu até o teto da caverna. Em suas folhas enormes, espectros coloridos, em forma de homens e mulheres, apareceram sentados, ao redor de toda a copa e saltaram para o chão, formando um círculo em volta do círculo de invocação demoníaca e começaram a dançar e rodar e dançar...

Èró Ìrókó ìso èró! Èró Ìrókó ìso èró! – As vozes deles clamavam em festa, em um cântico que fazia aos poucos o tremor e a ventania dentro da caverna cessar. Eram Orixás.

Incubus praguejava e urrava em purgatês – ou qualquer que fosse a língua demoníaca que usava – enquanto sentia seu poder ser diminuído e suas asas de morcego controcidas. Elas já não brilhavam mais imponentes como antes e o ar tóxico que antes poluía o ambiente começava a se purificar.

Era a primeira vez que Matheus e todos acordados via algo do gênero acontecer; e já tinha visto bastantes coisas em se tratando do Submundo, mas nada como o que estava acontecendo. De fato, aquilo não era o Submundo, era outro tipo de classe, outra energia, mas ele não podia perder mais tempo admirando o que via. Incubus estava enfraquecido e a única chance de destruir um demônio como aquele era lançar uma fecha do Arco do Cupido, enquanto aquelas energias poderosíssimas ainda o podiam controlar.

Matheus se levantou e correu em direção ao feiticeiro caído, para pegar a flecha presa em seu ombro. Ele achou que Lucas estaria carbonizado com o fogo que o havia engolido, mas ao mesmo tempo em que considerou merecido o que lhe acontecera, também ficou aliviado em ver que o feiticeiro talvez ainda estivesse vivo. Não podia condená-lo por estar sendo controlado por um demônio, ainda mais o próprio pai. Arrancou, então, a flecha do corpo de Lucas, preparou o arco e a lançou. Outra vez fez a adamas brilhar flamejante direto no coração de Incubus, se é que demônios tivessem um coração.

O Demônio Maior estava em chamas. Seus gritos e urros de dor agonizavam e ele foi dobrado como papel amassado até desaparecer. As chamar roxas das velas subiram juntas e apagaram de uma só vez. Incubus foi consumido pelo fogo do Céu.

Os espectros dançantes fizeram um gesto de reverência e subiram na árvore sagrada novamente. De dentro de suas enormes raízes, Pedro pode ver se aproximar pessoas vestidas em túnicas brancas – seus ancestrais estavam ali.

– Fantasmas! – Joyce gritou admirada. Ela finalmente acordara depois de transes, ventanias e turbilhões de lava. Estava salva.

– Espíritos. Eles são espíritos. – Maíra acordara do choque contra a parede provocado por Incubus e estava logo ao lado de Joyce. Ela também viu Pedro e sorriu para o garoto, em sinal de que estava satisfeita pelo caçador ter entendido sobre o que fazer para deter o demônio. – Veja, os ancestrais do Pedro – Maíra se voltou para Joyce novamente e apontou para os espíritos – Eles estão indo em direção a Júlia e Ivo Blackshadow.

Pedro correu para junto dos pais, antes que os espíritos chegassem perto deles. Abraçou-os e tentou acordá-los, mas em vão.

– Vamos, meu jovem, deixe-os conosco. – Akin Blackshadow olhava firme para Pedro, enquanto Omala se colocava ao seu lado e lhe abria um sorriso.

– Vocês são...

– Eles são seus bisavós, meu querido. – O espírito de Júlia ergueu de seu corpo e se pôs de pé, falando com o filho. Ivo também estava ali ao seu lado e sorria orgulhoso para o filho.

– Estamos em família agora, filho. Um dia você também se juntará a nós. – o espírito de Ivo afagou o rosto do filho, que sentiu uma energia suave e quente em sua bochecha. Atrás de seus pais, Pedro reconheceu seus avós paternos e maternos, e todos tinham um semblante de paz e envoltos em muita luz.

– Escute, Pedro – era Akin quem se dirigia ao bisneto agora –, há outros Blackshadow espalhados pelo país e que se dispersaram. Sua missão agora é unir a família novamente, então terá um propósito para daqui em diante seguir.

Pedro abaixou os olhos e chorou novamente. Ele sabia que agora estaria sozinho, que havia lutado tanto em busca de seus pais desaparecidos, mas não foi capaz de impedir que morressem.

– Não chore, pequenino. – Omala tomou a palavra. – Una o que está disperso e valorize seus amigos. Essa família que você conquistou é tão valiosa quanto seu sangue, proteja-os e lhe seja leal, então eles te ajudarão a seguir. A propósito – ela cochichou em seu ouvido –, licantropes são mais resistentes do que se pode imaginar. Talvez você devesse considerar que ainda pode salvar um amigo – ela apontou para Felipe, desacordado próximo à parede, e se afastou em seguida, guardando ainda o belo sorriso.

Os espíritos tomaram o caminho para a árvore novamente. Entraram em suas longas raízes expostas e desapareceram. A forma da árvore regressou para dentro do livro, que girou três vezes e se fechou sozinho. Naquele dia, a despeito das certezas de qualquer raça presente – fada, humano, licantrope, feiticeiro, demônio ou Nephilim – os ancestrais mostraram a sua face.


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