Rescuer escrita por Veritas


Capítulo 3
Três


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo foi muito difícil de escrever, acho que é porque foi o que eu mais gostei de escrever até agora. Acho que todos nós, não só a Aimme, precisam gritar para tirar o peso do coração.



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Não consegui parar de pensar no Miles a noite toda. Fiquei acordada até tarde da noite só pensando nas coisas que ele me disse. Era incrível a maneira que aquilo havia mexido comigo. São tantas perguntas que eu quero fazer, são tantas coisas que eu quero dizer. Pensei em mandar uma mensagem de texto, ou até mesmo ligar, mas não sou corajosa o suficiente.

Consegui pegar no sono, mas quando acordei na manhã seguinte, cada centímetro do meu corpo doía, parecia que eu tinha sido espancada na noite passada. Eu não durmo bem desde o dia do acidente dos meus pais, mas nunca acordei dessa maneira. A tensão está dominando meu corpo, eu preciso de respostas, eu preciso saber se isso vai passar.

Cami deixou um bilhete na cozinha, ela conseguiu o emprego que estava querendo há algum tempo, e isso significa que nos veremos muito pouco durante o dia. Quando eu acordar ela não estará em casa, e quando ela chegar, já vai ser quase hora de dormir. Nós só vamos nos ver normalmente nos finais de semana.

Aprontei-me para ir para o colégio, mas não consegui comer muito bem. Peguei o ônibus da escola e fui pensando no caminho quais perguntas eu faria primeiro, mas são tantas que eu nem sei por onde começar.

Quando cheguei ao colégio procurei por ele em toda parte, mas não o encontrei. Onde será que ele fica? Tive que esperar até a hora do almoço para vê-lo, mas na verdade quem me viu foi ele.

–Aimme! - Disse ele puxando a cadeira a minha frente.

–Miles, ai está você. - Disse aliviada

–Hum, me procurando. Gostei disso. - Disse ele com um sorriso malicioso.

–Cala a boca. Preciso falar com você.

–Você tem meu telefone, por que não me ligou?

–Às duas horas da madrugada? - Perguntei.

–Qual é o problema, Aimme?

–Você deveria estar dormindo essa hora.- Afirmei.

–Aimme, eu não durmo faz dois anos.

Fiquei em silêncio, eu sabia como era aquilo.

– Desculpa, mas eu pensei… Deixa pra lá, podemos conversar? - Perguntei.

–Posso ir até a sua casa hoje? - Perguntou ele.- Sem más intenções, eu juro!

–É claro, eu preciso te fazer algumas perguntas.

Quando cheguei em casa recebi uma mensagem de Miles dizendo que logo me faria companhia, que não tinha motivos para me preocupar. Eu sinceramente não sei se esse jeito dele irônico me irrita, porque cada vez que ele é assim, mesmo que eu não queira, um sorriso se forma em meus lábios.

Meia hora depois a campainha tocou, era ele. Fui abrir a porta e percebi que ele tinha vindo de carro. Eu não tenho um carro, e não sabia que ele tinha um, mas na verdade, o que me surpreendia era o fato de ele morar há dois minutos da minha casa.

–Você mora há dois minutos daqui, que porra é essa? - Perguntei.

–Aimme! - Disse ele me dando um abraço, senti suas mãos passarem pela minha cintura. A pele de suas mãos encostou em um pedaço de pele das minhas costas que não estava coberto pela camiseta. - É tão bom te ver também.

–Você é…

–Não fala. Você pode mudar de ideia.

–Nós entramos e eu o convidei para sentar na sala de estar, para que pudéssemos conversar melhor.

–Então, - disse ele- o que você quer conversar.

–Olha, eu não conheço você direito, mas faz tanto tempo que eu não converso com ninguém, e também eu não conheço ninguém que eu possa falar sobre essa merda, mas eu preciso… eu preciso saber. Eu preciso saber se passa Miles, por favor.

Sua expressão brincalhona se desfez em um segundo.

–Eu sabia. Aimme, você tem um biquíni? - Perguntou ele.

–O que? - Perguntei desacreditada. - Eu estou falando sério nessa porra!

–Eu também estou. Você acha que eu vim de carro porque sou sedentário? Não, Aimme. Eu vim de carro porque eu sabia que era sobre isso que você queria conversar, e eu quero te levar a um lugar.

–Que lugar? Como assim?

–Aimme, tudo bem. Eu só quero fazer por você o que eu gostaria que tivessem feito por mim. - Disse ele, e eu vi verdade em seus olhos.

–Mas não está quente, Miles.

–Mas não está frio também. Confie em mim, Aimme!

–Por que você quer fazer isso por mim? - Perguntei.

–Eu sei que parece estranho para você, um garoto que acabou de conhecer querendo ajudar. Porém, temos muito mais em comum do que apenas o fato dos nossos pais estarem mortos. - Ele segurou minha mão. - Aimme, eu me vejo em você.

–Vou buscar, dois minutos.

Andamos uns quinze minutos de carro até um clube. Ele estava vazio, havia apenas alguns seguranças. Miles entrou como se já estivesse ali pela milésima vez. Ele me mostrou o vestiário feminino e pediu para que eu colocasse o biquíni por baixo da roupa enquanto ele se trocava, e me obrigou a prometer que eu não iria espiá-lo pelo buraco na maçaneta, como se isso fosse uma possibilidade.

Depois que nós já estavámos prontos, ele me levou até um lago que fazia parte do clube, pegou uma canoa e praticamente me enfiou lá dentro. Quando já estacamos bem longe da margem, ele parou a canoa e começou a falar.

–Aimme, mesmo que você diga que não me conhece, eu vou me abrir com você para responder sua pergunta. Sem brincadeiras sem piadinhas. - Disse ele, eu mal podia acreditar. - Mesmo que você não acredite em mim, eu gostei de você na primeira vez que te vi mesmo você tento esse senso de humor maravilhoso.

–Você disse sem piadinhas. - Interrompi, eu sabia que ele não ia aguentar.

–O.k. - Ele disse sorrindo, e então continuou - Eu quero que você confie em mim, e por isso eu vou te contar como tudo aconteceu. - Ele fez uma pausa para respirar. - Era dezembro, o natal estava quase chegando e nós estavámos ansiosos para a viagem que iríamos fazer para a França. Minha mãe estava maluca com os preparativos. Ela ia ao shopping da cidade onde morávamos todos os dias, porque ela sempre dizia que estava faltando alguma coisa, e que não podíamos deixar nada para trás.

“ Um dia, ela pediu para que eu fosse com ela, mas eu não quis ir, preferia ficar em casa. Ela fez uma compra muito grande, demorou horas para chegar. Ela chegou na mesma hora que o meu pai. Os dois desceram do carro antes de entrar em casa e se beijaram. Meu pai pegou as sacolas da mão dela para ajudá-la.”

“Quando eles entraram em casa, dois homens encapuzados entraram atrás deles. Eles me pegaram como refém. Minha mãe ficou desesperada, meu pai tentou negociar e manter as coisas sobre controle. Meu pai entregou todas as compras da minha mãe, os objetos de valor da casa, joias e todo o dinheiro que ele tinha.”

“Enquanto eles nos roubavam, a vizinhança percebeu e chamou a polícia. Quando a polícia chegou os ladrões ficaram apavorados, eles entraram em pânico e diziam que iam me matar. Mas a minha mãe… - A voz de Miles começou a fraquejar, e eu pude ver que lágrimas começavam a se formar nos seus lindos olhos. - Minha mãe, ela… Ela me puxou, e eles… Eles atiraram nela.”

“Meu pai se desesperou, e foi para cima deles e eles… Bem… Atiraram nele também, e eu consegui me salvar. A polícia entrou na minha casa, e começou um tiroteio. Pelo menos os ladrões morreram, eu sei que é ruim dizer isso, mas eu não ligo.”

“Desde então eu não durmo, - disse ele limpando uma lágrima que caiu sem ele querer- e eu me mudei pra cá, e moro com o meu tio alcoólatra que nunca está em casa. Eu geralmente o vejo uma vez ao mês. - Ele solta uma risada. - E o meu carro foi fruto de uma poupança que ele fizeram para mim, e também é dela que eu sobrevivo. Tem também uma mesada que uns amigos deles me dão, por caridade, mas nada demais.”

Mas uma vez ele me deixa paralisada, eu não sei o que falar ou pensar. Meus pais morreram, mas ele viu os pais dele morrerem, morrerem por ele. Eu tinha a Cami, ele não tinha nada, não tinha mninguém.

–Miles… - Eu tendo dizer. - Eu não…

–Ei,- ele me interrompeu- não diga nada sobre a minha história. Eu quero quero que você me conte como os seus pais morreram.

–Eles estavam indo trabalhar, eles sempre iam juntos. Mas um motorista bêbado estava na avenida onde eles estavam, e os três morreram. - Eu começo a chorar. - Sabe, eu queria poder contar mais, mas eu não consigo.

–Eu entendo. - Disse ele limpando as lágrimas do meu rosto. Seu toque foi como uma droga. Uma droga que relaxa o seu corpo e faz você se sentir leve. - Eu sei como é. E respondendo a sua pergunta, não passa. Aimme, nunca passa. A dor da perda é algo que nunca cicatriza, porque a ferida é na alma. Mas a gente se acostuma com essa merda.

Miles se levantou e tirou a blusa e a calça, ficando apenas com um shorts de piscina, apesar do vento gelado daquela tarde. Ele sorriu pra mim, e eu mesmo com a maior vergonha do mundo tirei a roupa e fiquei de biquini.

–Grita. - Pediu ele.

–O que? Mas as pessoas…

–Não tem ninguém aqui. - Ele me interrompeu. - Grita. Grita o que está no seu coração.

–Miles, eu não sei se consigo fazer isso. - Disse eu.

–Eu começo. - Ele se ajeito no barco e começou a gritar. - Vão se foder todos! Que todos os assassinos filhas da puta se fodam! Que todos vocês que acham que entendam se fodam!


Naquele momento eu me senti segura. Eu mal conhecia aquele garoto, mas quando ele pegou na minha mão depois de ter me contando sobre a morte dos seus pais, e depois de ter gritado os seus sentimentos na minha frente, eu senti como se não houvesse mais ninguém no mundo que eu pudesse me sentir mais segura se não ele.

–Mãe. - Comecei a chorar.- Pai. - Solucei.- Eu amo vocês, eu sinto a falta de vocês. Voltem, por favor. Voltem! Me tirem esse sofrimento, me tirem daqui! Me levem com vocês… - Miles apertou a minha mão. - Vai se foder seu filha da puta bêbado! Arda no inferno! Vão se foder vocês que acham que entendem. Vai se fuder, Kate! Vai se fuder, Deus! Se fo… - Não consegui mais continuar.

Miles pegou a minha mão e disse:

–Vamos Aimme, pule. Eu vou com você. Tira a primeira parte do peso do seu coração. Lave a sua alma, literalmente.

Eu pulei. Ele pulou. Nós pulamos. Eu gritei. Ele gritou. Nós gritamos. Eu entendo. Ele entende. Nós entendemos. Ele me abraçou, e naquele momento, eu senti que teria forças para lutar.

–Obrigada, Miles. - Eu disse.

Ele me olhou nos olhos, sorriu e deu um beijo na minha testa.

– A vida pode ser boa, Aimme.


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Notas finais do capítulo

Eu dedico esse capítulo à você C, mesmo que você não saiba da exitância dele. E eu te dedico, porque você me fez querer gritar.



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