Polly escrita por Tassi Turna


Capítulo 6
Dez anos


Notas iniciais do capítulo

Perdão pela demora! Muitas coisas andaram acontecendo ultimamente mas aí está o capítulo. Lembrando que este é o primeiro narrado pela Polly, que está bem diferente. Este capítulo é mais para contar brevemente algumas histórias desses dez anos, e o início dessa nova parte da história.

Espero que gostem, e por favor, não esqueçam de comentar! Boa leitura!



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Um trovão forte irrompeu o silêncio da noite tirando-me da tranquilidade do sono. Meu coração palpita forte assustado. Olho para os lados até meus olhos se acostumarem à escuridão, e meu coração perceber que não há ninguém para me atacar essa noite. Essa é a desvantagem de morar sozinha. É bom na maioria das vezes. Ter privacidade e ninguém para te incomodar, mas em momentos de medo ­– e eram muitos no meu caso– é ruim.

As cortinas brancas dançam com o vento frio que entra junto com a chuva. Fecho-as rapidamente e olho para o relógio. Ainda são cinco horas da manhã, mas sei que será impossível voltar a dormir.

Lembro que fui dormir com bastante raiva de tudo e de todos, e agora olhando para a tela fria do notebook entendo o porquê. Às vezes é impossível não levar uma pesquisa do trabalho para o lado pessoal. Como parte do meu trabalho de jornalista, devo me manter informada sobre assuntos atuais. E o que eu sempre busquei foi mudar a forma equivocada que algumas pessoas pensam. Mas vendo que a maioria acredita que o estupro é em parte por culpa da vítima sinto-me desanimada.

Há dez anos eu fui violentada pelo professor que eu mais confiava. Apesar do tempo os detalhes permanecem vivos em minha memória. E na maioria das vezes eu consigo afastar as lembranças. Porém, basta um comentário numa conversa, uma pesquisa grotesca como essa, ou até mesmo olhar a cicatriz de queimadura causada pela fuga daquele dia e elas vem à tona.

Eu tive medo, tive vergonha. Não contei a ninguém porque na certa me julgariam. “Mas o que era de se esperar? Uma garota sozinha na casa de um homem feito”. É o que diriam. E quando Nina descobriu nada melhorou. Ele continuou a me perseguir, cada vez mais. Eu pensei que ele iria me matar. Sei que ele está a quilômetros de distancia, e não pode me fazer nenhum mal. Nem sou a mesma pessoa vulnerável agora. Confiei uma vez na justiça e ela falhou comigo. Agora eu mesma faço minha própria justiça.

***

Um feixe de luz escapa da cortina branca revelando o avanço das horas. Sem coragem levanto-me antes de o despertador soar e corro para o banho. Deixo que o vapor da água quente leve minhas memórias para o mais longe possível. Visto uma roupa que me faça parecer o mais eficiente possível. Preciso demonstrar eficiência, pois o dom da bajulação nunca foi concebido a mim, e preciso me esforçar muito contra os inimigos que já conquistei em tão pouco tempo.

Não demoro muito ao me arrumar e corro (pois estou sempre correndo) para a cozinha. Desço rapidamente minha torrada e meu café, ao som das notícias, é claro. Mais um caso de estupro. Não vou conseguir fugir desse assunto hoje. Mas tenho que correr. Estou sempre correndo.

***

O prédio onde trabalho não é tão longe assim, mas sempre vou em minha moto. Uma das coisas que mais amo na vida. Dá uma estranha sensação de liberdade, que quase nunca sinto. Não é uma grande moto, assim como meu cargo num pequeno jornal. Mas descobri bem cedo que carreiras são escadas. Embora a subida seja mais fácil para alguns, pois degraus amam bajuladores.

Por enquanto a única escada que eu consigo subir nesse emprego é a do prédio, pois o funcionamento do elevador é tão confiável que apenas um suicida tem coragem de encará-lo. O porteiro, no entanto, diz não ter medo de nada, nem mesmo de me receber com um comentário obsceno e vergonhoso toda vez que eu chego. Não irei recitá-lo, caro leitor. Até mesmo o esgoto de uma metrópole é mais limpo que o vocabulário do porteiro.

Como eu queria que ele encarasse o elevador assassino.

Engulo o comentário obsceno mais uma vez, e subo a escada, de modo que quando chego ao topo estou sem fôlego.

O ambiente também não é muito agradável. Predomina um monocromático e taciturno tom cinza, que lembra um velório num dia nublado. Todos os jornalistas estão concentrados em seus respectivos cargos, e parecem não gostar de mim, pois reconheço seus rostos mas não os conheço.

Uma figura se aproxima de mim, e só pode ser uma pessoa. O máximo que eu posso chamar de amigo no meu ambiente de trabalho.

– Bom dia, Polly. – Saudou-me Pablo. O único que é um pouco gentil comigo.

–Bom dia Pablo. –Respondo com um sorriso suspeito. Não que Pablo seja um canalha. Apenas não consigo confiar nas pessoas.

Caminho em direção a minha mesa e ele insiste em me acompanhar.

– Como foi o fim de semana? – Antes mesmo dele perguntar eu já sabia suas palavras.

–Bom. Visitei a minha tia, como sempre.

– Legal. Bom... a gente se fala depois. – Ele sorri tímido e volta para sua mesa.

Ainda acho que ele irá me chamar para sair. Espero que, diferente de outros homens, ele entenda que quando dizemos não, é não mesmo.

Minha mesa está uma bagunça como sempre. O computador há muito tempo mudou de cor, e agora está marrom poeira. Há papeis desde que eu cheguei espalhados na mesa, e vários blocos amarelos, cada um com suas respectivas funções.

Mas a única bonita que encontro em minha pequena e apertada mesa são as fotos. Minha tia Helena ao fundo, em sua pose de psicóloga. Passei grande parte da minha vida com ela. Quando tudo parecia estar dando errado e minha cidade natal era apenas um palco para os meus traumas. Do lado meus dois anjos: Nina e Ian. Nina cruzando os braços, em sua pose sempre superior. Ian a abraçando, um sorriso que diz: se você tocar em minha irmã eu te mato. E o meu querido grupo que eu tenho que proteger.

Mal tenho tempo de sorrir ao acariciar as fotos, pois Karmen, minha chefe, me estapeia com uma pasta enorme. Seu rosto -ou o que se consegue ver escondido pelo ninho que ela chama de cabelo- está fechado como um dia de chuva. Porém o que ela tem a me dizer muito se contradiz com sua expressão.

– Boas notícias. Quero que a senhorita cubra uma matéria para mim.

Apesar de não estar me vendo neste momento, sinto meus olhos brilharem esperançosos. Que seja uma grande matéria! Não me canso de repetir em pensamento.

– Que ótimo! Sobre o que é dessa vez? – Espero que não seja alguma futilidade como vem sendo ultimamente.

– Pelo que parece temos um justiceiro atuando nas ruas da cidade. – Karmen diz enigmática.

– Como assim? –Pergunto como quem não sabe de nada. Minha chefe não parece contente com isso.

– Por Deus, Pollyana! Você não se informa! Faz seis meses que vários estupradores foram assassinados do mesmo modo. Saiu em vários jornais.

E o nosso foi o último a saber e transmitir, como sempre.

– A polícia acredita que seja um justiceiro com um único objetivo.

– Matar estupradores.

–Não... conquistar o mundo. – Ela diz zombeteira.

– O que a polícia sabe sobre ele?

– Isso é com você, minha cara. Tudo que sabem até agora é que ele usa uma faca, embora o primeiro tenha sido morto por um tiro. E todas eles têm a marca de uma queimadura no pulso esquerdo.

Não prestei atenção em todas as informações que Karmen me dava, pois eu já as conhecia, e conhecia muito mais. Pela primeira vez estava muitos passos a frente da polícia.

Mas como uma simples jovem jornalista sabia tanto sobre um justiceiro frio que marcava suas “vítimas”? Simplesmente porque o justiceiro era uma simples jovem jornalista que se chamava Pollyana, e agora iria investigar sobre ela mesma.

– Pollyana? Ouviu alguma coisa que eu disse? Ou estava perdida em seus devaneios como sempre?

– Estou ouvindo, dona Karmen.

– Isso é sério, garota. Estou te dando uma grande chance. Não me decepcione.

–Não irei, senhora. Pode ter certeza.

– Quero você na cola da polícia. Você lembra o que aconteceu da última vez. – Ela diz séria.

– Já passei super bonder. – Digo mostrando a cola.

Minha chefe se afasta mas ainda consigo capturar o vislumbre de um riso em sua face. Eu sou obrigada a rir zombando de mim mesma. Esquecendo que a polícia estava atrás de mim. Eu iria fazer uma matéria sobre mim mesma. Será que é assim que o homem-aranha se sentiu?

Não, eu não me considero uma heroína como devem estar pensando, ou como as garotas que eu protejo pensam. Eu mato pessoas. Sim, pessoas da pior espécie, pessoas das quais sinto nojo de olhar. Pessoas que me fazem sentir vergonha de pertencer a mesma espécie. No entanto, são pessoas. Humanos que têm uma história, e por incrível que pareça, pessoas que o amam. Surpreendo-me ao descobrir que os estupradores cujo sangue eu derramo são muitas vezes padres, pastores, pais de família, professores.

Nem todos são assim, no entanto. O que me faz perder toda e qualquer confiança no ser humano.

Minha falta de confiança foi o que deu início a minha fase de justiceira. Dez anos se passaram e eu mudei da água para o vinho. Minha doce tia Helena me fez decidir não ser mais uma vítima. Procurei por Ian e ele me ensinou todos os seus truques de luta e autodefesa. No entanto, não confio inteiramente em minha pouca força física. Optei por armas. Nunca saio sem uma. Em minha bolsa nesse momento há uma bem pequena, pronta para me defender.

Eu entendo os riscos que estou passando ao possuir uma arma. Mas há muito tempo atrás a polícia falhou comigo, e continua falhando não só comigo. Eu precisava me defender.

Eu sabia que haviam outras garotas iguais a mim, que precisavam de alguém que as protegesse. Porém, quando eu fiz minha primeira matéria para o jornal, eu entendi o quão grave era a situação.

Natasha era a vítima. Ela tinha a descrição do estuprador, o lugar, tudo para irem atrás do assassino. Lembro-me como se fosse ontem, mas não faz tanto tempo assim:

As lágrimas de Natasha eram suficientes para acabar com a seca do nordeste. Seu depoimento não foi aceito, pois há pouco tempo Natasha era uma prostituta. Eu olhei para ela e me vi no seu lugar. Era o meu sofrimento. Ambas queríamos vingança, então eu lhe ajudei. Fomos atrás do seu agressor. O plano era fazê-lo confessar, pois o desgraçado fizera mais vítimas.

Juntas, montamos uma armadilha num beco sem saída. Porém as coisas saíram do controle, e quando abri os olhos a bala da minha arma tinha o atingido em cheio. Natasha me olha assustada, mas eu não estou arrependida.

– Fuja Natasha. E não conte a ninguém o que você viu aqui. –Ordenei.

Com dificuldade Natasha se levantou da sarjeta. Sua maquiagem forte estava borrada e seu rosto parecia deformado, como a cara de um palhaço.

– Obrigada. – Ela disse entre um sorriso de desespero.

Naquela noite eu me livrei de todas as possíveis pistas que poderiam nos incriminar. Eu olhei para a cara pútrida dele. Jorge era o seu nome, mas para mim só existia um nome para todos eles: Markus. Peguei um isqueiro e desenhei a mesma marca de queimadura que eu tinha. Não sei ao certo por que fiz isso. Queria deixar a minha marca. É doentio pensar mas senti orgulho por ter feito aquilo. Retirei a bala e o pendurei para que o encontrassem. Mas antes deixei uma mensagem para a polícia em seu celular:

–não precisam me agradecer por fazer o seu trabalho. Sejam mais eficientes na próxima, ou terão outro cadáver. –

Mas havia outras além de Natasha. Élen, Louise, Rachel e Carina. Minhas cinco protegidas. Eu transformei o seu desejo de vingança no meu, e cacei-os, um por um, durante seis meses. Rachel era a única que ainda esperava sua vingança. Mas eu já estava trabalhando nisso.

***

Quando não resta mais nada a fazer no trabalho eu volto para casa. O céu estava naquele azul escuro que não se decide entre noite ou dia, mas não posso vê-lo se decidir, pois tenho uma moto para pilotar.

Chego a meu escuro e confortável-até-onde-posso-pagar apartamento, onde não há ninguém esperando por mim. Ninguém para me perguntar como foi o meu dia, ou me proteger. Em contraste a minha mesa de café me espera cheia de obrigações, contas em sua maioria. Ah.... A felicidade de morar sozinha!

Sinto uma coisa vibrar em meu bolso. Pego o meu celular e não fico surpresa ao ver quem é o remetente da mensagem.

Rachel: Alguma novidade sobre ele?

Não o sei o que responder tamanha é a vergonha. Tenho prometido respostas a Rachel faz um mês, e não tenho absolutamente nada. Apenas um beco sem saída. O caro leitor pode até pensar que não seja minha responsabilidade, mas está equivocado. Elas depositaram sua última confiança em mim, e diferente das pessoas eu procuro cumprir minhas promessas.

Do pesadelo de Rachel não era do meu conhecimento seu nome, nem sua aparência. Rachel, ou neste caso a cinderela, acordou num quarto frio de motel sem roupa e sem vestígio nenhum da noite passada em sua memória. Mas pelas marcas em seu corpo não restavam dúvidas do que ele tinha feito.

Rachel, assim como muitas de nós, cometeu os mesmos equívocos. Correu para o banheiro para se livrar dos vestígios de seu agressor, sem saber que estava se livrando de possíveis provas. Jogou seu vestido branco fora, eliminando mais uma prova, e permaneceu dias sem contar ou denunciar o estupro. Encontrou-me através de fontes, acreditando que eu fosse uma terapeuta. E de certa forma eu sou, pois a única maneira delas se sentirem livres é a certeza de que o seu agressor não estará perambulando as mesmas ruas que elas, só a espreita da próxima vítima.

Infelizmente esse tipo de liberdade está muito longe de mim. Às vezes vejo o rosto dele em estranhos nas ruas e quase entro em pânico. Mas deixo mais uma vez meus conflitos para atender os outros.

Polly: Estou trabalhando nisso.

É só o que consigo dizer a ela. Eu não desistirei até encontrá-lo.

Porém mesmo no meio de todas aquelas terríveis histórias e enormes responsabilidades, repousa em minha mesa de café um pedaço de felicidade alheia.

O jovem casal Ian e Maya lhes convida para a celebração de seu casamento.

É a primeira frase do convite de casamento do meu melhor amigo. Nunca me emocionei com casamentos, por serem em suma a mesma repetição. Porém dessa vez seria diferente. Eu devia muitas coisas a Ian, e compareceria a seu casamento com absoluta alegria, apesar da nossa história.

Uma pontada de romance é capaz de deixar qualquer um intrigado para saber mais, estou errada? Porém, gosto de pensar que minha história com Ian nada mais foi que uma amizade que tomou rumos diferentes num determinado momento e conseguiu sobreviver. Embora que para ele tenha sido bem mais que isso.

Eu era virgem antes daquela terrível tarde com Markus. Naquela época eu nem ao menos pensava em como seria esse momento, mas qualquer coisa teria sido melhor. Apesar disso, gosto de pensar que minha primeira vez foi com Ian, enquanto treinávamos alguns golpes de luta. Nunca consegui confiar em alguém daquele jeito, mas eu confiava inteiramente em Ian. É estranho pensar em dois amigos fazendo isso, mas naquele momento não foi nada desconfortável. Toda a vez que me perguntam como foi a minha primeira vez, eu arrepio ao lembrar da verdadeira. Mas é essa que eu conto. É essa que vale a pena lembrar.

Eu tinha razão quanto a Ian: ele nunca me machucaria. Quem fez isso fui eu. Não correspondi os seus sentimentos, mas ele foi capaz de entender. Ainda pago por isso, pois nunca amei ninguém como ele me amou. Sofri de muitos males, menos o mais bonito deles.

Conhecerei Maya daqui a pouco mais de um mês, e a única coisa que sei sobre ela é a sorte de ter alguém como Ian ao seu lado. Estava tão feliz pelos dois que quase me esqueci do terrível fato. Daqui a pouco mais de um mês eu estaria de volta a minha terra natal.

Claro, tenho que admitir que sentia saudades do frio do sul, de Nina e Ian, mas aquela cidade abrigava um passado que eu lutava para esquecer. E agora eu estaria de volta, e a única coisa que eu pensava é se ele estaria lá.

Imaginar encontrá-lo arrepiava-me como uma assombração. Reencontrar o rosto dos meus pesadelos. Eu poderia finalmente por em prática meus planos futuros. Mas o medo seria maior que o desejo de vingança?

***

Esqueço dos meus conflitos para dar lugar aos conflitos de Hamlet, tão louco quanto eu em embarcar no caminho da vingança. Todas as personagens que embarcam nesse mesmo caminho esquecem-se de si próprias. Nada importa mais do que ver o sofrimento daquele que um dia te fez sofrer. O vingador não é mocinho, herói e nem chega a ser vilão. Está no meio de todos estes. Não segue o caminho do bem nem do mau. Segue o caminho da vigança. Uma vítima que faz vítimas.

A esse caminho que cheguei, será que ainda lembro quem sou? Quem eu costumava ser?

Jornalista de dia, justiceira de noite. É assim que elas me definem. Soa como uma heroína, mas eu sei que não sou. Limpo as ruas do corpo desses miseráveis, mas toda noite vou dormir com o peso de suas mortes em minhas costas.

Dez anos se passaram e muita coisa mudou. Mas eu ainda não estava satisfeita.


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Notas finais do capítulo

Acho que todos já sabem o que Polly acredita que a satisfará. E vocês? Acreditam que vingança é algo satisfatório ou estão contra os planos de Polly? Comentem a sua opinião e se quiserem saber se ela vai ou não seguir esse vazio caminho da vingança, nos vemos nos próximos capítulos!



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