Legado de Semideuses! escrita por Lucas Lyu Santos


Capítulo 23
Os cinquenta anões do reino do oeste.




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Os espaços eram pequenos, e íamos espremidos. Algumas vezes uns cabelos loiros da Thay entravam na minha boca, e eu tinha que cuspi-los para jogá-los fora do meu sistema digestivo. Acho que o bom de ter cabelo ruim é que o vento bate e ele não bagunça tanto assim, pois em comparação com os outros meu cabelo não tinha nem saído do lugar.

A madeira retorcia um gemido estrépito cada vez que descíamos mais a diante das cavernas e poços sem fim. As rodinhas enferrujadas brilhavam com os trilhos duros a cada curva que este fazia. Faíscas amontoavam os negros e mal cheirosos lugares desconhecidos que passávamos em uma velocidade perigosa. Parecia que eu estava dentro dos filmes de Harry Potter e descia o Banco de Gringotts – ou uma montanha russa sem qualquer tipo de proteção. Os trilhos faziam ondas e depois caíam em uma longa e atenuada sequência de descidas, e logo após isso as curvas mais abertas nos mostravam um grande e perigoso precipício notavelmente cheio de coisas de ouro. Sim, milhares de objetos dourados jogados simplesmente no meio do nada. Chegava até parecer um rio brilhante feito totalmente de relíquias valiosas.

Novamente uma descida em linha reta fez com que o carrinho corresse mais rápido. E assim que entramos em outra caverna, longas e múltiplas rotatórias apareceram. Estas, porém, eram círculos que tinham como destino descer cada vez mais, e como não tínhamos freio algum – íamos com o vento de condutor. Um depois do outro passamos por essa redoma longínqua de redondos e torturadores trilhos que por pouco não nos arremessou á uma parede cheia de pedregulhos e enormes rochas pontudas. Houve um momento até que pensei que seria nosso fim, pois havia uma pedra no meio do caminho que foi suficiente para que a rodinha direita saltasse em meio ao ar – usamos nosso peso para deixa-lo novamente dentro dos trilhos e instável. Quase me borrei todo.

– Essa porcaria nunca acaba? – Eu disse. Um arrepio gelado suspeito pairou sobre minha barriga. Claro que eu estava visivelmente nervoso. Era difícil saber onde estávamos indo e como fazer um carrinho sem freio parar.

– Acho que nããooooooo.

A surpreendente descida, e o final das rotatórias, fez com que Lorenna fosse para trás tão abruptamente que nem conseguiu terminar o que ia falar. Ao invés disso, a garota conseguiu acertar o calcanhar logo tão intensamente na minha canela que me arrancou um abafado urro de dor. Martinato tentou sem sucesso se segurar, mas para minha notável sorte ele acabou dando um tapa sem querer no meu braço, meu machucado novamente voltou a me incomodar com uma dor chata. Quando eu achei que já tinha apanhado o suficiente, Thay conseguiu a proeza de meter o braço bem diretamente no meu rosto. Meus olhos se inflamaram com pequenas lágrimas.

– Oh chega, chega, chega... – Mais uma vez os trilhos ficaram retos. – Se vocês forem continuar me batendo eu pulo agora e poupo o trabalho de vocês.

– Ué, e nós temos culpa que os trilhos desceram do nada? – O conselheiro de Apolo bradou.

– Vou fingir que vocês nem curtiram isso.

– Ah, um pouco vai. – Lorenna sorriu.

O único lado bom naquela descida era que finalmente eu já conseguia ver um brilho de luz fraca provinda do fim do túnel – o que eu achei estranho já que estávamos a quilômetros abaixo da terra. Cada vez mais o vento assobiava e nos deixávamos refrescados, mas sua voracidade era tal; que o carrinho tentava reduzir sua alta velocidade. Ele tremia fortemente e dessa vez eu achei que as madeiras fossem se soltar e os parafusos voar. E eu tive razão. Só que junto aos parafusos, nós também viramos cosplay de pássaros.

A luz nos englobou e no segundo seguinte vislumbramos o final dos metais ferroviários. Entretanto, eles davam diretamente á um precipício, cujos trilhos não acompanhavam. A partir disso o carrinho bateu em duas pedras grandes que o frearam imediatamente – nós quatro fomos lançados para frente junto aos destroços de madeira do transporte velho. Não havia qualquer forma de nos equilibrarmos enquanto pairávamos centenas de metros do chão, e logo fomos voando feitos pombos desgovernados em meio ao ar de desespero. Esse mesmo ar que traguei com facilmente.

Claro que quebraríamos tudo se nos estatelássemos no chão; mas, depois que vislumbrei cipós pendurados em uma árvore no tamanho de um titã, esperanças surgiram na mesma frequência que o desespero tinha se instalado.

– Segurem-se! – Exclamei quando meus dedos deslizaram pela corda verde e rapidamente fechei os olhos com o calor da adrenalina pulsando em batidas escandalosas. Um longo e gélido arrepio fez meu coração quase pular do peito, mas ainda sim, fechei meus dedos no fio e torci para que ele não quebrasse sobre o meu peso.

Assim que abri os olhos os outros três estavam gritando feito desesperados. Todavia, estavam salvos nos cipós que faziam movimentos até o outro lado do penhasco de pedras. Quando consegui abrir os olhos, logo um choque atravessou meu corpo e vi que em meio ao penhasco e a caverna por onde terminamos com um salto ornamental, havia um longo e contínuo rio que percorria por toda a paisagem, ele separava os dois precipícios. Saltei acreditando que isso daria em uma fratura de nádegas, mas por sorte eu consegui cair de joelhos flexionados numa moita, por sorte ela amorteceu minha queda.

– ESTAMOS VIVOS! – Ouvi Martinato se esgoelar. – VIVOS!

Assim como ele as outras garotas também tinham pulado e agora estavam tentando respirar depois da dose altamente inesperada de adrenalina. Os cipós logo despencaram no minuto seguinte, suspirei aliviado.

Se tivéssemos demorado cerca de meio segundo teríamos despencado junto ás cordas. Mas isso não aconteceu, por sorte. Será que os deuses estariam em nosso favor? Como eu queria que sim, mas o meu único pensamento era que não. Quando todos conseguiram acalmar os ânimos e finalmente parar de agradecer por estarem vivos, notei que a entrada da grandiosa árvore era a entrada para um imenso e misterioso mundo. E prostrada nessa entrada, uma presença desconhecida nos encarava friamente com um olhar doce.

– Oh, por que uma bela donzela está perdida no meio do nada? – Martinato tomou a frente.

– ... – Ela o ignorou.

As tracejadas características da mulher eram tão finas como algodões. Suas pernas corriam pelos dois lados em um alto e curvado movimento de relevo para com o seu corpo, era tão magistral que chegava a me dar arrepios desde os dedos dos pés até o último fio de cabelo. Ela estava totalmente despida – acredito – pois havia nuvens tampando as partes intimas. Seus pés eram um pouquinho grande e tinham um formato meio masculino, mas isso não chegava a ser um problema. Os cabelos eram longos e meio acastanhados, delicados e tão bem cuidados como a sua face que era tão linda quanto o de uma deusa. Os lábios finos; rosados e frágeis não arriscavam nenhuma palavra. Fico imaginando como seria a voz daquela linda donzela.

– Você precisa de ajuda? – Acompanhei Martinato ombro á ombro. – Somos semideuses, podemos te tirar daqui. – “Eu posso te tirar daqui”, essas eram as verdadeiras palavras que minha cabeça desejava ter dito.

– Meu nome é Vinicius Martinato, á seu dispor. – Ele pegou a mão dela e se ajoelhou.

– Lyu, prazer. – Toquei na outra mão e percebi a tamanha maciez entre os dedos minúsculos massagearam os meus.

Vinicius e eu nos entreolhamos em silêncio e pelos lados trocamos faíscas pelos olhares ardentes que ambos transmitiam. Por que ele Martinato foi tão oferecido e não me deixou me apresentar primeiro? Se ele estava pensando que ficaria com toda a glória dessa jovem donzela para ele, acredito que esteja horrivelmente enganado. Se ao menos essa situação fosse igual ao meu bairro “eu vi primeiro”, e tudo ficaria bem mais fácil, mas... Semideuses não tinham essa ideia. Eles tratavam as diferenças com lâminas e mais lâminas, o que parecia ser na maioria das vezes, uma boa ideia.

– Meu nome? – Ela repetiu, lentamente. – Hermafrodita. Filho do deus mensageiro Hermes e da deusa do amor, Afrodite.

– Ah, Afrodite! Por isso tão bela! – O conselheiro puxou ainda mais o “saco” da donzela.

Mais uma vez eu o encarei profundamente, e ele retribuiu. Olhos semicerrados como se nós fossemos nos esfaquear até um sobreviver. E o vencedor, claro que teria a mão da jovem e adorada Hermafrodita. Contudo, enquanto nos encarávamos, risos irromperam nossa concentração. Lorenna e Thay estavam a gargalhar alto, e o motivo eu não entendia. Franzimos as sobrancelhas e de súbito as encaramos.

– O que o mico-leão dourado e a garota da sutileza de um de troll estão rindo? – Despejei, incomodado.

– Depois que eu jogo alguém do penhasco, não sabe por que. – Martinato completou.

Lorenna abafou seus risos e de seus olhos lágrimas desciam dos olhos negros. Orra, se isso era engraçado até o ponto de fazê-la chorar, eu queria saber qual o motivo daquela proeza. Tudo bem que homens brigando por uma única mulher era realmente “assistível”, mas mano, ela era linda e poderia estar com frio... Nada que um filho de Apolo para resolver esse sofrimento. Bem, entenderam né?

– Creio que eu sei por que estão rindo. – Hermafrodita disse tranquilamente sem alterar suas feições. Entretanto, a voz dela ficou um pouco grossa. – Meu nome significa a junção de dois sexos, feminino e masculino.

– Uma pepeka ou uma piroca, escolham meninos! – Thay bufou se segurando ainda mais pra não rir.

Eu acho que ao longo das nossas vidas erros acontecem. E quando a pessoa fica dias sem dormir, cansado, ferido e perdido, eles ganham números e chances significativas para que enganos aconteçam – claro que eu falo por mim, Martinato eu já não sei. Esse foi um desses enganos - um trote para os olhos que nunca mais vou cometer. É, espero que não. Mas olha, sinceramente? De tudo o que aconteceu eu só tive uma única certeza. A certeza de que Martinato poderia ficar com a linda Hermafrodita. Afastei-me meio que sem graça, as bochechas coradas e uma sensação meio ruim no estômago. Olhei para o conselheiro e ele estava com uma face um pouco paralisada. E não demorou muito para que ele recuasse e demonstrasse um sorriso estático.

– O que fazem nos reinos destinados á meu pai? – Ela nem ao menos se incomodou com a situação proporcionada.

– Viemos em busca da Hermix, senhor. – Lorenna me pareceu pensativa. – Ou senhora.

– Hm, a portarius? – Hermafrodita presigou seu tom fino ignorando certos resquícios de deboche sobre os seus sexos. – Não infligi os caminhos daqueles que passaram mais cedo, tampouco farei agora. Todavia, devo-lhes avisar que se almejarem a portarius; deverão se submeter a coisas que até mesmo semideuses poderosos não serão páreos. – A voz era tão doce quanto chocolate. – E, além disso, convencer ambas as rainhas para que as sandálias aladas enfim, possam estar finalmente unidas não vai ser tão simples quanto aparenta.

Rainhas? Outros já passaram por aqui?

– Sim. Isso é tudo que eu posso os informar. A passagem está livre. – Hermafrodita saiu da frente. – Só mais uma coisa, cuidado com os cem anões. – Mal sabíamos, na verdade que eles seriam a trupe mais problemática que poderíamos encontrar ao longo de toda a busca.

E assim começamos a explorar a enorme árvore. Havia vários buracos e ladeiras feitas de despojos dourados e um chão maciço com tecidos de cipós e plantas interligando desde o teto, até as lamurias e minúsculas plantas que se prendiam em nossos sapatos. Parecia que estávamos dentro de algum animal vivo, todavia, acredito que o termo correto seria um organismo com diversas plantas e cores que estava consciente de nossa presença. O tronco da madeira só era visível nas laterais da árvore de vez em quando, e sempre que botava meus olhos nela, eu percebia um sutil brilho lustrar a madeira com mais intensidade. Como se estivéssemos em um reino mágico, e às vezes mal me lembrava de que estava dentro de uma gigantesca árvore.

Ela parecia tão antiga que a idade da minha tataravó seria uma grande e bela piada perto de tal ser; mas ainda sim, me pareceu bem cuidada tanto do lado de dentro quanto do lado de fora. Assim que descemos uma ladeira cheia de pequenas flores de todos os tipos e tamanhos, uma gritaria sem fim riscou nossos ouvidos de truculentos xingamentos e armas com lâminas que ranhavam os ares.

– NÓS SOMOS OS MELHORES! LIRAKUS! – O grupo de anões da direita vociferava com machadinhos nas unhas escuras.

– CALEM ESSAS BOCAS IMUNDAS! – O grupo da esquerda interpôs aos berros. – LAUKOS SÃO SUPERIORES! LAUKOS!

– VOCÊS NÃO DISSERAM ISSO NA ÚLTIMA VEZ QUE CHUTAMOS VOCÊS! – Uma onde de risos percorreu e ecoou dentro da árvore.

– A GUERRA AINDA NÃO ACABOU. VAMOS CHUTAR SUAS BUNDAS DE BABUÍNOS DE BREVE! – E parece que o jogo havia virado drasticamente, os outros anões urraram em aprovação.

Eu realmente achei que nada me surpreenderia depois das coisas que já tive que presenciar na minha vida, mas isso já era demais. Eu não fazia ideia de qual era a diferença entre os dois grupos de anões que se debulhavam em vozes alarmantes e bocas carregadas de salivas que voavam de um lado para o outro. Mas soube que se não houvesse um vão enorme separando as duas entradas eles teriam se matado em questões de segundos. Os dois lados apresentavam uma espécie de corrimão que os impedia de se arremessarem precipício abaixo, e sobre eles, um anão cinzento com cabelos trançadas, barba negra, um nariz em forma de batata e um bigode do tamanho do palmo da minha mão estava com suas vestes do exército tremeluzindo com as borrifadas de cuspe que ele mesmo arremessava conforme gritava Lirakus.

Já do outro lado, na esquerda, um anão em tom de laranja-cenoura esgoelava-se e rebatia com veemência as ofensas do comandante cinza que brandia sua espada sem parar. Eles, por sua vez possuíam cabelos trançados, barbas negras, bigode do mesmo tamanho dos outros e um nariz em forma de um tubo. Embora eles fossem inimigos, ao que me convencerá com tamanha gritaria, todos eles para mim eram iguais; nanicos. Quando ambos os grupos de anões perceberam a presença de nós quatro parado na entrada daquele lugar que se dividia entre a direita e a esquerda – onde eles estavam – um mórbido silêncio caiu sobre o lugar. De repente choveu olhares apetitosos para nós, me senti até gostoso.

– Mais semideuses? – O laranjinha se empertigou quando se engasgou com a sua própria saliva.

– Óbvio que são! Eles são inteligentes, aposto que vão escolher entrar em Likarum, igual aos outros. – O acinzentado disse sem levantar qualquer preocupação.

– Claro que não! E quem disse que eles não escolheram Laurium? Temos a mesma quantidade em nosso reino quanto você!

– Cale a sua boca Aril!

– Venha me calar Arual, seu mini-projeto de anão!

– Farei você engolir suas palavras com a minha espada, sua ameba!

– Por que vocês dois simplesmente não calam a porcaria da boca? Heim? – Lorenna perdeu a paciência. – Obrigada.

Por um segundo eu olhei para Lorenna e esperei que inúmeras lanças caíssem por todo o corpo da garota ou talvez que os anões corressem até ela e esquartejassem por tal impetuosidade. Minha sobrancelha franziu quando ela suspirou alto, e eu olhei pra filha de Ares com a expressão de “tá querendo morrer sua anta?” Contudo, por incrível que pareça os anões ficaram tão quietos que uma súbita corrente de ar passou alegremente por todos eles. Apenas sua voz autoritária sublinhou o local e fez ecos estupendamente altos em toda a encosta do precipício abaixo. Acompanhei o eco de “obrigada” de Lorenna até que ele se extinguisse ao nada.

– Estamos a mais de quatro horas saindo de armadilhas macabras, matando monstros que aparecem até do cú do chão do tártaro e andando por cada buraco desse mundo que até Zeus duvidaria. – Ela retirou sua espada, o sangue fresco de outrora havia secado deixando um vermelho repicadamente decorativo no aço. – Se não pararem agora com essa briga idiota, a filha de Ares aqui vai mostrar como se faz uma treta de verdade. – Ela alternou os olhares furiosos para os dois comandantes que seguiam em pé nos corrimãos. Logo, os soldados igualmente nanicos que os seguravam os desceram até o chão. Eles estavam apreensivos.

– Nossa, nem nós somos tão histéricos. – Ouve-se o murmúrio de Arual. Não demorou muito para que seus capangas atrás caíssem em concordância com o seu líder.

– Ora seu... – Lorenna trincou os dentes e tentou se desvencilhar das mãos de Martinato que a segurava com afinco para que sua raiva não tomasse o controle.

– Hey, já chega né? – Eu os olhei com um quê de paciência ao fim, e ela realmente estava. Eu nem conhecia aqueles anões, mas, por favor, teríamos que ter uma solução até chegar a portariuns Hermix. Por isso brigar não resolveria nada. E a filha de Ares tinha que saber disso. – Não adianta olhar com essa cara de vou te matar por que não vai adianta coisa nenhuma Lorenna. Eu também sei fazer cara de mal quando quero. – Sutilmente dei três passos ao lado e dei as costas pra fingir que eu estava analisando a situação enquanto falava e não com medo. – Vocês disseram que mais semideuses passaram por aqui hoje? E por qual lado eles foram?

– A maioria veio pra Likarum! – Gritou Aril. Logo em seguida houve um grito de guerra coletivo de seus seguidores cinza.

– Só por cima do meu cadáver. – Berrou o açoitado nanico laranja. – Lauriam ganhou o mesmo número de semideuses hoje! Temos uma larga vantagem contra vocês, seus imundos!

As farpas começaram novamente a serem atacadas de um lado para o outro. Alguns machados caíram diretamente no precipício após algum dos soldados cinza tentarem acertar os laranjas com suas miras falhas. Eles arremessaram tão forte que a arma ricochetou a rocha e voltou. Logo elas se perderam em uma imensidão sem fim. Olhei-os com cara de desdém, logo em seguida apontei os olhos para Martinato que seguiu meu raciocínio. Aramamo-nos com nossos arcos, tão dourados que refletiu após a luz avistá-los. Peguei uma flecha normal, por mais que eu quisesse uma explosiva, resolvi ser um pouco mais diplomático. Ela, por sua vez, ajustou-se entre meus dedos e as linhas turvas e finas do instrumento, e não demorou para que ela se perdesse em meio ao ar em direção dos nanicos cinza.

Tamanha mira fora recompensada com os cabelos trançados de Aril grudado na parede. Ele espremeu um urro de “Arg”, e logo em seguida caiu com seu machado que fincou centímetros de sua cabeça. Que sorte a dele. Arual quase foi parar no meio do precipício com o susto da flecha de Martinato que também o prendeu na rocha, mas por sorte, a flecha acertou o pedaço de pano de sua veste.

– As mocinhas já pararam? – Martinato ficou ao meu lado.

– ... – Os soldados estavam tentando soltar seus mestres, e depois de caros segundos conseguiram.

– Ótimo, mas ainda não sabemos qual foi o lado que nossos amigos seguiram. – Indaguei. – Em qual caminho podemos seguir?

– Bem, não somos nós que decidimos. – Arual retornou com sua voz mansa. – Mas Lauriam é muito melhor, eu digo.

– Já chega, sem essa de briga de novo. – Martinato disse. – Se for pra escolher, já sabe quem tem o dom.

– É, Thay.

– Hm? AH, ok! – Ela indagou confusamente. – Que a sorte esteja em nosso favor. – E ela apontou para o caminho escolhido.

As estreitas passagens de Lirakum era estritamente feita sob medida dos anões que ultrapassavam cantarolando e pulando. Aril desembuchava palavras tão ridículas que me fez bater a cabeça umas três vezes quando eu me abaixava pra tentar passar nos buracos minúsculos. A cantoria que nada rimava não era todo o problema afinal. Embora fosse ridículo escutar.

“HOOO! OS CINQUENTA DO LESTE CHEIRAM IGUAL COCÔ!” E os soldados gritaram logo em seguida, eles apanham até do meu avô.

“E DEPOIS DE MATÁ-LOS VAMOS RESFOLEGAR Á CANTAR POR QUE CARTAS VAMOS ENTREGAR!” E o zapzum vai sugar!

E QUANDO O ZAPZUM SUGAR, VAMOS ROUBAR POR QUE SE NÃO A FILHA DE HERMES SUPREMA VAI NOS MATAR!” E nossa pele nanica vai virar comida de gambá.

”ENTÃO VAMOS GRITAR! LIRAKUM PRA SEMPRE E PRA SEMPRE LIRAKUM VAI NOS AMAR! ” Patifes Laurianos cuidado!

“POIS OS LIRANIANOS ESTÃO CHEGANDO PRA DESMONTAR SEUS ROSTOS FEDIDOS COM UM MURRO NO MEIO DO... LALARAIALALALA! ” Lalaraialalala!

Eu quis me matar...

Assim que cruzamos uma espécie de porta de madeira que batia em torno das minhas lombares, com a cantoria no auge das variadas besteiras e asneiras que se podia ouvir, uma brisa tênue invadiu meu rosto que ficou de queixo caído com a paisagem que me encheu os olhos de admiração. Uma vila inteiramente feita de gigantescas estruturas de tijolinhos constituía uma imensidão de cabanas em toda uma espécie de cratera. A vila, porém, era toda revestida e cercada aos lados com a madeira mágica da árvore que cintilava bem lá no fundo da paisagem. Embora eu não soubesse qual a verdadeira origem dela, eu pude perceber que ela era tão grande que caberia mais de cinco campos de futebol. Tanto que, parecia que eu estava em um reino á céu aberto. As casas eram revestidas de inúmeras plantas e um material um tanto quanto intrigante, parecia papel. Os telhados eram tão baixos que com um pulo eu poderia vasculhá-lo todo, e também havia hordas de plantas circundando o local. As portas, embora fossem claramente feitas de papel cartão, elas eram resistente. E como um cartão de visita, bem na porta havia um selo escrito “Anões do oeste”.

Ao longe eu observei uma corrente de ar que se transformou em uma cortina poderosa de fumaça que de uma hora pra outra caiu em estado líquido, respingos de água negra caíram no gramado por trás das casas. Aquilo não poderia ser algo humanamente normal, nem um animal conhecido. Quando este elemento sumiu, um rugido maléfico ecoou por todas as colinas feitas de grama e flores pequenas. Era realmente uma pena haver muitas casas atrapalhando a minha visão á frente. Embora minha imaginação percorresse todas as possibilidades de criaturas existentes e não existentes do mundo mitológico. Ao menos, eu não fui o único que se empolgou com tamanha demonstração de monstruosidade, pois Lorenna falou tão alegre no meu ouvido; “Santo Ares de armadura flamejante, eu não sei o que são, mas eu quero uns trinta desses!” que eu gargalhei.

Era possível notar o porquê de aquele lugar ser chamado “cinquenta anões do oeste”, pois eles estavam no extremo oeste e pela minha contagem estranha havia dado cinquenta casas. Fico pensando se havia mais vilas dessas nos outros locais, e como seria a vila de Lauriam.

O que me impressionou era a capacidade de uma simples árvore, que de fora me pareceu ser tão pequena, se transformar em uma estupenda entrada para um mundo enorme.

Assim que contornamos uma esquina, damos as costas ao misterioso barulho das feras que tinham feito aquele pequeno show de fumaça aos céus, o que foi uma pena para mim e Lorenna que ansiavam em querer saber o que poderia ser. Mas, ao olharmos para frente nos deparamos com mais uma entrada esculpida como se fosse uma argola.

– Estão embasbacados! – Aril grunhiu sorridente. – Não é de se admirar, aqui em nossa vila tem tudo de belo para poder se viver mais de quatro mil anos!

– Quer dizer que vocês nanicos desse jeito têm mais de cinquenta anos? – Martinato argumentou com seu tom zombeteiro.

– Mas é claro! – Ele gesticulou excitado com sua caminhada. – Orgen, Ogal, abram as portas! – Aril bradou para dois anões que se vestiam como soldados ingleses com seus pomposos e altos chapéus peludos. Os machados em seus ombros brilhavam, e com as mãos sobrando ele abriu mais um portão. – Se estão perplexos só com isso, vejam só! – O grupo de anões acinzentados se volumou sobre o portão, ansiosos.

Quando as portas se abriram uma vasta propriedade apareceu no fundo da paisagem. Esta, que lhe dava caminho para um imenso castelo feito de algum tipo de papel resistente que sublinhava sua enorme desenvoltura magnifica e estupenda. Mas, o que me deixou ligeiramente perplexo foi que no céu havia milhares de aviõezinhos de papel circulando por todos os locais possíveis. Um deles desviou sua rota e veio voando diretamente na cabeça de Thay. Ela quase pulou de susto, mas quando ela tomou o aviãozinho em sua mão à reação foi muito mais assustadora.

– Não acredito... – Ela estava boquiaberta. – Não... Mas... Eu a enviei, cerca de... Muito tempo para ele.

– Hãm? – Aril a encarou. – Ah, isso não é um bom sinal...

– Por que não? – Questionei. – O que é isso Thay?

– Uma carta. A carta que eu a escrevi ano passado para um... Bem, ele era um filho de Éolo que tinha partido do acampamento para os reinos do seu pai. – Ela corou. – Eu... Só queria saber se ele tinha chegado bem, mas nunca houve uma resposta... Rasquel nega falar sobre ele até hoje quando eu pergunto. Nem mesmo outros meios como o íris.com conseguiu-o achar. – Ela abaixou os olhos quando todos os presentes olharam para ela. Inclusive os anões que ansiavam por alguma resposta e aproveitaram dessa oportunidade para deixarem-na no centro da roda. – Saudades, só isso...

– Aham, saudades né Thay. – Martinato sorriu. – Isso pra mim tem outro nome. – Ele pegou a carta da mão dela e começou a ler em voz alta e longe das mãos da garota que tentava avançar sobre ele.

“Querido”...

Queria saber se você realmente gostou do meu presente ontem á noite... Ér... Desculpe-me pela minha timidez, eu realmente não queria fazer aquilo tão, de repente. Mas... Eu acho que gosto de você.

Enfim, me desculpe por tantas palavras borradas e o papel um pouco desgastado... Eu tive que apagar algumas vezes enquanto pensava no que escrever.

Espero que tenha gostado da viagem, e que tenha chegado em segurança aos reinos do seu pai. Quando receber esta carta, me envie uma resposta via-hermesexpress me contando como foi, estou ansiosa para saber.

E, pense naquela proposta...

Assinado, Thay

O silêncio fez-se necessário quando Martinato terminou a última palavra. Depois, um sutil barulho fora ouvido quando o murro de Thay foi até os lábios do garoto que tentou desviar. Mas como eu disse, tentou. Os anões excitados começaram a gritar coisas aleatórias e exibir os machados pra cima com tamanha alegria nos olhos. O conselheiro se levantou segundos após, cambaleante.

– Não que eu goste de uma treta né, mas... – Lorenna esbravejou com as mãos cruzadas. – Eu acho que um murro foi pouco.

– ISSO FOI EXCELENTE! – Aril esbanjou um sorriso enorme. Seus olhos escuros chegavam a brilhar.

– Obrigada, mas o que isso está fazendo aqui?

– Uol... – O coro de vozes de anões deu-se repentinamente um momento tenso. Aril tomou a frente, mas dessa vez não estava tão cintilante como antes. – Como acham que Hermes consegue entregar tantas cartas e em todos os lugares do mundo? – Questionou á ela, mas tampouco esperou uma resposta se formar nos lábios da garota. – Nós somos os responsáveis em mandar todas as cartas do mundo! Bem, nós e aqueles patifes do reino de Lauriam. Somos dois reinos que trabalham juntos, mas nenhum dos dois gosta ou aprova o modo de trabalho um do outro. – Ele cuspiu numa pétala que acabara de desabrochar. – Isso tudo por que as duas rainhas concordaram em dividir os trabalhos em meio-á-meio. Ou seja, além de lucrarmos pouco, temos que dividir!

– Tá, mas e a carta? – Thay estava impaciente.

– Deixe-me terminar garota apressada! Enquanto os outros do leste recebem e a preparam as cartas, nós a enviamos. – Ele resfolegou com orgulho. – Essa é a nossa função. – Houve se um grito de aprovação. – É, mas nem sempre conseguimos entregar algumas cartas... Quando a pessoa não á recebe, ela fica por aqui vagando por cerca de cinco anos esperando que a limpa dos não recebidos seja a sua libertadora. E a carta deixa de existir.

– Mas por que diabos ele não recebeu, vocês não conseguiram enviar?

– Menina tola! – Aril gritou. – Só tem um meio rápido e prático de enviar uma carta magicamente, e é o Zapzum. – Os anões repetiram a palavra com entusiasmo. – É um tubo que temos que suga a carta e leva-a para a terra para o dono em segundos. Mas quando ela não consegue executar seu serviço, a carta retorna depois de vinte segundos e fica a mercê dos cinco anos. – Ele aliviou toda sua expressão de excitação. – O motivo do erro de envio é bem simples... – Ele deu de ombros. – Mortos não recebem cartas, hehe! Agora calem a porcaria da boca e me sigam!

Lorenna fez o possível pra Thay desviar os pensamentos ruins que caíram sobre ela com aquela notícia tão despreocupadamente dita por Aril. Até mesmo eu que não tinha nada haver senti que o clima havia sido carregado por uma onda de tristeza. Isso por que quando fomos rumo ao castelo de papel, uma carta esparramou-se diretamente na testa de Martinato. Ele, assim como muitos meio-sangue tinham vontade de saber quem era o seu pai e onde ele vivia. Por isso, com seis anos Vinicius escreveu uma carta pedindo um presente de natal para o seu pai, que obviamente, não chegou recebeu.

– Não sejam idiotas feitos amebas! Se os deuses fossem receber todas as cartas endereçadas á eles, seria muito fácil ter suas preces atendidas, não havia necessidade de sacrifícios, não acham? – O anão franziu a testa e parou abruptamente na frente de Martinato. – Quem decide o nível de importância das cartas é o próprio Hermes. Ele mesmo coleta as cartas mais importantes e as leva para o Olimpo.

As manobras da porta deslizaram com guinchados de papel amaçado. Contudo, ela retornou a sua posição normalmente após passarmos e entrarmos no grande saguão de entrada. Parecia que o papel branco nem tinha aberto, pois estava novamente perfeito e sem qualquer amaço.

O tapete branco conduzia á uma enorme fileira de escadarias retas que levavam diretamente á um trono de fronte a um grande espelho que deixava a claridade do dia entrar. Acinzentado e totalmente coberto por objetos brilhantes, e no centro, bem no meio daquele lugar havia uma garota totalmente ereta sobre ele.

– Á rainha, curvem-se. – Aril cuspiu as palavras ao lado da boca o mais silencioso possível.

Lorenna foi relutante, mas no fim se curvou como os outros. A rainha trajava uma capa enormemente forrada com um pano fino e repleto de detalhes brilhantes que reluziam e cintilava enquanto ela se levantava. O vestido que era fortemente estampado com as cores verde e cinza iam até um pouco abaixo das coxas da pele branca da garota. Era como se ela fosse uma militar do exército com um quê de travessa no rosto, entrementes, ela também era uma filha de Hermes. Havia uma espécie de fibra de prata que ia desde as orelhas pontudas, repletas de brincos diamantísticos, até a testa que trazia consigo uma pedra cinzenta – deduzi que aquilo era uma coroa. Conforme ela descia, notei que os tornozelos eram delicadamente despojados com algumas coroas de flores rosa, estas que davam um longo e apreciado destaque aos pés nus da mesma.

– Quem ousa atrapalhar o meu descanso? – A voz ia se aproximando. – Aril, que droga! Mais semideuses? – Ela me pareceu um pouco zangada. Uma reação contraria dos anões quando nos viram.

– Minha senhora, Lira... Quero dizer, Rainha Lira... – O anão quase caiu diante dos pés dela. – Sim, eles são semideuses...

– Mais semideuses? As masmorras não são tão grandes assim, você se lembra disso? – Lira era cerca de cinco dedos maior que o anão em quesito de altura.

– Me perdoe... Essas amebas, elas...

– Nós temos nomes!

– Cale a boca em presença da rainha! – Gritou Aril para a filha de Ares. – Eles podem nos ajudar...

– Ajudar? – Ela pensou. – Só se for pra ajudar á chutar sua bunda né, escravo.

– Pense bem minha rainha, o seu pai não ligaria se apenas uma vila executasse todo o serviço de entrega, ganharíamos os lucros daqueles... Daqueles...

– A resposta é não, ainda não. – Os olhos da Rainha ficaram totalmente negros sem qualquer resquício de luz. – Levem os para as masmorras. E me traga algo doce, agora.

– Quem vai nos obrigar á ir pras masmorras? – Martinato fuzilou-a.

– Quem? – Lira pareceu pensativa. – Cinquenta anões totalmente armados. – Ela deu de ombros, logo subindo até o seu trono.

Subiram armas em nossa direção antes que pudéssemos retirar uma única lâmina em nossa defesa. Eles nos desarmaram tão rapidamente que eu nem vi quando minha aljava caiu nas mãos de um ser nanico cinza escuro. Em seguida, eles nos fizeram marchar totalmente cercados pelas portas que novamente soltaram os esganiçados ruídos. Percebi que as feições de Aril não era uma das melhores, mas mesmo assim ele cuspia ordens para Ogal e Orgen que abriram as portas imediatamente. Martinato passou, Thay acompanhou-o e depois a indignada e relutante Lorenna deixou o teto do castelo. Quando chegou a minha vez, notei com o canto dos olhos uma sombra de par de asas circulando pelas cortinas brancas ao lado direito. Hãm? Subitamente virei o rosto e notei uma fina camada de dourado e um vulto vermelho onde havia o tal objeto – ou pelo menos onde eu achei que o tinha visto. Quando tentei observar mais, dominado pela curiosidade de ter encontrado a primeira parte da portarius, meus pés deslizaram um pouco ao lado. Quando notei uma sombra atrás de mim, o cabo de um machado me acertou com tanta força que tudo escureceu no mesmo momento.


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