Anjo da Cara Suja escrita por Celso Innocente


Capítulo 5
Almoço de domingo


Notas iniciais do capítulo

Aproveitando uma amostra de meu audiolivro, neste capítulo você poderá ouvi-lo enquanto lê. É só clicar no link anexo no início do capítulo.



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Ouça o capítulo junto com a leitura.

Nove horas da manhã, bateu palmas no portão da casa do casal Cavalari, que ainda estava trancado. Mesmo que pelo som, não conhecesse as modestas palmas de uma criança, Luciano já teria certeza absoluta, de que se tratava de seu jovem amigo.

Seguiu até o portão, destrancando-o.

— Cheguei muito cedo? — Se preocupou.

— Qualquer hora é hora! — Brincou o homem, colocando as mãos sobre seu ombro direito e o arrastando para dentro. — Sara já está acordando.

— Ela ainda está dormindo? O senhor também estava dormindo?

— Não se preocupe. Era mesmo hora da gente se levantar. Ninguém mandou dormirmos tarde.

— Desculpe. — Se entristeceu. — Eu não sabia.

— Não precisa se desculpar. Passou da hora de levantarmos.

Seguiram juntos para a cozinha, onde Luciano colocou uma leiteira com água no fogo e passou a preparar um café, enquanto o menino sentou-se ao lado da mesa.

Quinze minutos depois, o café estava pronto e a mesa preparada, para esta primeira refeição do dia.

Sara chegou, cumprimentando:

— Oi menininho madrugador.

— Não é madrugada! — Negou ele. — Me levanto às cinco e meia, todos os dias!

— Por que tão cedo? — Questionou o homem, sentando-se junto a ele e Sara.

— Entro na escola às sete horas! É longe e vou a pé.

— Hoje não tem aulas! — Retrucou o homem.

— Levantei às seis horas, hoje.

— Muito bem! — Concordou Sara, arrastando-lhe uma xícara. — Tome café conosco.

— Obrigado! Já tomei café!

— Tome de novo! — Insistiu Sara.

No início, meio tímido, depois, acabou saboreando uma xícara de café com leite, algumas bolachas de coco e um pedaço de queijo.

Assim que se levantaram da mesa do café, Regis ajudou Sara a recolher a louça suja, colocando sobre a pia, juntamente com a do jantar anterior, que ainda não teria sido lavada e começou a lavá-las; porem, foi interrompido por ela, que recusou:

— Nada disso! Criança não trabalha. Você é meu convidado pro almoço, não pra lavar louças.

— Só vou ajudar!

— Vá brincar que é o mais correto. Você tá de roupinha nova. Não vai querer se sujar com sabão. Vai?

Durante há meia hora em que Sara demorou para lavar toda a louça, ele permaneceu na sala, assistindo a um programa de violeiros, na tevê Record, canal sete. Depois, assim que ela apanhou todos os ingredientes, para dar início ao almoço, ele correu ao lado dela na copa e vendo como seria montada a tal da lasanha, pediu:

— Posso ajudar?

— Não!... Pode brincar.

— Posso ficar olhando?

— Você é quem sabe! — Riu ela. — Se você achar que é mais divertido do que brincar!

— Quero aprender a fazer lasanha! — Justificou ele sério.

— Verdade!? — Riu ela. — Por quê?

— Quero fazer uma em minha casa.

Sara sentiu lágrimas, mas ela sabia que ele não era tão necessitado: era apenas um menino pobre.

— Criança não mexe com comida! — Protestou ela.

— Por que não?

— O fogão é perigoso. Pode se queimar.

— Como o fogão não queima os adultos?

Sara riu e enquanto iniciava o preparo dos ingre-dientes sobre uma forma grande de alumínio, tentou explicar:

— Os adultos prestam atenção naquilo que está fazendo.

— A criança também presta atenção! — Retrucou ele, sério.

— A criança vive em um mundo de imaginação e se distrai com qualquer coisa. Pode se queimar.

— Às vezes eu faço almoço pra minha mãe.

— Regis! — Chamou-lhe a atenção, Sara.

Ele se assustou, perguntando:

— O que eu fiz?

— Criança também mente! Só que não precisa tanto. Não é?

— Quem mentiu? — Não entendeu ele.

— O que foi que você disse?

— Não me lembro.

— Às vezes faz o almoço pra mamãe.

— É! — O confirmou.

— Criança não mexe com fogão, Regis. É perigoso.

— Minha mãe tem muito trabalho, então quando não vou à escola, eu faço o almoço pra ela.

— Regis! — Tornou a duvidar Sara. — Você tem apenas nove anos.

— Ainda não fiz nove!

— Com menos de nove anos, não se mexe no fogão. Nem com nove!

— Tá bom! Não vou mexer no fogão.

— Nem na sua casa!

— Posso aprender a fazer lasanha? Peço pra minha mãe por no fogo.

— Então lave bem as mãos e venha cá.

Ele correu ao banheiro e fazendo uso de sabonete, lavou muito bem as mãos, enxugou-as e retornou à copa. Como Sara já tinha colocado uma camada de massa de lasanha, uma camada de queijo mussarela, uma camada de presunto e uma camada de molho com carne moída, ela lhe pediu:

— Enquanto limpo o forno, você coloca uma camada de massa, igual fiz no começo. Você viu como foi?

Com certo sorriso, disse sim com a cabeça; Sara se afastou, seguindo a outros afazeres. Luciano permaneceu parado na porta, em silêncio, observando o que ele iria aprontar com a tal refeição.

Parecia que o danadinho tinha realmente prestado muita atenção no que Sara fazia, pois com destreza e muita perfeição, colocou uma camada da massa pré cozida e apesar de que, era para fazer apenas isto, deu uma olhadinha de rabo de olho e como ela não voltava, então, com muito cuidado, adicionou uma a uma, as fatias da mussarela, depois, tornando a olhar, adicionou o presunto e quase foi interrompido por Luciano, quando se atreveu a adicionar a camada de molho. Acreditando que estava tudo bem (e estava), repetiu toda a façanha, com muito cuidado e certo sorriso no canto da boca. Provavelmente Sara, que havia saído para o quintal, se esquecera de voltar e o menino, com certa habilidade, abusou de seu aprendizado prematuro.

Foi só então que ele percebeu que estava sendo observado pelo homem. Fez certa careta, rangendo os dentes, dizendo:

— Vixi!

— Vixi mesmo! — Repetiu Luciano, fingindo estar muito sério.

Sara acabava de chegar à copa e vendo a forma cheia, insinuou:

— O que vocês aprontaram?

— Nem olhe pra mim! — Insinuou o marido, rindo. — Olha o dono da arte aí do lado!

— Foi você Regis? — Perguntou ela séria.

Assustado, ele acenou que sim:

— Sozinho?

Ele se virou para Luciano, com jeito de quem pede socorro. Este porem, insinuou sério.

— Nem olhe pra mim!

O menino sentiu um amargo na garganta, se entristecendo. Sara percebendo que estava torturando-o, parou com a brincadeira e disse a verdade:

— Está linda!

Ele não acreditou.

— Você é um gênio! Parece um mestre cuca!

Apanhou uma jarra de leite e adicionando um pouco sobre a lasanha, insinuou:

— Agora a gente coloca o leite pra ficar macia. O ideal era termos preparado esta forma ontem à tarde, para que o leite amaciasse, mas como a massa é pré-cozida, ficará bom, assim mesmo.

— A senhora não está mais brava?

— Com você? Imagina! Você será um chef!

— O que é isso?

— Um mestre da cozinha francesa.

— Por que acha que sou Francês?

— Seu jeitinho de vestir... Sua fisionomia...

— Veja! — Fez questão em que notassem sua calça tipo bermuda, chegando aos joelhos. — Não estou usando calça de francês!

— Verdade! — Concordou Luciano. — Essa é bem brasileira![1]

Sara cobriu a forma, com um pano de prato limpo e disse:

— Deixaremos descansar por trinta minutos. Daqui vinte minutos, ascendo o fogo, depois colocaremos para cozinhar em fogo brando. Ficará divina.

— Não gosto de ser Francês! — Protestou o menino, triste.

— Por que não? — Perguntou Luciano. — São simpáticos!

— As pessoas falam que eles não tomam banho e que tem jeito de viado.

— Realmente eles tomam pouco banho. — Concor-dou Luciano, rindo. — Uma ou duas vezes por semana. Acho que se lambuzam com perfumes caros, pra esconder o mau cheiro.

— Não é nada disso, bem! — Negou Sara. — Eles tomam pouco banho, porque a França é um país frio.

— Eu não sou francês! — Negou novamente o menino. — Tomo banho todos os dias! Mesmo que esteja frio... E também não sou viado!

— Eles não são veados! — Negou Sara. — Nem gays! É o jeitinho d’eles serem simpáticos.

Pouco tempo depois, enquanto a lasanha cozinhava no forno a gás e Sara preparava uma panela de arroz, recheada de legumes, tais como cenoura, milho cozido, azeitona picada e ervilhas, Luciano convidou Regis e com ele na garupa de sua bicicleta, foram até a um restaurante, tipo rotisseria, próximo à estação rodoviária, no centro da cidade, a aproximadamente dois quilômetros de suas casas e enquanto o menino o aguardava, segurando a bicicleta na rua, o homem adentrou àquela casa de refeição, comprando um grande frango assado, para servir de acompanhamento, à suas provável, deliciosa refeição domingueira.

Ao meio dia, o farto almoço estava preparado sobre a mesa da copa. Enquanto os três se ajeitavam ao redor da mesa, Luciano comentou com largo sorriso:

— Graças a Deus, nossa refeição está servida: alimentos com abundância... Uma visita bonita...

— Ei sô Luciano! — Resmungou o menino. — Respeita sua mulher.

— Por quê? O que fiz de errado?

— Falando besteira! — Insinuou Regis em tom baixo.

— O que eu falei de errado? — Perguntou-lhe o homem, também em tom baixo.

Cobriu o lado direito da boca com a mão direita e disse:

— Abunda...

— Abundância? — Riu o homem. — Não é besteira! Significa que nossa mesa é farta e esta repleta de alimentos.

Sara conteve o riso, devido inocência do pequeno convidado e passou a ministrar rápida oração de agradeci-mento, enquanto o marido, que se sentia péssimo neste assunto de falar com Deus, prestava muita atenção e Regis, que era ainda muito criança, para tal responsabilidade, permanecia de mãos postas e olhos fechados. Findando a oração com um “amém” por todos, passaram então a devorar àquelas guloseimas.

O homem se serviu primeiro, apanhando um grande pedaço de lasanha, rodeado por grande porção de arroz, colorido pelos legumes e uma gigante coxa do frango assado. Sara, serviu Regis com um grande pedaço de lasanha e...

— Só quero lasanha! — O alegou convicto.

— Nadinha de arroz? — Insistiu Sara.

— Nem frango! — Concluiu ele.

— Coca cola? — A ofereceu, apanhando a garrafa aberta sobre a mesa.

— Quero! — Aceitou prontamente.

Qual criança recusaria? Só se fosse anormal. Ou não fosse criança. Nem adulto recusaria tal. Em sua casa, essas guloseimas líquidas, só apareciam no natal e ano novo.

Enquanto ela se servia de lasanha, arroz e a outra coxa do frango, os dois homens, já se deliciavam com aquela farta refeição.

— Está boa pessoal? — Questionou Sara.

— Não! — Negou o marido.

— Está deliciosa! — Afirmou Regis, com sinceridade,

— Está é divina! — Concluiu o marido.

— Graças ao mestre cuca! — Completou Sara, em elogio ao menino.

Ele sorriu convencido, apresentando o canto da boca lambuzada de molho alaranjado, enquanto devorava tudo, sendo o primeiro a limpar o prato e depois o copo.

— O que deu em você, tão criança, gostar de Vitória Bonelli? — Questionou Sara, ao menino.

— No fundo de minha casa, mora minha tia Amélia, ela é tão sofrida como Vitória Bonelli; a diferença é que ela nunca foi rica e ficou sem marido com seis filhos ainda pequenos. Sei o quanto ela já sofreu e ainda vai sofrer nessa vida...

— É! Meu amiguinho! — Se emocionou Luciano. — Às vezes a vida nos prega cada surpresa!

— Quando eu crescer quero ser escritor! Meu primeiro livro vai contar a história dela.

— Pelo jeito você gosta muito dela. — Insinuou Sara.

— Se eu pudesse, queria ajudar ela. Sabia que apesar da dureza na vida, ela é uma mulher feliz?

— Por que você acha isso? — Insistiu Sara.

— Eu vejo ela sempre conversando alegre. Mas tem vezes que ela fala às coisas que me dá vontade chorar.

— Por quê?

— Ela fala de um jeito tão... — Não lembrava a palavra.

— Comovente? — Ajudou-o Luciano.

— É! Ela fala de um jeito que me faz o coração bater forte e as lágrimas chegarem até o canto dos olhos.

— E como vai se chamar seu livro? — Insistiu Luciano.

— Deixe-me ver... — Pensou um tempinho e emendou. — Amélia, a mulher de verdade!.

— Esse nome não pode. — Negou o homem. — Você seria processado por plágio.

— Por quê? O que é plágio?

— Esse nome pertence ao Mario Lago. Ele escreveu uma música assim.[2] Plágio é a gente escrever ou fazer alguma coisa que seja cópia de outros.

— Tá bom então! Eu mudo o nome.

Sara e o marido se calaram, enquanto o menino ajeitava os talheres sobre o prato vazio. O casal aguardava para ver sua reação, já que tinham certeza de que ele ainda não estava satisfeito.

Luciano também limpou o prato e tornou a se servir, repetindo as mesmas guloseimas.

Sara limpou o prato e se considerou alimentada. Pediu licença e se levantou, levando apenas seu prato até a pia da cozinha, depois voltou e percebendo que o menino não pediria mesmo, insinuou:

— Tadinho Luciano! Sirva mais a Regis!

O homem apanhou o prato dele, colocando um pedaço grande da lasanha, perguntando-lhe:

— Algo mais?

— Só lasanha! — O confirmou.

— E coca cola! — Completou o homem, enchendo-lhe o copo.

O casal havia ignorado o prato vazio do menino, para ver se ele se serviria ou pediria para ser servido; porém, o danadinho, ainda estava tímido o bastante, para se manifestar.

— Depois vocês só coloquem os pratos sobre a pia e guardem o que sobrar sobre o fogão. Eu vou descansar um pouco, que as minhas pernas estão me matando.

Ela se retirou, Luciano piscou para Regis, que sorriu.

Em poucos minutos, limparam os pratos e sem delonga, Luciano ofereceu:

— Outro pedação?

— Chega! — Riu ele se levantando e passando as mãos sobre a barriga. — Comi igual um leão! Minha barriga vai estourar!

Luciano apanhou o que sobrou daquela refeição e como Sara pediu, colocou tudo sobre o fogão, cobrindo com um pano branco. Regis apanhou os pratos, copos e talheres e enquanto levava para a pia na cozinha, não percebeu, tropeçando-se nas pernas da cadeira, a qual Sara deixara mal encostada sobre a mesa, se desequilibrando e caindo esborrachado no chão da copa, quebrando todos os pratos de louça e copos de vidro. Luciano se espantou com aquele tombo, correndo a seu socorro, enquanto Sara, lá do quarto, gritou:

— Meu Deus! O que foi isso?

— Está tudo bem Sara. — Insinuou o marido, socorrendo o menino. — Regis tropeçou, mas não foi nada.

Levantou-o e percebeu que alem de se sujar de amarelo com as sobras, havia feito pequeno corte na palma da mão esquerda, próximo ao dedo indicador com o polegar. Apesar de o ferimento ser pequeno, sangrava bastante e ele chorava sentido.

— Desculpe senhor Luciano. — Pediu ele entre muitas lágrimas.

— Não foi nada! Vai ficar tudo bem! Vamos lavar estas mãos no banheiro.

Seguiram até o banheiro, onde ele se lavou, inclusive, passando água sobre a camisa suja.

— Não se preocupe com a camisa. — Pediu o homem. — Lave bem as mãos, para que a gente passe água oxigenada e mertiolate.

Ele lavou bem as mãos, mas o danado do sangue não parava. Luciano jogou a água oxigenada, fazendo com que o sangue ficasse grosso sobre a palma de sua mãozinha. Por baixo porem, o sangue brotava novamente muito escuro. Depois de muita insistência, aos poucos, a leve hemorragia foi sendo estancada, só então, o homem aproveitou para passar um pouco de mertiolate, que com certeza, ardeu um pouco, fazendo o menino esboçar certa careta. Luciano colocou uma peça de gaze, prendendo com dois pedaços de esparadrapo, dando a volta sobre toda sua mãozinha ferida.

Apesar de o ferimento estar sob controle, ele não parava de chorar.

— Pare com esse chorinho! — Ironizou o homem. — Isso não foi nada! Até você casar, já sarou.

— Ãh! — Se espantou o menino. — Não vou casar!

— Por que não? Vai virar padre?

— Eu não, oh!

Seguiram juntos até a cozinha; Luciano apanhou os cacos de louças e vidros, jogando na lixeira, ali mesmo na cozinha, depois apanhou os talheres, que por serem de aço inoxidável, estavam intactos, colocando-os sobre a pia; apanhou um velho pano de chão e molhando-o sobre o tanque da lavanderia, na saída para os fundos da casa, limpou a sujeira do chão, depois se voltou a ele, que continuava em choro sentido.

— Está doendo muito? — Perguntou-lhe Luciano, sabendo que não estaria.

Ele acenou que não.

— E por que continua chorando? — Ironizou com sorriso.

— Desculpe ter quebrado os pratos e copos. — Pediu ele, chorando sentido.

— Bela coisa, pratos! — Tornou ironizar.

Abriu o armário e lhe apresentando uma pia de pratos, concluiu.

— Quer quebrar mais?

O menino esboçou um leve sorriso, com a cara manchada de lágrimas.

— Tire essa camisa suja e vá lavar o rosto.

Ele se despiu de sua camisa suja, mostrando sobre o peito, lindo crucifixo, preso por correntinha inoxidável embaçado e seguiu até o banheiro, onde, com apenas a mão direita, lavou bem o rosto em lágrimas, enxugou-se com a própria camisa e voltando à sala, onde Luciano já se encontrava, disse:

— Agora vou embora.

— Por enquanto não! — Ordenou Luciano, sério.

— Por que não?

— Só depois que parar com esse jeitinho choroso.

— Hum!?

— Não quero que chegue a sua casa chorando, pro seus pais pensarem que bati em você.

— Eles não vão pensar isso! — Negou ele convicto.

Luciano segurou seu crucifixo, alegando:

— Que lindo! É de inox?

— O que é inox? — Não compreendeu o menino.

— O material com que é feito! Aço inox, ouro, prata, alumínio...

— É de prata! — Insinuou ele normalmente, sem sequer ter ideia de valores.

— Muito bem! De quem você ganhou?

— Comprei! — Esclareceu ele, em tom forte.

— Tá podendo! Ganha boa mesada do papai?

— Mesada!? — Estranhou. Qual pai daria mesada nos filhos?

— Mesada é uma espécie de ajuda em dinheiro, que os pais sempre dão às crianças, para que elas possam comprar suas coisinhas.

— Ahã!

— Então: você ganha boa mesada?

— Só caderada! — Insinuou ele rindo, entre os soluços. — Estou brincando! Mas não ganho mesada! Papai ganha muito pouco e se fosse dar mesada pra seis filhos, ficaria sem nada.

— Então você não pôde comprar esta linda correntinha.

— Ganhei de minha avó Maria Thereza. Já sabia que você... O senhor não acreditaria que eu comprei.

— Não gosto quando me chama de senhor. Regis. — Insistiu Luciano. — Já lhe disse isso!

— Mamãe me disse que devemos respeitar os mais velhos. Que devemos tratá-los por senhor.

— Não são só as crianças, que devem respeitar os mais velhos. Os mais velhos também precisam respeitar muito as crianças. Elas não são bichos. São frágeis e necessitam de todo cuidado, respeito e amor.

— Por isto que o senhor gosta de mim?

— Gosto de você, porque você nos cativou, com seu jeitinho de criança humilde e de coraçãozinho puro.

— Meus irmãos dizem que sou uma peste.

— E o que diz a mamãe e o papai?

— Eles me adoram!... Quer dizer... Me amam.

— Isso é o que importa. Irmãos são sempre assim mesmo: se detestam, mas não se separam. Agora assista um pouco de tevê, enquanto vou lavar a louça.

— Não quero. — Negou secamente. — Ajudo o senhor a lavar a louça.

— Com essa mão machucada? De jeito nenhum!

Ele sentou-se na mesma poltrona de costume e ficou assistindo televisão, enquanto Luciano foi à cozinha, lavar a louça para ajudar sua esposa.

Quinze minutos depois, ele ainda não tinha terminado seus afazeres, quando o menino desligou a televisão, foi até a cozinha e perguntou sentido:

— Posso ir embora agora?

— Parou de choramingar?

Acenou tristemente que sim.

— Então me dê um sorriso e pode ir.

Esboçou pequeno sorriso. Tão pequeno que quase não se notava.

— Sorria direito ou lhe darei outro beijo. — Ironizou o homem.

[1] Se bem que na década de setenta, os brasileiros usavam shorts ou calções bem curtos. Quer uma prova: vejam fotos de jogadores de futebol de campo dessa época.

[2] “Amélia é que era mulher de verdade”. Muita gente nascida no Brasil nas últimas décadas do século XX conhece esse verso da canção "Ai que Saudades da Amélia", composta por Mário Lago em parceria com Ataulfo Alves nos anos 1940.


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Notas finais do capítulo

E então, gostou do audiolivro? Só vou saber se você comentar.



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