Dia 36 escrita por psyluna


Capítulo 1
Sob a sombra do vento.


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura, pessoal.



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É numa tarde quente que redijo estas palavras. O ar do deserto passa pelas narinas como lâminas e a pele dói a cada torção. Olho para o céu e ele não dá sinais de ficar encoberto tão cedo. Não há escapatória, nada que eu possa fazer para me proteger. Eu escolhi isso. Tomei a decisão de não me esconder.

Por falar nisso, tem sido raro que eu me permita um momento de folga. Não estou falando de descanso e recuperação; isso é vital, abandonar o repouso seria loucura. O que quero dizer é que estou em uma cobrança constante, diferente de todas as outras às quais me submeti. Uma vigilância quase permanente para não me abandonar. A folga à qual me refiro é fatal.

Se não prestar atenção, me deixarei levar. Se isso acontecer, minhas verdadeiras armas cairão por terra. Eu me darei por vencida de novo. Aceitarei as mordidas profundas dos monstros que me cercam. Levarei de bom grado os golpes com unhas que rasgam minha carne. E então, serei morta outra vez. Leva tempo até que toda a vida se esvaia do corpo. Acredite, eu já estive lá. Morrer é como cumprimentar um conhecido do qual não gosto tanto. É possível parar o processo, assim como retornar dele, mas não tão fácil que seja uma coisa com a qual vale a pena contar. Na dúvida, não se recoste nisso. Lute. Nade contra a corrente. Resista. E aprenda a dizer “não”.

Nunca fui o tipo de pessoa que aceita tudo, nem o que se fecha por completo. Sim, já me curvei a poderes que dominaram os meus. Sim, já neguei opressões também. Por desistência ou por amor à paz, por rebeldia ou por não aceitar a injustiça. Mas sempre de dentro para fora. Eu reagindo aos outros. Eu me moldando ao ambiente para me adequar e sofrer menos. Eu numa tentativa penosa de me tornar invisível e não ser um incômodo. Eu sendo atacada e revidando.

Já me questionei se de certa forma me comportava como alvo para esse tipo de coisa. Se era o exato estereótipo de ser humano que existências mais cruéis, dominadoras e territoriais veem como prato predileto para exercer seus profundos e sujos instintos. Se eu era alguém com quem todos se sentiam bastante à vontade para me mostrar seu pior lado sem medo ou clemência. E a resposta, dolorosa e verdadeira, é “sim”. Sou desconfiada, porém ingênua, resistente e sensível dependendo de onde e como você bater. Não é justo que me açoitem de graça, ainda por cima nos lugares onde mais dói. Mas é exatamente essa a questão: o mundo não é justo. Ele não é perfeito e nem todos têm a decência de ser a melhor pessoa que conseguem ser. Aliás, correr atrás de não ferir os outros é raro a ponto de ser aplaudido de pé, isso quando não ridicularizado, depende de onde você está. Comportar-se como alvo ou mesmo esquecer portas abertas para esse tipo de atitude dá a eles a chance e a desculpa para que entrem e façam o que tiverem vontade. Pior: podem dizer que o culpado é você e ainda conseguir gente que apoie e aponte o dedo para te fazer sofrer mais ainda. Eu odeio isso. Mas o meu ódio sozinho não vai fazer um sistema inteiro mudar. E é esse o mundo que temos para viver por enquanto. Para torná-lo diferente, não basta a força do grito. É um processo que envolve coisas demais e gente demais. Profetizo com pesar: muito sangue ainda cairá até que possamos pisar fora de nossa zona de conforto em plena segurança. Enfim; não é a um panorama tão grande que eu quero chegar.

Minha estrada até aqui foi bem turbulenta. A situação que acabei de descrever é por excelência minha terra natal e o ambiente no qual fui obrigada a viver por um bom tempo. Depois de separações, dores, vazios, e mortes, retornos e lágrimas, feridas cicatrizadas, choques de realidade, tempos ociosos, descobertas, reviravoltas e finalmente a aceitação, eu ainda não tinha me programado para viver outra vida. Claro, os trejeitos de veterana de guerra já tinham em parte dado sinais de mudança. Mas uma coisa, um traço que fez de tudo para se varrer em direção ao canto mais oculto, ainda não tinha sido pega em flagrante. Eu estava acostumada à dor. Sentia falta dela. Era quase um vício.

De início, não compreendia por que minha mente ainda era tão selvagem, tão incontrolável. Precisei que alguém me segurasse pela mão e me mostrasse que eu era a única responsável por aquilo. A única que tinha de fato a chance de fazer algo a respeito. Pela primeira vez, eu não me senti culpada. E foi porque eu mesma não me apontei o dedo.

Naquele momento, eu me neguei a sofrer para nada. Aprendi a dizer o “não” que tanto precisava ouvir. Abrir minhas próprias feridas por puro hábito já não fazia mais sentido. Aquilo só me atrasava. Não tinha consciência total de onde estava me metendo, mas sabia de duas coisas. A primeira: não tinha medo que meu novo caminho terminasse em desastre. Nada podia me machucar em um grau que eu já não conhecesse. A segunda: era mais do que hora de ter poder de escolha sobre algo na minha vida. Era hora de crescer pra valer. Não que seja indolor, mas foi o que eu decidi e honro isso acima de tudo. Eu li o contrato e o assinei. Optei por isso indo contra as vozes sedutoras que se fingiam de intuição e eram nada mais que medos disfarçados. Tão temerosos de sumir do mapa que tomaram essa medida drástica. Que golpe baixo.

Meu corpo não se conforma, mas me sinto pronta para levantar e partir. O tempo e o espaço continuam duros comigo. Aquela mão que me mostrou a verdade se estende para que eu levante. Eu a alcanço e ela arde tanto quanto o sol. É de propósito. É para eu aprender. Não a solto. Quando escrevi que aprenderia a amar tudo isso, não estava brincando. Estranho que pareça, estou conseguindo. É tão diferente. Tão... Novo.

Começo a andar, lado a lado com ele, espada em punho e uma sensação fora do comum no peito. Uma hora a noite chega, sempre chega, e ele não estará aqui. É essa a intenção. Por enquanto, decidi que preciso disso, que preciso dele, para depois seguirmos juntos por pura vontade. Quando isso acontecer, eu me amarei o bastante para não me machucar mais. Uma lágrima me surge, mas sorrio. Solto sua mão e a enxugo. Ele deve ter visto, porque agora me segura com mais força. A aversão visceral que eu sentia deu lugar a um conforto que eu nunca tinha conhecido. Ele sabe, eu avisei, que vai demorar até que eu me acostume a tudo; ao lado bom da vida. Que ele vai precisar de paciência. Mas estou tão disposta a mudar que ele não teve dúvidas. Não preciso pedir licença para existir, só desculpas quando sair muito do rumo. E, assim que possível, acreditarei que alguém me quer por perto.

Que eu encontrei um lugar para chamar de lar.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por chegar até aqui comigo. Gostaria de saber o que pensam a respeito. Que tal?